Algumas reflexões sobre o texto de Walter Benjamin: O NARRADOR

Psicoterapia : Teoria e Prática

                                                “O NARRADOR”

Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov

Autor: José Luiz Belas – 1994

 

INTRODUÇÃO

Diariamente recebo pessoas que me trazem histórias. Contam-me histórias.

Talvez, por isso, o texto “O Narrador”, de Walter Benjamin, me tenha interessado tanto.

Ao mesmo tempo em que o fui lendo, foram surgindo algumas reflexões sobre o que vivo no consultório, com meus clientes.

Neste trabalho, gostaria de passar para você as coisas que fui pensando sobre a ligação entre o que ele escreveu e o que vivo, dia a dia, na minha prática profissional.

REFLEXÕES SOBRE O TEXTO

A arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente.

Vejo-me, já neste início, estabelecendo um paralelo entre o discurso que acontece na sessão terapêutica e a narrativa, tanto a do cliente quanto a do terapeuta.

Para que essas falas possam ser “produtivas” (no sentido de serem capazes de promover uma ampliação de percepção da realidade do próprio contato entre aquelas duas pessoas, que se encontram em relação, ali), o intercâmbio de experiências torna-se fundamental.

 Como nos diz BENJAMIN,

A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores.

O que é a terapia senão uma experiência que se dá na relação pessoa a pessoa. Uma narrativa?

Começo a pensar, aqui, na “qualidade” dessa narrativa, ou seja, será que pelo fato de ser uma experiência que se passa numa relação pessoa a pessoa, de uma para outra, isso será suficiente para que, no discurso do cliente, se identifique ali uma verdadeira narrativa?

Uma  outra questão vem-me agora. Trata-se dos “dois grupos” de narradores:

1-     Quem viaja tem muito para contar. O narrador como alguém que vem de longe (o marinheiro comerciante);

2-     O que, mesmo não tendo saído do seu país, conhece suas histórias e tradições

(o camponês sedentário).

No primeiro grupo, imagino que possamos identificar o cliente “teórico”, o “erudito”, cheio de explicações sofisticadas sobre seu mundo em conflito.

No segundo grupo, talvez possamos localizar aquelas pessoas mais espontâneas, que transmitem, com mais fluidez e precisão, seus estados interiores, suas emoções, medos e angústias, de forma menos defensiva, mais transparente.

Tanto os clientes do primeiro grupo, quanto os do segundo poderiam ser identificados como narradores.

Sinto que isso que acabo de dizer faz sentido, quando se tem uma vivência prática em clínica, quando a gente escuta o cliente. Todavia, percebo a necessidade de me deter um pouco mais, para poder deixar essa ideia mais clara, mais consistente.

Como venho trabalhando, atualmente, numa monografia, cujo tema é a “História da Pessoa”, sou inclinado a perceber e a buscar tudo que pareça indicar que a história de cada um de nós é vivida num universo único, particular. Nele, os fatos ganham uma dimensão tão pessoal, que se torna praticamente impossível, para uma outra pessoa, acessá-los.

Claro que o que acabo de dizer não é novidade! O que pretendo explorar é o seguinte: como o cliente poderá, de posse dessa experiência única, vivida dentro de um universo, que para ele também é único, transmitir o que existe ali, fazer-se entender, entender-se, narrar sua história?

Nessa hora, retomo o texto, e imagino o cliente como um narrador que fala de seu universo, de sua vida, de suas emoções e que tenta “intercambiar experiências”.

– O que dificulta a ocorrência desse intercâmbio?

         – O narrador não conseguiu mandar as mensagens?

– O ouvinte não as conseguiu receber corretamente?

– Qual é o papel do terapeuta? Narrador/ouvinte?

Tenho defendido, ultimamente, a seguinte ideia: o terapeuta deve ser um bom ouvinte, que se esforça para dominar a arte de narrar para o cliente.

Se o terapeuta conseguir captar a narrativa (às vezes, truncada) do cliente, e puder narrar, naquele momento, com mais precisão, o que ouviu, dando forma e sentido ao que escutou, e submetendo sua narrativa ao cliente, para que ele a identifique como a possibilidade de ela ser mais precisa do que a dele próprio, de início, conseguirá enunciá-la.  Então surgirá uma ampliação das dimensões do mundo do seu cliente, assim como as do seu próprio mundo.

Aos poucos, cliente e terapeuta vão-se apoderando, simultaneamente, de um “mesmo espaço”, e definindo melhor “o universo” que está sendo explorado, um mundo no qual os dois passam a “viver”: uma nova realidade que podemos chamar de Relação Terapêutica.

Mas, na prática, que importância tem isso para o processo terapêutico?

A narrativa bilateral, chamemo-la assim, torna-se imprescindível nesse processo para que o sujeito se sinta progressivamente seguro dos limites dos muros, das amplidões, dos claros, dos escuros, de tudo que constitui seu próprio mundo, no qual os fatos, os acontecimentos e as tramas ganham significado…

Sei que estes conceitos nos remetem a discussões muito complexas e profundas, principalmente quando se referem a este “sujeito”, este “eu mesmo”, este “indivíduo”, palavras essas carregadas de dificuldade para se estabelecer consenso relativamente às suas naturezas.

O indivíduo, o sujeito e o eu mesmo são resultantes de muitos fatores, internos e externos, que acabam por moldá-los à sua revelia.

Todavia, o que quero dizer é que somente quando o sujeito se dá conta de ser produto disso tudo, nesse momento, ele está explorando “seu universo”, o universo no qual está mergulhado e que é determinante do seu “modo de ser, de pensar…”

Perceber isso só ocorrerá quando ele puder “narrar” suas histórias, entender como elas se estruturaram dentro de si e estabelecer critérios próprios para fazer “suas escolhas em relação ao rumo que gostaria de dar a algumas de suas propostas existenciais, sem perder de vista que, nem sempre, conseguirá definir, para si mesmo, se tal escolha se trata efetivamente de uma escolha ou se ela também é resultado de toda uma “vontade fabricada”, a ele imposta ao longo de sua vida como “verdades inquestionáveis”.

Mas vamos voltar ao texto e tentar verificar até onde a “arte da narrativa” está presente na relação terapêutica, e até que ponto ela é indispensável para o “sucesso” da terapia.

Deparo-me com uma interessante afirmação de BENJAMIN, que, de algum modo, esclarece um pouco a indagação contida no parágrafo anterior:

(…) a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária.[E, mais adiante,]

(…) o narrador é um homem que sabe dar conselhos.

E, finalmente:

Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria.

Pode parecer, pelas citações acima, que considero o papel do terapeuta semelhante ao do sábio e ao do conselheiro. Nada é mais distante do que penso. Na verdade, acho que é desejável que ele seja um “humilde” e “despretensioso” ajudante, cuja sabedoria principal se caracteriza pela crença em que o outro é, de fato, um outro. Um outro com direitos de ser o que desejar ser, mas que nem sempre pode optar por ser ele mesmo, por se encontrar envolto por vários eus, vários “si mesmos”, todos fabricados ao longo de sua própria história, a qual também é um reflexo da história do seu meio social, familiar…

O terapeuta, tal como eu o identifico, é “ignorante” em relação ao universo do outro e de tudo o que o compõe e, por isso, não deve ser pretensioso a ponto de considerar que pode penetrar naquele mundo, que não é o seu, e dar pareceres, com tonalidades de certezas, sobre aquela realidade que lhe é totalmente estranha. No máximo, poderá  aproximar-se lentamente, começar a participar como um outro, ouvir as histórias, tentar entendê-las, não as interpretar, não as querer explicar. Mergulhar nas tramas, nos contextos em que elas aconteceram. Perder-se um pouco no universo do outro, na tentativa de sentir, o mais plenamente possível, o que o outro estiver sentindo, enquanto lhe narra suas experiências. Acho que só assim surgirá o “intercâmbio de experiências” e uma possibilidade maior de reconhecimento das fronteiras do mundo do cliente, por meio das trocas narrativas entre ele e o terapeuta.

Uma outra questão interessante, que pode ser explorada a partir do texto que estamos abordando, é em relação ao “estilo” do discurso do cliente: romance? narrativa?

Alguns clientes se comunicam num estilo, que mais se aproxima do “romance” do que da “narrativa”. E, só para identificar um pouco melhor o que estou pensando, citaria W.B.:

A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-los.

Em alguns casos, até que ponto o cliente conta histórias e o terapeuta eficiente narra?

Até que ponto o fato de o terapeuta narrar ajuda o cliente a poder passar do romancear para a narrativa e, assim, poder ampliar sua percepção do seu mundo que, dessa forma, se transforma numa “obra aberta”?

Seria um dos objetivos da terapia ajudar o cliente a modificar seu discurso, para que ele chegue a construir uma “obra aberta”?

Ainda, na linha da exploração dos diversos “modos de comunicar-se”, que surgem na relação terapêutica, fazendo um paralelo com o texto de W.B., chegamos à informação.

Vejamos o que caracteriza uma informação:

Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras, quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações.

Tenho a sensação de que nós, profissionais da escuta, estamos contaminados pela era da informação e ouvimos com os ouvidos de espectadores de jornais de televisão.

O que gerou em mim esta sensação foi um fato, ocorrido quando uma psicóloga recebia uma supervisão de um caso que ela atende. Era uma supervisão em grupo. Após relatar o que estava acontecendo com sua cliente, presenciou-se, no grupo, uma verdadeira chuva de perguntas, vindas dos participantes. A maioria deles, a partir do que ouvira, começou a dar inúmeras explicações para justificar o comportamento da cliente. A cena chegava a ser meio patética, pois as justificativas, as hipóteses levantadas, tudo, com o mínimo de relação com a realidade da cliente, era de uma inconsistência absoluta. Na realidade, sabia-se quase nada ou mesmo nada sobre o universo dela.

Parece que, diante do relato da terapeuta, que estava sendo supervisionada, o grupo não se contentou em “viajar na narrativa”, senti-la, experimentar o contraste entre sua realidade e a daquela pessoa, cuja história estava sendo apresentada, mas, pelo contrário, quase todos se colocaram, imediatamente, na busca de explicações, e, com isso, foi posto um “ponto final”, uma conclusão num discurso que só teria chance de ser construtivo e rico, se, pelo contrário, o deixássemos expandir-se, fluir, crescer, conhecer-se, ser compreendido.

É claro que quem ouve uma história romanceada, informada, ou narrada tem liberdade para interpretá-la como bem quiser. Mas o que se coloca aqui, ou pelo menos o que tento argumentar e defender, é que tudo me tem indicado que é, através da narrativa, que a história atinge uma amplitude muito maior, mais rica em possibilidades de caminhos interpretativos, de uma compreensão em nível mais profundo.

Tenho observado, através de vários clientes meus, que optaram por fazer um trabalho terapêutico por meio de um método que venho desenvolvendo, que consiste na recapitulação progressiva de sua própria história, em que os fatos memorizados por eles (os fatos significativos) fluem nas sessões num estilo de narrativa, sem nenhuma proposta de explicar ou de concluir nada. Somente narram e, na medida em que vão narrando, começa a surgir uma ampliação dos conteúdos de seus discursos, os quais, gradativamente, se desdobram numa progressiva e mais elaborada compreensão dos fatos que povoam seu universo único, singular.

Narram, às vezes, num clima de grande perplexidade, pois se dão conta de que, até então, não haviam percebido muitos detalhes do contexto no qual eles ocorreram.

Neste ponto, achei curioso o que BENJAMIN escreve na parte 8 de seu texto:

Nada facilita mais a memorização das narrativas que aquela sóbria      concisão que as salva da análise psicológica…

Destaquei essa frase por considerar que, através do método que utilizamos, a pessoa, em terapia, caminha no tempo como se fosse um viajante na sua história, criando um duplo de si mesmo. Ela tem a oportunidade de “observar” a si própria, nas diversas idades pelas quais passou em sua vida, e narra o que vê, o que sente através dessa observação, sem a preocupação de explicar nem analisar os fatos e acontecimentos vividos por ela.

Todas essas afirmações, que fiz até agora, levam-me a pensar que a prática da narrativa pode ser um meio muito eficaz na busca do rompimento com uma série de amarras, que prendem o sujeito e que estão determinadas por uma distorção na percepção de sua própria história. Na nossa prática clínica, percebemos que a recapitulação progressiva da história pessoal é um dos meios propiciadores do surgimento de narrativas, tais como são definidas por BENJAMIN:

(…) é, ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o ‘puro em si’ da coisa narrada como a informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

Uma  outra questão. Acredito que o processo terapêutico, quando caminha firme em direção ao seu objetivo, esbarra num momento profundamente difícil para o cliente. Esse momento é semelhante ao que poderíamos chamar de “morte de sua identidade”.

Nesse momento, em que ele se vê desnudo das fantasias que encobrem seu EU, e se depara com um outro EU, com o qual não está familiarizado, mas que identifica como sendo ele (mais verdadeiramente ele), o gosto da morte toma conta de sua boca, uma sensação de ar frio e, ao mesmo tempo escaldante, passa pelo seu corpo. É a hora da sua verdade. Como diz BENJAMIN:

Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas

as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível.

Gostaria de ter mais tempo para desdobrar essa ideia, já que ela é muito rica, principalmente para quem vive a clínica diariamente.

Para nós, que convivemos com pessoas a cada dia, vivenciamos suas “mortes” e a força que essas pessoas transmitem quando isso as atinge, conferindo-lhes, como BENJAMIN nos aponta com precisão:

(…) visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso – assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito, aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos ao seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.

Embora muitos outros aspectos pudessem ser explorados nesse texto – sobre os quais estou tentando fazer algumas reflexões, finalizarei com um que aborda uma questão, se não a principal, mas uma das cruciais no processo terapêutico: a escuta e suas consequências.

BENJAMIN afirma: Quem escuta uma história está em companhia do narrador.

Mérito do narrador? Mérito do ouvinte? Mérito, ou…?

Ser um bom narrador, ser um bom ouvinte…

Parece que, quando há uma boa história a ser contada (ela tem cheiro de verdade, mesmo quando é ficção), um bom ouvinte sempre se candidata a escutá-la.

O inverso também parece fazer sentido. Aí, nesse ponto, parece que se torna impossível que um não fique “implicado” com o outro.

Essa implicação, esse envolvimento, esse estar em casa no universo do outro e essa escuta empática parecem-me fundamentais para que ocorra aquilo que, em linhas atrás, chamei de intercâmbio de experiências, e, para que possa brotar, exatamente nesse ponto, a matéria-prima do processo terapêutico: a relação pessoa/pessoa.

Certamente, muito do que escrevi até aqui, sem sombra de dúvida, é bastante questionável, principalmente para os teóricos com pouca vivência clínica, assim como para outros profissionais ou estudiosos dessa área, que tenham formação acadêmica diferente da que tive.

Não estou preocupado em lançar normas, verdades… mas, simplesmente, refletir sobre as diferentes linguagens de pessoas de áreas diversas, que, estando voltadas para o humano, acabam dizendo, com outras palavras, coisas muito semelhantes.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BENJAMIN, W. O Narrador -Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993