R.P.H.P. Um estudo sobre o “self”: sua construção, desconstrução e autorreconstrução

 

 

  1. INTRODUÇÃO

La investigación y la teoría me parecen un esfuerzo constante y disciplinado que tiende a descubrir el orden inherente de la experiencia  vivida (Rogers, 1971, p. 175).

O presente trabalho é fruto de uma experiência que venho desenvolvendo, desde 1982, na minha atividade clínica com grupos e atendimentos individuais, em meu consultório particular e no Ambulatório do Hospital Estadual Psiquiátrico de Jurujuba, Niterói, Rio de Janeiro, em cuja instituição pública trabalhei até outubro de 1998.

Inicialmente, tive a intenção de apresentá-lo no Encontro Sudeste da Abordagem Centrada na Pessoa, realizado em junho de 1998, em Itaipava, Petrópolis/RJ. Desejava que fosse um trabalho bastante amplo, que pudesse justificar meu tempo de afastamento dos “encontros centrados”. Depois, achei melhor fazer uma apresentação mais modesta, tanto do ponto de vista teórico, como do prático, pois não dispunha de tempo suficiente para desenvolver um texto mais elaborado para aquele evento.

De junho de 1998 até hoje, passaram-se onze anos. Por isso, ao retomar este trabalho, sinto que é preciso atualizá-lo da melhor forma que puder. Entretanto, pela própria natureza do método que me estou propondo apresentar, sei que, ao publicá-lo já estará desatualizado. Trata-se de uma metodologia composta de variáveis muito dinâmicas e, como tal, em rápida transformação.

Acho importante esclarecer que minha vivência clínica, iniciada oficialmente em 1971, durante todo esse tempo foi marcada pela identificação com as ideias de Carl R. Rogers.

Ainda como estudante de psicologia da UFRJ, em 1969, conheci as ideias de Rogers através do professor Rogério Buys. De lá para cá, suas teorias passaram a fundamentar tudo o que fiz na clínica, na escola e em outras áreas nas quais trabalhei.

Muito do que Rogers nos ensinou ainda nos serve de ponto de referência seguro para nossas práticas e teorizações. Muito do que ele pensou precisa ser repensado e ampliado, como ele próprio preconizou e sugeriu-nos, direta e indiretamente, em diversas ocasiões.

Sinto-me privilegiado por ter mantido contato com Rogers, através de cartas, em 1975 e 1976. Dois fatos importantes marcaram esse período. Um outro, igualmente significativo, aconteceu em 1977.

O primeiro ocorreu quando participava de um grupo de estudos sobre a “teoria rogeriana”, no meu consultório. Nessa ocasião, sugeri aos meus colegas o envio de uma carta ao Carl Rogers. Todos acharam a ideia muito boa, mas tive a sensação de que, no fundo, não acreditavam muito que obtivéssemos sucesso com essa iniciativa. Sendo Rogers uma pessoa tão importante e requisitada, cheia de compromissos, talvez não se dispusesse a perder seu tempo com um grupo de recémformados, que atuava numa cidadezinha no Estado do Rio de Janeiro.

Para surpresa nossa, cerca de um mês e pouco após termos enviado nossa correspondência para La Jolla, California, recebemos um grande pacote contendo vários artigos, atualíssimos, escritos por ele, e uma abertura para que déssemos notícias sobre nossos estudos relativos às suas teorias.

O segundo fato aconteceu meses depois de recebermos os textos de Rogers. Escrevi um artigo para a Revista de Psicologia do Setor de Psicologia Clínica do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, cujo título era “Ainda Sobre o Relacionamento Terapêutico”.

Esse trabalho destinava-se ao grupo de estudos dos estagiários supervisionados por mim naquela instituição.

O objetivo desse artigo – só mais tarde me dei conta claramente disso – era mostrar aos jovens profissionais que começavam a estudar os fundamentos da Terapia Centrada no Cliente, como um “rogeriano” vive a relação terapêutica.

Naquela época, embora fosse um estudioso das obras de Rogers, ainda tinha uma visão bem distorcida sobre o que aquele psicólogo dizia sobre terapia e terapeutas.

Mandei fazer uma boa versão do meu texto para o inglês, através de uma pessoa muito capacitada para isso e, orgulhosamente, o enviei para Rogers.

Um mês depois, recebi sua resposta e, com ela, veio a maior “decepção”, que, até hoje, experimentei em minha vida profissional.  Ele, Rogers, referindo-se ao meu artigo, disse-me literalmente: “Gostei de SEUS MÉTODOS TERAPÊUTICOS.”  

 

Não lhes preciso dizer o que, naquela época, tal afirmação provocou em mim. Pensei: Rogers não identifica em meu trabalho sua teoria e seus métodos. Ele não me considera um dos seus. (Coisa de principiante.)

Claro que só depois pude rir da minha ingenuidade e compreender o que isso significava e o que trouxe de bom para mim. Certamente, foi a melhor aula que tive sobre a Abordagem.

 

O terceiro ajudou-me a compreender mais plenamente o que expus ao descrever o segundo fato. Aconteceu durante minha participação em um grupo, no workshop de Arcozelo, em 1977.

Carl Rogers participava desse encontro e, num determinado momento, uma pessoa lhe perguntou: o que é ser rogeriano?  Ele, parou, pensou, deu um breve sorriso e respondeu calmamente: “Creio que só eu mesmo sou rogeriano”.

Estas foram algumas de minhas aprendizagens significativas sobre o que representa “pertencer” à Abordagem Centrada na Pessoa: mudança, questionamento, desejo de ser o mais científico possível dentro do que a ciência humana nos permite, não acreditar no “acabado/pronto”, e tantas outras coisas e valores que identificam os que têm uma visão do homem como um organismo em movimento, em crescimento, em evolução, e acreditam no poder pessoal presente em cada indivíduo, evidenciado em cada ação que desenvolve sozinho ou em grupo.

No presente trabalho, apresento o que venho desenvolvendo, há mais de duas décadas, através de um método que visa compreender a dinâmica da construção do self (como foi formulado por Rogers), e também determinar o processo de sua reconstrução, resultante de uma forma especial de relacionamento humano denominada psicoterapia.

A postura científica de Rogers, evidenciada em cada uma se suas obras, sempre me levou a acreditar na possibilidade de compreendermos, mais profunda e concretamente, os fenômenos que ocorrem em todos os relacionamentos humanos e, principalmente, nos encontros terapêuticos.

Na base de todos esses contatos humanos, o conceito de self está plenamente presente, praticamente definindo as características do momento em que tais relações ocorrem. Por isso, considero esse conceito teórico um dos principais, quando queremos estudar, mais de perto, o comportamento de um cliente, assim como o que se torna primordial na dinâmica do processo psicoterápico.

Desde quando comecei a me interessar pelas ideias de Rogers, seu conceito de self despertou-me imensa curiosidade e se transformou numa das minhas maiores interrogações. Nunca me bastou conceituá-lo sem ter a possibilidade de “compreender a dinâmica de sua construção”.

Mas, se por um lado pensava em criar uma maneira de compreender como o self era construído e como ele se modificava através da psicoterapia, por outro, questionava-me: será possível “viver” a construção do self e objetivar ao máximo esse conceito? ”Re-Viver” sua construção?

Concluí que poderia investir nesta ideia, partindo de algumas hipóteses iniciais e, entre elas, as que se seguem:

Se acompanharmos, sistematicamente, a construção de um self, conseguiremos, a partir disso, compreender com ele pode determinar o modo de funcionar de uma pessoa, os movimentos que determinam suas condutas.

Ao mesmo tempo, pensava:

Mas, finalmente, o que é a psicoterapia senão um processo através do qual pretendemos ajudar a pessoa a mudar, a reconstruir seu self, de tal modo que lhe permita viver de modo mais congruente, mais organizado, mais fluido, mais criativo…

          Eu via o self assim:

Concretamente, o self é a matéria-prima maleável, sobre a qual o terapeuta trabalha, promovendo, no cliente, o surgimento de uma outra forma de ser, de  existir…

Essas e outras ideias estavam presentes em mim. Por exemplo, não tinha nenhuma dúvida sobre o fato de a psicoterapia, como um processo bastante complexo, promover inúmeras mudanças, que vão além daquelas produzidas no self do cliente. Sabemos que o terapeuta também sofre tais mudanças. Entretanto, o que pretendia, para fins de estudo, era tentar, apenas, o isolamento de uma variável, o self do cliente, procurando ficar o mais perto possível do mecanismo de sua construção e de sua reconstrução.

Em 1995, apresentei, na Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, uma monografia para obtenção do título de especialista no curso “Teorias e Práticas Psicológicas em Instituições Públicas”. Neste trabalho, procurei mostrar como a “Nova História” trazia subsídios interessantes para a compreensão da história do cliente. Procurei também focalizar como a história da construção do self poderia ser elaborada, a partir de determinadas ideias trazidas por alguns historiadores da Nova História e da História Oral.

Embora meus conhecimentos sobre esses campos teóricos ainda sejam insuficientes, creio já ter uma série de razões para considerar que as propostas desses historiadores nos podem trazer uma grande contribuição e dar origem ao surgimento de um caminho muito promissor, tanto para a compreensão da construção do self, como para a compreensão do processo ao qual denominamos psicoterapia.

No presente trabalho, que, na verdade, é um estudo, tentarei apresentar-lhes um método que naturalmente foi sendo desenvolvido por mim, e que se tem mostrado útil na busca da compreensão do modo como um self é historicamente construído.

Provisoriamente, dei um nome a esse método: RPHP (Recapitulação Progressiva da História Pessoal).

Procurarei, também, dividir com vocês o que tenho aprendido, ao vivenciar – junto ao meu cliente – o processo de desconstrução e autorreconstrução de seu self.

  1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para o presente estudo, parti das seguintes bases teóricas:

  1. A Teoria da Personalidade, tal como foi proposta por Carl Rogers, em seu livro Psicoterapia Centrada en el Cliente, Ed. Paidós, Buenos Aires, 1969.

Procurarei focalizar aspectos importantes, apresentados por Rogers na sua formulação de uma “Teoria da Personalidade e da Conduta”.

Cada proposição apontada por ele contém uma gama enorme de opiniões, sugestões e hipóteses sobre a estruturação da personalidade e sua construção. Para o presente estudo, tomarei somente algumas ideias e afirmações que me pareceram suficientes para o embasamento teórico do método de RPHP, bem como para a compreensão de sua estrutura. As demais completam as que considerei básicas e o seu conhecimento, certamente, ajudará na compreensão mais rica deste método que lhes apresento.

  1. A Nova História tal como foi proposta por Paul Veyne, em seu livro Como se Escreve a História, 2ª edição, Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1992.

Do mesmo modo que fizemos com o livro de Rogers, citado linhas acima, mostraremos alguns conceitos apresentados por Paul Veyne, que ilustram de que forma suas ideias também nos ajudaram a estruturar o método RPHP.

Como a Teoria da Personalidade em Rogers e algumas propostas da Nova História, em Paul Veyne, estão intimamente ligadas à estrutura do método, pretendemos, inicialmente, mostrar alguns aspectos dessa Teoria da Personalidade.  Depois, faremos o mesmo em relação à Nova História e, finalmente, o RPHP, como a síntese dessas duas fontes teóricas, transformada num “método auxiliar ao processo terapêutico”.

 

2.1 – A TEORIA DA PERSONALIDADE EM ROGERS

Algumas proposições 

2.1.1-“Todo individuo vive en un mundo continuamente cambiante de experiencias de las cuales es el centro”  (1969- p.410).

No estudo que venho realizando – proposta de compreensão de como a personalidade vai sendo construída,  procurei  levar em consideração o contexto em que a pessoa nasce, cresce e se desenvolve. Seu mundo, com tudo aquilo que pode ser assim denominado: tudo que existe nele, dentro ou fora da pessoa, tudo que está a seu redor ou dentro de si. Estímulos sensoriais epidérmicos, cenestésicos, auditivos, olfativos, gustativos, ideias, sensações viscerais…

Como diz Rogers (1969, p. 410),

Podemos denominar a este mundo privado el  ‘campo fenoménico’, el  ‘campo experiencial’, o describirlo en otros términos. Incluye todo lo que es experimentado por el organismo, ya sea que estas experiencias sean percibidas conscientemente o no.

Considerei que poderíamos expandir um pouco essas ideias de campo experiencial e levar em conta que uma pessoa vive em seu mundo fenomenológico, desde antes do seu nascimento. Ainda in utero, ela vive inúmeras experiências que já fazem parte de toda a sua história pessoal.

Não é difícil concluir que, por experiência de cada um de nós, muito pouco do que vivemos é lembrado, é consciente em nós. Da maior parte das situações pelas quais passamos, não temos consciência.

Todavia, como afirma Rogers (1969, p. 411):

Sin embargo, también es cierto que gran parte de este mundo de experiencias es accesible a la conciencia, y puede hacerse conciente si la necesidad del individuo determina que ciertas sensaciones pasen a um primer plano porque se asocian con la satisfacción de una necesidad.

Nossa experiência clínica tem-nos levado a acreditar que um grande número de pessoas sente necessidade de tomar consciência das experiências que possam ser vitais para a compreensão de seus comportamentos.

O método da terapia face a face, mesmo quando desenvolvido numa abordagem centrada na pessoa, como o idealizamos, nem sempre oferece condições facilitadoras para que o cliente consiga satisfazer essa necessidade de simbolização de certas experiências passadas, trazê-las do fundo para frente, torná-las figuras, por motivos que veremos mais adiante.

Outro aspecto muito significativo dessa proposição sobre o mundo do cliente é descrito por Rogers (1969, p. 411):

Una verdad importante con respecto a este mundo privado del individuo es que sólo puede ser conocido, en un sentido genuino y completo, por el proprio individuo.

A partir da declaração acima, podemos notar que, na compreensão do processo de construção do self, só a pessoa, ela mesma, poderá compreendê-lo num nível próximo do “plenamente”.  Isso sugere que a compreensão de como uma pessoa constrói seu self só será realizada por ela própria, através desse mergulho no mundo do qual ela retirou a “matéria-prima” para tal construção.

Buscamos, como veremos no item seguinte, na Nova História e, principalmente, no livro de Paul Veyne, algumas ideias que pudessem enriquecer essa proposição. Entre elas, encontramos conceitos, tais como o de “natureza lacunar da história”, o de “tramas”, etc. Eles, somados à proposição 01, ajudaram imensamente a considerar a possibilidade de chegarmos a uma compreensão mais abrangente da construção do self, através da recapitulação progressiva da história do cliente. Como? Vejamos.

 

Primeiro, considerando a não possibilidade e a não necessidade de se resgatarem todas as experiências e os fatos vividos por uma pessoa, para se poder compreender como ocorreu a construção do seu self.

Segundo, o mundo interno do cliente é algo a ser “revivido” por ele, já que tem muito mais chance de perceber as sutilezas do contexto do mundo no qual tudo aconteceu.

Veremos, mais adiante, quando apresentarmos a estruturação do método RPHP, como essa proposição e esses conceitos da Nova História foram objetivados na elaboração do item, ao qual demos o nome de “O MUNDO”.

2.1.2 – El organismo reacciona ante el campo tal como lo experimenta y lo percibe. Este campo perceptual es, para el individuo, la ‘realidad’.

Não temos dúvida de que, quando um cliente nos diz que um fato ocorreu com ele, aquilo É VERDADE para ele. Mesmo que tudo nos leve a crer que sua afirmação seja absurda, sem lógica, não poderemos dizer que ela É FALSA.

Isso significa que, independentemente da realidade objetiva, o que determina e molda a construção do self é esta realidade, tal como ela é percebida pela pessoa.

Dizer que a irmã era uma pessoa má, que o colega era muito agressivo, que o primo era muito inteligente, que os pais nunca o amaram, que a casa onde morou quando era pequeno era muito grande, que as pessoas nunca gostaram dele, que sempre foi uma pessoa pouco inteligente, enfim, todas essas percepções do mundo, dos outros, de si mesmo, do modo como os outros o percebiam, etc., tudo isso pode ser considerado como “verdadeiro” e determina, a meu ver, o que Bazan (1988, p. 26) chama de “autoconstructo”, ou seja, tais percepções acabam por entrar na construção do self e, por sua vez, o self passa a interferir na percepção da relação da pessoa com o seu campo fenomelógico.

Rogers (1969), mais adiante nos diz:

(…) en todos estos casos la conducta se adecua a la realidad-tal-como-es-percebida. Esta misma proposición se puede ejemplificar igualmente con las llamadas condiciones anormales (p. 412).

Essa afirmação acima leva-nos a tentar verificar o que chamamos de reconstrução do self, juntando-a com uma outra, que é a seguinte:

En la terapia, donde frecuentemente se evidencia que cuando la percepción cambia se modifica la reacción del individuo, se ve muy claramente que el campo perceptual es la realidad ante la cual reacciona el individuo (Rogers, 1969, p. 413).

Certamente, o que esperamos através de uma psicoterapia é a mudança do cliente. Mas o que é essa mudança senão a mudança da sua percepção da realidade, tanto a interna como a externa, tanto a do autoconstructo como a da “realidade” na qual ele se organiza?

Partindo da hipótese de que uma pessoa, apresentando uma conduta inadequada, possivelmente tenha desenvolvido seu autoconceito num contexto que favorecia o aparecimento de mecanismos que negavam ou impediam seu crescimento mais saudável, acreditamos que, se conseguirmos criar um novo contexto no qual o cliente possa, não somente sentir-se menos ameaçado, como também a oportunidade de “re-ver” sua realidade, ou seja, se ele pudesse rever historicamente os fatos que  longitudinalmente marcaram sua história, teria mais condição de “re-simbolizar” suas experiências e, com isso, conseguir realizar uma mudança tal como a concebemos linhas atrás: mudança de percepção = mudança de reação.

2.1.3 – El organismo reacciona como una totalidad organizada ante su campo fenoménico.

Na proposta metodológica que estou apresentando, essa proposição nos ajuda a lembrar que a personalidade não funciona por partes, ou seja, nenhum fato isolado é determinante de nenhum tipo de comportamento. Cada evento, cada experiência atua no indivíduo de maneira a comprometer toda a sua organização física e/ou psíquica. Embora a palavra “organísmico”, em Rogers, não tenha a conotação de “somático”, essa proposição, pelo que ela sugere em termos de “totalidade”, chama-nos a atenção para a interligação entre o psíquico e o somático, para o indivíduo como um todo.

Como uma das consequências disso tudo, o presente método não deixa de lado a importância da atenção a ser dada ao corpo, às suas reações, à sua ligação direta com as mudanças ocorridas no self, e vice-versa, o quanto as sensações corporais são importantes para a promoção da revisão do self.

Veremos, quando estiver falando da estruturação das sessões de RPHP, o quanto a preparação, a nível corporal, se faz importante (talvez imprescindível) para o atingimento de nossos objetivos.

2.1.4 – “El organismo tiene una tendencia o impulso básico a actualizar, mantener y desarrollar al organismo experienciante.”

A proposta de rever, progressivamente, toda a história do cliente pode parecer inicialmente como uma ideia já bastante desgastada, antiga…

Talvez o que haja de novo nessa proposta seja, exatamente, a forma como se tenta alcançar esse objetivo.

O RPHP parece:

  1. favorecer as escolhas dos movimentos;

  2. facilitar a adequada simbolização das experiências, pois propicia o surgimento de simbolizações mais acuradas;

  3. com isso, confundir menos os comportamentos regressivos com aqueles que

     promovem o aperfeiçoamento do self.

A importância de se conseguir isso pode ser inferida a partir do que nos fala Rogers, (1969, p. 416/17):

La tendencia operará toda vez que se dé la oportunidad de una nítida  lección entre el movimiento progressivo y la conducta regresiva.

Hay um problema, sin embargo, que esta proposición no resuelve adecuadamente: ¿Por qué los factores de la elección deben ser claramente percibidos para que esta tendencia progresiva opere? Parecería que, a menos que la experiencia sea simbolizada adecuadamente,  a menos que se establezcan apropriadas y exactas diferenciaciones, el individuo confundirá la conducta regresiva con la conducta autorrealizadora.

Tentei alcançar tais objetivos levando em consideração o fato de quanto mais se puder adequadamente simbolizar a experiência, maior será o movimento para o aperfeiçoamento do self, para uma estruturação mais próxima do que se poderia denominar de “melhora organísmica”.

Quando proponho construir um contexto mais completo (ver a estrutura método) do que aquele que encontramos nos contatos terapêuticos comuns, convencionais, estou tentando criar uma condição mais favorável para que a tendência atualizante possa operar.

 

2.1.5- “La conducta es básicamente el esfurezo intencional del organismo por satisfacer sus necesidades tal como las experimenta, en el campo tal como lo percibe.”

Rogers (1969, p. 417), citando as pesquisas de Ribble e de outros, fala-nos da conclusão a que chegaram sobre a origem da necessidade de afeto. Diz ele:

(…) parecería indicar que la  necesidad  de afecto es una necesidad fisiológica, y que el bebé que no tiene un contacto físico íntimo adecuado con una persona materna queda en un estado de tensión fisiológica insatisfecha. Si esto ocurre en el bebé, entonces es fácil ver cómo esta necesidad, igual que todas las demás, se elabora y canaliza a través del condicionamiento cultural en necesidades que sólo remotamente se basan en la tensión fisiológica subyacente.

Essa proposição é muito importante para que possamos, dentro da teoria da personalidade, entender como essa necessidade de afeto vai influir no desenvolvimento e na construção do self.

A realidade, como nós a percebemos, é que determina nossa conduta. Ora, e a percepção sempre condiz com a realidade? Até que ponto imaginamos fatos e os tomamos como realidade?

Essa linha divisória é, muitas vezes, tênue. E, por isso, observa-se que vários clientes fazem afirmações “verdadeiras” e só depois podem admitir que eram “falsas”.  As “verdadeiras”, antes, norteavam sua conduta. As “falsas”, agora, são as que a norteiam.

Onde quero chegar com isso?

Quero dizer que, na proposta metodológica que estou aqui apresentando, a “imaginação” é utilizada como um instrumento valioso. E, voltando a citar Rogers (1969, p. 418), vejamos o que esse autor nos diz:

Frecuentemente, por supuesto, la percepción tiene un alto grado de correspondencia con la realidad, pero es importante reconocer que es la percepción, y no la realidad, lo crucial en la determinación de la conducta.

No processo de recapitulação da história pessoal, que, como toda história, é lacunar, há muitos espaços vazios (experiências não simbolizáveis ou de difícil simbolização). Certamente esses espaços são preenchidos por fantasias, e muitas delas são “mais fortes” do que os próprios fatos relembrados.

Poderíamos, inicialmente, questionar a validade de tais fantasias na “descontrução” e na “reconstrução” do self. Todavia, nossa prática indica que elas são muitíssimo importantes para a compreensão do modo como o self foi, aos poucos, sendo estruturado.

Nessa proposição, linhas adiante, Rogers toca num ponto muito interessante, que me deu muita preocupação no início de meus trabalhos práticos na RPHP. Trata-se do conceito de causalidade.

Nas terapias calcadas numa proposta explicativa, tal como as utilizadas nas pesquisas consideradas “científicas”, o método hipotético dedutivo propõe explicar com segurança as causas dos fenômenos observados. As palavras principais, valorizadas, são: POR QUE e PORQUE.

Nessas terapias, o passado serve para explicar o presente.

No método que estamos propondo, o objetivo está longe de ser os POR QUÊS e os PORQUÊS.

Não quero usar o passado para, com ele, construir uma explicação. Quero somente, através dele, chegar a uma COMPREENSÃO do que está ocorrendo no presente e DENTRO DA PESSOA.

Rogers (1969, p. 418) nos fala:

También deveríamos mencionar que en esta concepción de la motivación, todos los elementos eficaces existem en el presente. La conducta no es  ‘causada’ por algo que sucedió en el pasado. Las tensiones presentes y las necesidades presentes son las únicas que el organismo intenta reducir o satisfacer.

A experiência com o RPHP me leva a acreditar que, embora o passado não “cause” o presente, o presente está “grávido” de passado. Está mergulhado numa trama que move a conduta, que dinamiza o presente, que age de modo muito determinante sobre as percepções atuais do indivíduo, tanto as do seu mundo externo como as do seu mundo interno. Quando conseguimos “presentificar o passado”, conseguimos, paralelamente, compreender o mecanismo de sua ação sobre o hoje e o hoje.

Rogers (1969, p. 418) concorda com a importância do passado, mas faz uma boa ressalva que ajuda, mais ainda, a reforçar o argumento contido no parágrafo anterior:

Si bien es cierto que la experiencia pasada há servido, evidentemente, para modificar el significado que será percebido en las experiencias presentes, no tiene lugar ninguna conducta que no se oriente a satisfacer una necesidad presente.

2.1.6 – “El mejor punto de vista para comprender la conducta es desde el propio marco de referencia del individuo.”

         Esta proposição nos oferece uma série de possibilidades de aprofundamento

sobre o significado dos objetivos do método de recapitulação progressiva.

  Quase tudo o que fazemos em nossas sessões baseia-se em tentar facilitar, ao máximo, a aproximação do cliente do seu próprio mundo, com a intenção de ajudá-lo a chegar a um nível de percepção do seu universo (o atual e o passado) com o menor índice de distorção, com o nível menor possível de defesas.

Uma das condições básicas para a colocação em marcha do processo terapêutico é a empatia do terapeuta. Sua capacidade para se colocar no universo do cliente num COMO SE. No método que lhes estou trazendo, há quase que uma inversão do modo como essa condição entra no processo. Priorizo-o e tento intensificar a empatia do cliente por ele mesmo.

Imaginei que, se criasse um meio através do qual o cliente pudesse “ver-se”, “ouvir-se”… talvez ele passasse a ter para consigo mesmo uma atitude empática, pois juntaríamos duas condições importantes: a compreensão de si como um EU e a compreensão de si como um OUTRO.

A compreensão do outro parece ser sempre mais fácil de se atingir do que a autocompreensão. Por isso, no processo de retornar ao passado, criei um duplo do cliente de tal forma que ELE, ao voltar no tempo, se encontra com ele no passado.  Essa percepção progressiva e retrospectiva de si mesmo, ao longo dos anos, recapitulando passo a passo sua própria história, tem-nos mostrado que o indivíduo, passo a passo, vai podendo alcançar um nível muito elevado de autoaceitação, através da reconstrução de uma história, sua história, a qual vai, aos poucos, se tornando clara, compreensível, aceitável.

As consequências disso são óbvias: autoaceitação, autocompreensão, compreensão dos outros (principalmente daqueles que fizeram parte de sua história), um desligamento do passado que, antes, o travava, como uma âncora, que não o deixava zarpar, “navegar no seu mar existencial”.

Durante este processo, o cliente alcança o marco de referência interna de si mesmo. Ele é seu próprio terapeuta, poderíamos dizer assim, e o seu terapeuta, como deveria ser sempre, é apenas um auxiliar, um ajudante que arma e desmonta o cenário

em que a história de seu cliente se desenrola.

Rogers (1969, p. 419) faz uma observação sobre essa proposição:

Por lo tanto parecería que se puede comprender mejor la conducta alcanzando, en la medida de lo posible, el marco de referencia de la propia persona, y percibiendo el mundo de la experiencia a través de sus ojos.

Acredito que, através do RPHP, essa proposição de Rogers sofra uma certa inversão, como falei, linhas atrás, já que tudo o que é produzido nas sessões parte do cliente, de seu centro de referência interno, não havendo, quase nunca, a participação do terapeuta,tanto na busca dos conteúdos das experiências passadas, como na organização e na interpretação delas. Tanto a desconstrução como a reconstrução do self são realizadas quase que integralmente pelo próprio cliente.

 

Essa última referência que fiz a Rogers poderia ser reescrita da seguinte maneira:

Portanto, pareceria que o cliente pode compreender melhor sua conduta alcançando, na medida do possível, o seu próprio marco de referência e percebendo seu mundo da experiência através de seus próprios olhos.

Afinal de contas, não é, de certa maneira, uma das coisas a que nos propomos numa terapia bem sucedida?

Os meios para atingir isso é que, no RPHP, tomam um formato diferente e, provavelmente, mais dinâmico.

Chego, às vezes, a pensar (talvez prematuramente ou pretensiosamente) que ele é mais eficaz.

2.1.7- Una parte del campo perceptual total se diferencia gradualmente, constituyendo el sí mismo (self).

         O self é empregado, aqui, como a consciência de ser ou de funcionar, e isso é central para a compreensão da estrutura e do desenvolvimento do RPHP.

           

 

2.1.8- Como resultado de la interacción con el ambiente, y particularmente como resultado de la interacción valorativa con los demás, se forma la estructura del sí mismo (self), una pauta conceptual organizada, fluida pero congruente, de percepciones de las características y relaciones del “yo” o del “mi” conjuntamente con los valores ligados a estos conceptos.

 

 

2.1.9- Los valores ligados a las experiencias, y los valores que son parte de la propia estructura, en algunos casos son valores experimentados directamente por el organismo, y en outros son valores introyectados o recibidos de otros, pero percibidos, de una manera distorsionada, como si hubieran sido experimentados directamente.

Rogers sugere que se analisem estas duas proposições em conjunto, pois elas se complementam.

No caso do método que está sendo apresentado, essas afirmações me levaram a tentar construir um modo de trabalhar com o cliente de tal forma que ele abandonasse, principalmente nas sessões iniciais, a preocupação de recuperar lembranças do início de sua história, através de uma linguagem verbal. Além disso, que ele pudesse observar “visceralmente” o que se passa no seu corpo, sentir sua avaliação “organísmica” frente às suas experiências, ou seja, como nos fala Rogers:

(…) estos enunciados parecen ser descripciones adecuadas de la experiencia del bebé, aunque no dispone de los símbolos verbales que hemos utilizado.  Parece valorar aquellas experiencias que percibe como vitalizadoras, y valorar negativamente aquellas experiencias que parecen amenazarlo o que no lo protegen (p. 423).

É muito difícil para alguns clientes acreditarem que, na medida em que se deixem mergulhar em suas fantasias sobre o que pode ter sido o início de sua história, isso lhes traga algum benefício na compreensão de “sua realidade”. Todavia, com o passar do tempo de vivência nesse processo, começam a validar essa proposta.

Meu intuito é produzir um clima tal que favoreça ao cliente poder recriar um contexto (mesmo que a nível de fantasia) semelhante àquele no qual ele se desenvolveu. Esse contexto básico inclui:

  • uma visão geral do mundo, do seu “campo fenomênico”, como ele era composto;

  • uma visão do seu contato com as pessoas que faziam parte de seu mundo, nas diversas fases de sua vida, e o modo como essas pessoas influenciaram

seu modo de se perceber;

  • uma visão dos seus sentimentos em relação a tais pessoas, que conviviam com ele e o grau de significância que lhes atribuía;

  • uma visão do juízo (julgamento) que ele fazia de si mesmo.

Esses quatro itens, uma vez explorados pelo cliente, praticamente, nos colocam no íntimo da engrenagem de construção, de estruturação do self, ou seja:

La estructura del sí mismo es una configuración organizada de percepciones que son admisibles en la conciencia. Está integrada por elementos tales como las percepciones de las propias características y capacidades; los perceptos y conceptos del sí mismo en relación con los demás y con el ambiente; las cualidades valiosas que se perciben asociadas con experiencias y objetos; y las metas e ideales que se perciben con valencias positivas o negativas. Por lo tanto, es el cuadro organizado, que existe en la consciencia ya sea como figura o como fondo, de sí mismo y de sí mismo en relación, junto con los valores positivos o negativos que se asocian con esas cualidades y relaciones, tal como se percibe que existen en el presente, pasado o futuro (Rogers, 1969, p. 425).

O que pretendo com tal revisão, basicamente, é, através da memória, em todos os seus níveis, e da imaginação, buscar fatos (reais ou não), situações vivenciadas (reais ou não) pelo cliente, as quais serviram de base para a construção de seu self.  Queremos entender um pouco o contexto no qual a pessoa viveu e, assim, poder compreender melhor o significado que tem para ela cada elemento de seu mundo, cada valor que lhe foi atribuído, cada conceito que faz de si, cada experiência que viveu, verdadeira ou equivocadamente, como sua… Queremos entender um pouco mais como aquela pessoa passou a agir de modo incongruente, em que negou sua avaliação organísmica e adotou valores externos, os valores de pessoas significativas para ele. Como ela foi, aos poucos, deixando de ser ela mesma.

Lembramos, aqui, de uma frase de Millor Fernandes: “Todo homem nasce original e morre plágio”. Poderíamos, então, dizer que pretendemos, através dos recursos que estamos utilizando, compreender um pouco como essa transformação foi acontecendo, como aquela pessoa deixou de ser original e se foi tornando em plágio.

2.1.10- A medida que se producen experiencias en la vida del individuo, éstas son: simbolizadas, percibidas y organizadas en cierta relación con el sí mismo,

  1. ignoradas porque no se percibe ninguna relación con la estructura del sí mismo,

  2. se les niega la simbolización o se las simboliza distorsionadamente, porque la experiencia no es compatible con la estructura del sí mismo.

É muito importante que o cliente simbolize corretamente suas experiências. Entretanto, sabemos que a simbolização correta não é tão simples assim. Há vários mecanismos que impedem que isso aconteça.

Na tentativa de manter a estrutura do self, o indivíduo ora ignora, ora distorce ou até intercepta as experiências que o poderão forçar a mudar sua autoimagem.

Procurei, através de alguns recursos, diminuir a ocorrência de tais percepções prejudiciais. Acredito que, além da criação de um clima de confiança, de empatia, de congruência por parte do terapeuta, podemos também ajudar o cliente a rever suas experiências passadas e as atuais, experimentando, nessas ocasiões, menos tensão, menos defesas.

O fato de ele rever, progressivamente, do início para o final, sua própria história, principalmente estando num lugar de “espectador de si”, produz um resultado bastante significativo, reduzindo o grau de ameaça. Provavelmente, com isso, o cliente passa a compreender melhor o modo como tudo foi sendo construído, e, assim, pode “ver-se” e “ver” os demais por um ângulo bem novo.

2.1.11- La inadaptación psicológica se produce cuando el organismo rechaza de la conciencia experiencias sensoriales y viscerales sifnificativas, que en consecuencia no son simbolizadas y organizadas en la totalidad de la estructura  de su sí mismo. 

     Cuando se produce esta situación hay una tensión psicológica básica o potencial.

2.1.12 La adaptación psicológica existe cuando el concepto de sí mismo es tal que todas las experiencias sensoriales y viscerales del organismo son, o pueden ser, asimiladas en un nivel simbólico en relación compatible con el concepto que tiene de si.

(…) la aceptación conciente de los impulso y percepciones aumenta enormemente la posibilidad de control conciente. Es por essa razón que la persona que há llegado a aceptar sus propias experiencias también adquiere la sensación de controlarse a si misma (Rogers, 1969, p. 435).

Observei que, na utilização do RPHP, a possibilidade de “manter contato” com aspectos da vida do cliente, até então negados por falta de compreensão dos mesmos, favorece a assimilação e a aceitação das experiências, e parece levar a pessoa a “assenhorear-se” de si, aumenta sua capacidade de “administrar”, de “gerenciar” sua vida. Isso, talvez, ratifique o que Rogers (1969, p. 435) nos afirma:

La sensación de autonomía, de autodominio, corresponde a la accesibilidad de todas las experiencias a la conciencia.

 

 

 

 

2.2 – A NOVA HISTÓRIA EM VEYNE    

 

2.2.1Ideias Gerais sobre o Conceito de Nova História e determinadas concepções de alguns historiadores

 

As citações, a seguir, foram tiradas da monografia “Uma Prática Clínica e Um Método Histórico” (Belas, p. 95):

 

Inicialmente falarei um pouco sobre essa “Nova História”.

Ela é a história associada à chamada École des Annales, agrupada em torno da revista Annales: économies, societés, civilisations (Burke, 1992, p. 9).

Uma de suas características é o interesse por todas as atividades humanas.

Como disse Haldane (apud Burke, 1992, p. 11): Tudo tem uma história, tudo tem um passado que pode, em princípio, ser construído e relacionado ao restante do passado.

Nas últimas décadas, vimos surgir uma ideia que considera que a realidade é social ou culturalmente constituída, e o que, até então, era considerado imutável, passa a ser visto como sujeito a variações, tanto no tempo quanto no espaço, daí se poder falar sobre várias histórias, tais como a da infância, a da loucura, a dos gestos, a dos odores, a do corpo…

Como acentua Burke (1992): A base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente constituída.

 

Uma outra característica dos novos historiadores, e chamamos atenção aqui para esse ponto, que nos interessa em especial, devido à própria ideia que tentamos apresentar nessa monografia, é que se eles estão mais preocupados que os antigos historiadores com uma gama mais vasta de atividades humanas, então, passam também a examinar, com mais cuidado, maior variedade de evidências: visuais, orais, estatísticas…

Em relação aos dados estatísticos quantitativos, os novos historiadores passaram a utilizar uma metodologia em que a medida passava a ser um aspecto de grande relevância para a compreensão dos fatos históricos e, em 1987, chegou a ser fundada uma associação, na Grã-Bretanha, que teve o nome de “Associação para a História e Computação”.

A Nova História está mais preocupada com a análise das estruturas do que com uma narrativa dos acontecimentos. O que importa são as mudanças de longo prazo (la longue durée) (conf. Braudel, apud Burke, 1992).

Enquanto a história tradicional se centrava nos grandes fatos dos grandes personagens, a Nova História e os novos historiadores se preocupam com as opiniões das pessoas comuns, com sua experiência da mudança social, com a história das mentalidades coletivas ou dos discursos e das “linguagens”.

A história tradicional se baseava exclusivamente em documentos. Hoje, questiona-se a limitação que essa posição trouxe ao conhecimento de uma variedade grande de atividades humanas, que poderiam ser examinadas através de evidências usuais, orais, estatísticas sobre o que nos referimos linhas atrás.

Na Nova História, observa-se uma preocupação tanto com os movimentos coletivos, quanto com as ações individuais, tanto com as tendências, quanto com os acontecimentos.

Ela também questiona o posicionamento tradicional de que a História é objetiva e deve apresentar aos leitores os fatos como eles realmente aconteceram.   Esse ideal é considerado, pela Nova História, como irrealista, pois,

(…) não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular. E, mais, ‘nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra’ (Burke, p. 15).

Essa tendência, que ficou mais evidenciada nos anos 70 e 80, como uma reação ao paradigma tradicional da história, atingindo historiadores de vários países, na realidade, tem uma origem bem mais antiga, e, para muitos, ela se associa a figuras, tais como Lucien Febvre e Marc Bloch, fundadores dos Annales, em 1929 e, mais tarde, Fernand Braudel.

Nessa mesma época, na Grã-Bretanha, L. Namier e R. H. Tawney apresentaram ideias que se aproximam da proposta da Nova História.

Em 1900, Karl Lamprecht expressa seu desafio ao paradigma tradicional. Em 1912, James Harvey Robinson publica um livro com o título A Nova História e, em relação ao método, este autor fala:

A Nova História vai servir-se de todas aquelas descobertas que estão sendo feitas sobre a humanidade pelos antropólogos, economistas, psicólogos e sociólogos (Cf. Burke, A Escrita da História, 1992, p. 17).

Se caminharmos um pouco mais para trás no tempo, encontraremos sociólogos como Comte, Spencer e Marx que eram interessados pelas estruturas das histórias, mais do que pelos acontecimentos.

E, ainda mais para trás, o movimento internacional para a escrita de uma história

(…) relacionada às leis, ao comércio, à manière de penser de uma determinada sociedade, com seus hábitos e costumes, com o espírito da época (Burke, p. 18-19).

Como nos mostra P. Burke (p. 20),

(…) o novo paradigma também tem seus problemas: problemas de definição, problemas de fontes, problemas de método, problemas de explicação.

Esse mesmo autor ressalta, ainda mais, que:

(…) os maiores problemas para os novos historiadores, no entanto, são certamente aqueles das fontes e dos métodos (Burke, p. 25).

No presente documento, apresento um método que tenta trabalhar sobre as fontes históricas do sujeito. Um método que procura estudar uma pessoa através de sua história, utilizando, para isso, diversos recursos que viabilizam um contato mais confiável do cliente com vivências que foram significativas, e, de certo modo, determinantes para a estruturação de seu modo de ser na atualidade.

Tal método se aproxima, em suas bases e premissas, do histórico, como é pensado hoje pelos “novos historiadores”.

Ele se preocupa com a possibilidade de se chegar a compreender como uma personalidade, como foi definida por Carl R. Rogers, em 1969, vai sendo estruturada, como tal compreensão pode favorecer o surgimento de uma reestruturação dela e, através disso, surgirem novas formas de ações que provoquem mudanças na relação entre a pessoa e o mundo que a cerca, de modo mais construtivo para si, escapando de formas tradicionais, fixas, de comportamento, as quais lhe foram impostas, na maior parte das vezes, de maneira sutil, pelo ambiente no qual foi criada.

Como nos diz L.Febvre,

(…) o indivíduo é sempre o que permitem que ele seja tanto a sua época quanto o seu meio social (1992, p. 112).

Na página seguinte, o mesmo autor nos fala:

 Se, em todo indivíduo, se deve distinguir inicialmente uma certa pessoa caracterizada, de modo mais ou menos nítido, por um conjunto de traços que lhe pertencem propriamente, e cuja reunião se faz segundo uma fórmula e com uma dosagem particular; se, em seguida, se deve apreender nesse mesmo indivíduo um representante da espécie humana portador das mesmas características distintivas que os membros de um certo grupo dessa espécie – e, principalmente, um participante de uma sociedade bem determinada e datada: de um lado atenua-se singularmente o contraste entre o indivíduo e a sociedade, já que não se trata mais de opor esquematicamente um ao outro; de outro lado, o método de investigação, quando se trata do indivíduo, começa a se delinear de modo nítido.

Tentarei deixar mais clara a relação entre minha proposta “metodológica” e o modo como A Nova História aborda seu campo de estudo, mas, talvez, fosse pertinente citar C. Blondel, quando aquele autor, na sua Introduction à la psycologie collective, explica o que poderíamos identificar como um dos objetivos perseguidos tanto pelos novos historiadores, quanto pelo meu método:

(…) descrever os sistemas mentais próprios de cada um, e analisá-los, tanto quanto possível, procurando-se apreender o mecanismo de sua elaboração, o jogo de seu desenvolvimento e a natureza das relações que ligam entre si seus elementos (cf. Blondel, apud Febvre, 1992, p. 114).

2.2.2- Algumas ideias de Paul Veyne e sua ligação com o método RPHP

Depois de pensar um pouco em como fundamentar o meu trabalho do ponto de vista da metodologia, cheguei à conclusão de que nada melhor para isso do que focalizar o trabalho de Paul Veyne, refletir sobre o que esse autor nos fala sobre a história e tentar fazer um certo paralelo entre o que ele apresenta como característico da Nova História e o que considero como característico do meu trabalho terapêutico, quando utilizo o método de Recapitulação Progressiva da História Pessoal (RPHP).

Para que a leitura fique menos cansativa, já que serão muitas as citações que farei, proponho que todas as que vierem entre aspas, neste item, sejam entendidas como palavras de Paul Veyne (1992), no seu livro Como se Escreve a História.

Como tentarei deixar claro, em outra parte deste trabalho, a psicoterapia, em resumo, é um debruçar-se, tanto do cliente quanto do terapeuta, sobre a história do cliente, sobre a história do terapeuta, sobre a história da relação entre eles.

Considero que a maneira de se fazer história, mais recentemente, se assemelha ao modo como algumas escolas psicológicas tentam fazer psicoterapia. Nesse sentido, por exemplo, o conceito de evento é um dos principais que marcam o modo novo de se abordar os dados históricos. Como nos diz aquele autor,

A história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso” (p.11).

Diria eu:

A psicoterapia é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso.

O conceito de evento, entretanto, traz consigo uma questão interessante, que é o modo como o entendemos na atuação terapêutica. Há uma defasagem entre a experiência vivida (o evento propriamente dito) e a reflexão sobre ela. Só apreendemos um evento através de documentos, de indícios, o que cria possibilidade de múltiplas interpretações de um mesmo fato histórico.

“Por essência, a história é conhecimento mediante documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em fotomontagem e não mostra o passado ao vivo ‘como se você estivesse lá’” (p. 12).

Surge, aí, um outro paralelo: quando uso o RPHP, lanço mão de vários tipos de documentos e, através deles, procuro ir além desses dados estáticos, em busca de algo que tais indícios nos apontam. Assim, a proposta de caminhar através do tempo, em busca de dados significativos que nossa memória reserva no mais recôndito de si, é, como costumo dizer, um ‘catar pedras’, é um caminhar sem direção prévia, ir, abandonar-se.

Também, quando peço aos clientes que peguem seus álbuns de fotografia, objetos antigos, que a família ainda guarda, e que pertenceram a eles, estou tentando resgatar documentos concretos do passado. Entretanto, o que pretendo com isso é ter somente pontos de partida, pontos de desencadeamento de lembranças, uma maneira de dar concretude a sentimentos, emoções e vivências, que foram experimentadas.  Sei que não teremos condições de ‘viver’ novamente o passado, e até acredito que, mesmo se isso pudesse acontecer, de pouca coisa nos serviria (a mim e ao cliente) tal “revivência”. O que me importa, realmente, é tornar o passado o mais claro possível, o mais compreensível possível, de modo que o presente receba igual clareza, se beneficie com a novidade que surge a partir de uma “re-visão dos documentos que são resgatados naquele retrocesso. O cliente que, até então, ao olhar para seu passado, não conseguia senão vê-lo de modo estático, cristalizado, no momento em que conseguimos explorá-lo de maneira a permitir outras visões dos fatos acontecidos, outras composições desses mesmos fatos conhecidos, muitas vezes dados simples que compõem o seu cotidiano, começa a ficar diante de um quadro novo que lhe permite perceber, com surpresa e curiosidade, a si, de modo também novo.

Em relação ao que relata no parágrafo acima, o autor que estamos focalizando nos diz:

“Um evento destaca-se sobre um fundo de uniformidade; é uma diferença, algo que não poderíamos conhecer a priori: a história é filha da memória” (p. 12).

E, mais adiante:

“(…) a banalidade do passado é feita de pequenas particularidades insignificantes que, ao se multiplicarem, acabam por compor um quadro bem inesperado” (p. 13).

O recapitular a história de uma pessoa não significa repetir acontecimentos, mas, sim, tentar criar condições, para que, ao recapitular um momento de sua vida que já foi vivido, ela possa dar-se conta de uma dinâmica envolvida na estrutura de seu comportamento, quando colocado em situações semelhantes. Ela não vive, de novo, o passado. Ela sabe que o que experimentou, na segunda vez, é uma nova experiência. Só ela pode reviver, repetir sua história, mas, mesmo assim, por mais fiel que possa ser a reprodução de um passado, o segundo momento, a recapitulação, será sempre um segundo momento.

“(…) que dois acontecimentos se repitam, ainda que se repitam exatamente da mesma forma, é uma coisa; que continuem sendo dois, é outra, e é o que conta para o historiador”. “(…) a história nunca se repetiria, mesmo que vivesse a contar a mesma coisa“ (p.14).

Acho importante chamar atenção para essa maneira de encarar a história, pois, comumente as pessoas pensam no RPHP como uma forma de regressão, de revivência do passado. Nada mais distante para nós do que a ideia de estarmos trabalhando com regressão no sentido em que essa técnica é conhecida vulgarmente.

Acreditamos que o importante não é voltar no tempo, mas nos situarmos no tempo. É entendermos que estamos falando de dois momentos distintos, o hoje e o ontem. Por isso, o choro que estamos vivendo hoje não tem nada a ver com o de ontem, ainda que esteja nele implicado um fato semelhante: uma lembrança de uma situação triste que provocou muita emoção. O evento, a lembrança de tal situação, os elementos que estão a ela ligados, todo o contexto no qual ocorreu aquela vivência de tristeza, produz, novamente, a manifestação daquela emoção, no caso, o choro.

Compreender o choro, entendo que seja sempre compreender aquele choro, daquele momento, daquela pessoa que está chorando,  pelas razões que são somente dela.

Uma outra questão com a qual me deparo, e que sempre suscita perguntas e dúvidas a quem lê o que escrevo é a seguinte: numa recapitulação de uma história pessoal, não é possível se relembrar de tudo o que se viveu. Como, então, se poderá pensar em recapitular, se há espaços entre as lembranças? Que importância há nesses intervalos? O que é realmente significativo a ser lembrado? Que o critério se usará para se considerar importante ou não um fato rememorado?

Bem, vamos por partes.

Veyne nos fala da natureza lacunar da história” (p. 18), e, através dele, talvez seja mais fácil responder a algumas perguntas que me fazem. Diz aquele autor:

“(…) constatamos, simplesmente, que o caráter heterogêneo das lacunas não nos impede de escrever algo a que se dá, ainda assim, o nome de história (…)” (p. 18).

E, mais à frente um pouquinho:

“Mas, o mais curioso é que as lacunas da história fecham-se espontaneamente a nossos olhos e que só a discernimos com esforço, tanto são vagas as nossas ideias sobre o que devemos, a priori, esperar  encontrar na história, de tal modo a abordamos desprovidos de um  questionário elaborado. Um século é um branco nas nossas fontes, e o leitor mal sente a lacuna.

O historiador pode dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas: o leitor confiará nele, como um bom romancista, e julgará que esses dez anos são vazios de eventos.”

Esse ponto é muito significativo para a RPHP, já que, ao pretendermos trabalhar com a história da pessoa, esbarraremos com espaços “vazios” durante todo o processo terapêutico, durante toda a recapitulação.

Não me preocupo com a sucessão de fatos. As lacunas existem e o fato de existirem não atrapalha o processo. Considero que, ao se lembrar de fatos passados, o sujeito “seleciona” as lembranças, mas isso não impede o surgimento de um sentido maior, mais abrangente, que liga os “pedaços lembrados” e traz uma dimensão que nos interessa particularmente, que é a compreensão de um “modo de agir” que acabou sendo construído no sujeito, por meio de uma combinação especial de acontecimentos ligados à sua vida.

“Os fatos não têm dimensões absolutas“ (p. 20).

Na realidade, um fato que, ao ser contado pelo cliente, possa parecer ao terapeuta como insignificante, pobre, ao contrário dessa sua maneira de perceber, poderá ser de extrema importância no desencadeamento de maneiras de agir do cliente. Por isso, cada fato apresentado, lembrado, trazido para fora para ser apreciado, visto, pensado, é igualmente significativo, tem o “mesmo peso”, o mesmo valor.

“No entanto, permanece a impressão de que a guerra de 1914 é, ainda assim, um acontecimento mais importante do que o incêndio do Bazar de Caridade ou do que o caso Landru; a guerra é história, o resto é notícia de jornal. Isso não passa de ilusão (…)” (p. 20).

É! Ainda, muitos de nós, terapeutas, não conseguem dar mesmos pesos e medidas aos fatos. Ainda hierarquizamos, sem nos darmos conta de que o que associa um fato ao outro é dificilmente detectável, avaliável…

“Quando muito, pode-se pensar que certos fatos são mais importantes que outros, mas mesmo essa importância depende, totalmente, dos critérios escolhidos por cada historiador e não tem uma grandeza absoluta” (p. 20).

A minha tentativa de procurar com o cliente fatos que nos possam nortear na compreensão de como ele chegou a ser o que é (uma grande pretensão minha, sei disso), encontra ressonância também em Veyne, quando ele nos diz:

“Ora, quanto mais se alarga, a nossos olhos, o horizonte factual, mais ele parece indefinido: tudo o que compõe a vida quotidiana de todos os homens, inclusive o que só um virtuose do diário íntimo discernira nela, tudo isso constitui, de direito, caça para o historiador, pois, em que outra região do ser que não na vida quotidiana, dia após dia, poderia refletir-se a historicidade?“

         E o autor explica, mais adiante o significado disso:

“(…) significa que um acontecimento só é conhecido mediante indícios e que qualquer fato da vida de todos os dias é indício de algum evento (quer esteja catalogado, quer durma, ainda, na floresta do não-factual” (p. 21).

Quando disse, logo acima, que tenho consciência de que é muito difícil a compreensão dos fatos, por eles carregarem elementos que escapam de nossa capacidade de penetração na realidade de cada pessoa, que nos traz um material tão particular, que diz respeito somente a ela, como diz Veyne:linhas tão idiossincrásicas” (p. 22), não estou abandonando essa proposta nem considerando que, por ser um caminho difícil, não seja um caminho promissor.

Embora o escutar o que o cliente nos relata, tentar ver cada fato narrado como um universo imenso, procurar entender cada fato a partir de uma ideia que nos ajude a percebê-lo como um elemento que compõe algo maior, saber que cada relato de acontecimentos expressa uma forma particular de vivenciar uma realidade que também é profundamente particular, enfim, ter isso tudo sempre muito presente e claro para nós, que estamos vivendo aquele momento de encontro com o cliente, possibilita um “chegar perto”, o mais possível, do universo do outro.

Nunca poderemos viver o universo do outro, mas, quanto mais perto pudermos estar dele, maior a nossa compreensão de suas narrativas.

“Um acontecimento só tem sentido dentro de uma série, o número de séries é indefinido, elas não se ordenam hierarquicamente e veremos que também não convergem para um geometral de todas as perspectivas. A ideia de história é um limite inacessível, ou, antes, uma ideia transcendental” (p. 23/24).

Que interesse tem isso tudo para nós? Na realidade, quando me estou propondo usar um método histórico, não posso me iludir com a ideia de que vamos juntar fatos (documentos, indícios) sobre a vida do cliente e, a partir daí, explicar como ele acabou sendo “construído”. O recolhimento de fatos, de uma série deles, jamais nos dará condição de afirmar nada sobre o cliente, sobre os porquês de seu modo de ser. Entretanto, quando podemos ter uma visão de uma sucessão de fatos que foram ocorrendo ao longo de um período extenso da vida do cliente, e que tais fatos sugerem um entrelaçamento entre eles, e isso passa a iluminar nossa compreensão sobre a dinâmica mais característica de seu modo de agir, de funcionar, de existir… aí, então, estamos diante de algo novo, relativamente ao que aflige o cliente. É como se pudéssemos chegar mais próximo de um movimento, de algo que é fluido, que escapa das mãos, mas não do “sentir”. Isso, que denomino aqui de movimento, talvez possa ser chamado de “devir”.

“A todo momento,dão-se acontecimentos de toda espécie e o nosso mundo é o do vir a ser(…)” (p. 25).

O que faz com que esse mundo do vir a ser se transforme para algumas pessoas num “pesadelo que virá a ser”?

O que acontece quando uma pessoa procura uma ajuda psicológica para se “livrar do pesadelo”?

Acredito que os fatos têm uma organização. Penso que, por vários motivos, os fatos de nossa vida sofrem, muitas vezes, um processo de desorganização, o que acarreta um sentimento de desconforto interno, de “desequilíbrio”, o que provoca a sensação de que algo não vai bem, que não conseguimos compreender o que vai mal, mas não temos dúvidas de que, indiscutivelmente, há algo “errado” no nosso modo de ser, de existir… A vida nos parece estranha, desagradável, insatisfatória… Nesse momento, estamos vulneráveis à ajuda. Sentimos que precisamos “arrumar a casa”.

Sei que estou, ao dizer isso, partindo de um ponto de vista profundamente discutível e aparentemente simplista.

Algumas pessoas poderão replicar: essa atitude de busca de ajuda é algo que caracteriza uma classe social, um grupo minoritário, um grupo psicologizado… Creio que não! Mesmo em grupos culturalmente diferentes das classes médias e acima da média, em grupos que vivem uma realidade social e econômica bastante distante daquela dos nossos clientes de consultórios particulares, podemos perceber a “busca” de ajuda.  Ela se dá, isso sim, de formas diferentes.

Em meu trabalho em ambulatório público, tenho percebido que pessoas bastante diferentes dos clientes de consultório particular, que vivem uma realidade social e econômica bem baixa, também falam de seus sentimentos de “desequilíbrio”, de suas “desorganizações internas”. Seus discursos são diferentes, mas seus pedidos semelhantes.

Veyne nos diz:

“Os fatos têm uma organização natural, que o historiador encontra pronta, uma vez escolhido o assunto que é inesgotável; o esforço do trabalho histórico consiste, justamente, em reencontrar essa organização” (p. 27).

Poderíamos apanhar a frase acima, fazer algumas alterações nela, e também dizer:

Os fatos narrados pelo cliente têm uma organização natural, que o terapeuta encontra pronta, uma vez abordado um tema que é inesgotável; o esforço do trabalho terapêutico consiste, justamente em reencontrar essa organização.

Em outras palavras, poderíamos dizer que o papel do terapeuta, tal como o do historiador, deveria ser o de reencontrar a trama que envolve os fatos que são relatados.

“Os fatos não existem isoladamente, nesse sentido de que o tecido da história é o que chamamos de uma trama, de uma mistura muito humana e muito pouco ‘científica’ de causas materiais, de fins e de acasos (…) o fato nada é sem sua trama (…)” (p. 28).

“Os historiadores narram tramas, que são tantas quantos forem os itinerários traçados livremente por eles, através do campo factual bem objetivo (o qual é divisível até o infinito e não é composto de partículas factuais); nenhum historiador descreve a totalidade desse campo, pois um caminho deve ser escolhido e não pode passar por toda parte; nenhum desses caminhos é o verdadeiro ou é a História” (p. 30).

A citação acima é muito propícia para localizar um pouco a minha trajetória terapêutica. Ela nos ajuda a perceber que uma perspectiva de terapia, dentro de uma metodologia histórica, corresponde tão somente a uma maneira de traçar um itinerário através de um campo factual (o universo do cliente).

A noção de acontecimento nos leva a pensar na impossibilidade de se esgotar a informação sobre alguma coisa, qualquer que seja ela. Desmistifica as ideias da busca de um conhecimento pleno sobre algo. Por isso, em meu método, tenho consciência de que, mesmo que pretenda compreender a história do sujeito, será esse um processo profundamente limitado. A maneira como Veyne fala sobre acontecimentos esclarece bem o que penso também a respeito:

“Os acontecimentos não são coisas, objetos consistentes, substâncias; eles são um corte que realizamos livremente na realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e sofrem substâncias em interação, homens e coisas” (p. 30).

A seguir, acrescenta:

“Os acontecimentos não existem, com a consistência de um objeto concreto. É necessário acrescentar que, não importa o que se diga, não existem também como um ‘geometral’; prefere-se afirmar que eles têm existência em si mesmos, como um cubo ou uma pirâmide: nunca percebemos todas as faces de um cubo, ao mesmo tempo, só temos um ponto de vista parcial; em contraposição, podemos multiplicar esses pontos de vista.  Assim se passa com os acontecimentos; sua inacessível verdade integraria os inumeráveis pontos de vista tomados e teriam todos sua verdade parcial” (p. 31).

Essas duas últimas citações acima ajudam-me a esclarecer também um posicionamento meu em relação ao material que é recolhido nas sessões: tudo o que é trazido pelo cliente é somente uma parte, um pedaço de uma realidade, segundo a visão dele. É essa visão que parece estar truncada, ou limitando sua mobilidade no seu mundo.

Relatar o que lembra, entender o que lembra, perceber o que sente ao lembrar, entender que essa é uma forma de ver sua realidade, descobrir que pode também vê-la por outros ângulos, compreendê-la através de outros referenciais, etc. provavelmente crie alternativas de relação com o real, com a sua realidade.

Quando uma pessoa fala sobre suas dificuldades (sejam elas de que ordem forem), temos a impressão de que relata um acontecimento que começa e termina nele mesmo. O máximo que pode acontecer é buscar, num passado imediato, algumas causas para seu sofrimento (ou não sofrimento). A consciência de passado é muito relativa e se poderia dizer que quase sempre não costuma correlacionar o que se passa hoje com seu passado remoto, a não ser quando se trata de um cliente psicologizado.

Veyne nos fala sobre a questão de a consciência ignorar a história. Isso me chamou atenção e me ajudou a compreender um pouco o que era tão comum vivenciarmos nas sessões.

“A consciência espontânea não possui noção de história, que exige uma elaboração intelectual” (p. 43).

Na realidade, ao propor o RPHP ao cliente, eu o estou convidando a participar de uma atividade intelectual.

“O conhecimento do passado não é um dado imediato, a história é um domínio onde não pode haver intuição, mas somente reconstrução, e onde a certeza racional dá lugar a um saber real, cuja fonte é estranha à consciência” (p. 43).

O capítulo 6 do livro Como se Escreve a História (VEYNE, 1992) traz um tema profundamente importante para mim: a compreensão.

Poderia mesmo afirmar que, possivelmente, este tema é o mais central dos que compõem o método RPHP.

Em linhas anteriores, disse que meu objetivo era compreender a trama, mas é provável que não tenha deixado isso suficientemente claro.

Nossa formação acadêmica, desde os primeiros anos de escola, nos ensina que o mundo é explicável, que para tudo há uma causa. Somos levados, desde cedo, a ver a realidade dessa maneira e inquietamo-nos diante de todos os fatos que não se tornam compreensíveis para nós.

Explicar o porquê das coisas também é um objetivo, quando se fala em história. Ela não se contenta em ser apenas uma narração e acha que deve explicar. Todavia, a explicação histórica

“(…) não é mais que a maneira de a narração se organizar em uma trama compreensível” (p. 51).

Também no RPHP, meu objetivo não é “explicar”, no sentido que é dado a esse termo nas ciências físicas, mas sim compreender as tramas, através da organização das narrativas do cliente.

Meus clientes, às vezes, quando começam a utilizar o RPHP, perguntam se, através desse método, chegarão a saber quais são as causas que provocam seu mal-estar psíquico. Quando tento esclarecer que não tenho como meta descobrir as causas de seu problema, mas, sim, procurar compreender como é a dinâmica do surgimento e do desaparecimento do seu sofrimento, ele quase sempre se decepciona. Só vai valorizar essa proposta mais para o meio do processo, quando começa a ver como a coisa acontece na prática.

Como escreve Veyne (p. 85):

“(…) a história aparece como uma simples descrição do que se passou; explica como as coisas aconteceram, faz compreender”.

Esse meu objetivo, ainda que suscite uma série de questionamentos quanto à sua eficácia, tem-me mostrado que, quando uma pessoa, através da exploração de sua história pessoal, começa a perceber seu “modo de funcionamento”, ainda que não chegue a saber o porquê funciona daquele jeito, adquire uma potência para mudar alguns hábitos formados, e, com isso, inicia um processo de mudança construtiva que acarreta reformas interessantes no seu antigo modo de viver e entender a vida.

Ainda não posso, com muita segurança, afirmar sobre o que de fato acontece na estrutura do sujeito, mas tenho constatado, na maioria, que ele sai do círculo vicioso no qual se encontrava, que costumo chamar de “rigidez móvel”.

Acredito que a descoberta, pelo cliente, da existência do que Veyne chama de histórias compossíveis” (p. 60) possa estar na base que provoca a possibilidade de seu “mudar de curso”:

“A história é cheia de possibilidades frustradas, de acontecimentos que não se realizaram; ninguém será historiador se não perceber, em torno da história que se produz realmente, uma multidão indefinida de histórias compossíveis, de “coisas que podiam ser de outra maneira”.

Uma outra colocação desse autor é por mim aceita em função do que vejo acontecer no dia a dia da clínica. Refere-se ao medo da mudança.

Algumas pessoas não conseguem entender por que alguém, que está sofrendo psicologicamente, não consegue mudar seu padrão de comportamento. Consideram que uma sugestão dada a uma pessoa que precisa de “orientação”, desde que seja um conselho bem arrazoado, inteligente, pertinente… pode ser o bastante para que o sujeito abrace aquela ideia e mude a direção de seu caminho. Claro que a coisa não é tão simples assim, e que, mesmo que o cliente saiba que a sugestão é excelente, isso pode não ter força bastante para que ele resolva mudar.

A pessoa, nessas circunstâncias, pode “ver” com a razão, mas temer o que ela desconhece, ou, em outras palavras, o que ela teme é o que surgirá após sua decisão de mudança de caminho.

“Existe o desconhecido quando se ignora até mesmo quais são as eventualidades e qual tipo de acidente pode acontecer: assim, quando se coloca, pela primeira vez, o pé no solo de um planeta que não se conhece” (p. 75).

Na mesma página, acrescenta:

“(…) o homo historicus (…) tem horror ao desconhecido”.

Entretanto, quando conseguimos, gradativamente, dominar um pouco da história do cliente, quando, com ele, começamos a compreender o que e como se passaram os fatos nos quais esteve mergulhado durante sua vida, mesmo que se possa dizer que, na percepção desses fatos, existam muitos atravessamentos políticos, sociais, familiares, econômicos… mesmo que se possa dizer, também, que o cliente, esse sujeito que ele é, é somente uma abstração, um locus, em que as ressonâncias do que foi vivido se manifestam, mesmo assim, esse compreender provoca uma sensação de coragem,  de segurança para desafiar seu próprio mundo, antes tão rotineiro.

A retomada cronológica da história do cliente tem-se mostrado útil para ele e tudo indica que poder “começar do princípio”, ir percebendo as lacunas e ir tentando preenchê-las com hipóteses, funciona como uma forma de retomada de sentido, de revisão de caminhos, de encontrar uma consistência, algo que provoque uma sensação mais de síntese do que de análise. Veyne, ao falar de retrodicção e de síntese, nos ajuda a pensar o que experimento junto aos clientes, quando utilizo o RPHP. Diz ele:

“Ora, a história de uma época determinada se reconstitui por colocações em série, por idas e vindas entre os documentos e a retrodicção, e os `fatos’ históricos, que são, aparentemente, mais consistentes são, na realidade, conclusões que compreendem uma proporção considerável de retrodicção” (p. 77).

É na página 78 da obra, a qual nos estamos reportando, que o autor coloca de maneira mais explícita a ligação entre o método RPHP e o método histórico.

Acredito que, para maior clareza, se torna importante citar um recorte de um longo trecho daquele autor:

“O curso dos fatos não pode, pois, se reconstituir como um mosaico; por mais numerosos que sejam, os documentos são necessariamente indiretos e incompletos; deve-se projetá-los sobre um plano escolhido e ligá-los entre si (…).”

Pouco a pouco, documentos menos lacunares permitem que seja representado o contexto de uma época (nós nos ‘familiarizamos com seu período’), e essa representação permite retificar a interpretação de outros documentos mais lacunares. Não existe aí nenhum “círculo vicioso da síntese histórica”; as inferências tropeçam nos dados dos documentos. Mas, se as inferências não vão até o infinito, elas vão, pelo menos, muito longe. Até tecer, na cabeça de cada historiador, uma pequena filosofia da história pessoal… É essa experiência (no sentido que se dá a de um clínico ou a de um confessor) que se toma para o famoso “método” da história.

O “método” é uma experiência clínica.

Da mesma maneira que o menor fato implica uma enorme quantidade de retrodicções, envolve, também, retrodicções de alcance mais geral, que compõem uma concepção da história do homem.

“(…) a experiência histórica é, pois, composta de tudo o que um historiador pode aprender aqui e ali em sua vida, em suas leituras e em sua convivência com outrem (…).

(…) a história é essa mistura de dados e de experiência, (…) ela se reconstrói pelo mesmo vaivém de inferências, por meio do qual uma criança constrói, pouco a pouco, sua visão do mundo que a envolve (…) (p. 78/79)”.

Comentários sobre a citação acima:

1- A tentativa de reconstituição de um fato passado não se dá por acúmulo de informações sobre ele, tal como um somatório, um mosaico, mas, sim, a partir de uma hipótese que está presente naquele que busca realizar tal reconstituição. Essa hipótese é baseada na sua experiência, no seu contato progressivo com uma série de fatos paralelos, que lhe vão dando condições de “intuir” (mais que deduzir) sobre como aquele passado aconteceu.

2- Tanto os historiadores quanto os clínicos são pessoas que, por estarem em contato continuado, progressivo, com fatos cada vez mais interligados e semelhantes, podem criar uma hipótese compreensiva sobre “como as coisas aconteceram”.

3- O passado é sempre construído pelo historiador-clínico e não redescoberto por ele. O passado é, pois, sintetizado a partir da narrativa histórica e, portanto, não analisado através dela.

Em alguns trechos do livro de Veyne, mais precisamente nas páginas 80 e 81, este autor nos traz argumentos interessantes que demonstram que, quando ele diz que a história não tem método, parece pretender afirmar que isso ocorre por ela não se enquadrar no conceito de ciência, tal como é concebido pelo empirismo lógico.  Daí, se nesse sentido ela não pode ser considerada uma ciência, também não comporta em si a existência de um método, tal como a ciência oficial o concebe.

Da página 82 até a 88, Veyne nos apresenta uma magistral argumentação, na qual situa muito bem qual o lugar da história relativamente às ciências, e, nessa argumentação, podemos também situar muitos dos nossos objetivos, quando tentamos aplicar alguns conceitos da história em nossa atividade clínica e, especificamente, quando utilizamos o que denominamos Método de Recapitulação da História Pessoal. Como exemplo do que estamos falando, citaria:

“A explicação histórica não é nomológica, é causal; como causal contém

algo de geral: o que não é coincidência fortuita tem vocação para se reproduzir; mas não podemos dizer exatamente nem o que se reproduzirá, nem em que condições. Em face da explicação, que é própria das ciências físicas ou humanas, a história aparece como uma simples descrição do que se passou; explica como as coisas aconteceram, faz compreender“ (p. 85).

Uma outra parte interessante do livro de Veyne, que também vem mostrar o quanto se assemelham o pensamento de um historiador da Nova História e o de um psicólogo que se utiliza do método que venho desenvolvendo, é o capítulo 9, cujo título é ”A consciência não está na raiz da ação”.

Esse capítulo é importante, principalmente por iluminar, de modo muito preciso, alguns conceitos, tais como causalidade, compreensão, introspecção, revivências, revivências do passado, conhecimento do “outro”,  julgamento de valor…

Diz aquele autor:

“No estudo da causalidade que acabamos de ver, não fizemos nenhuma diferença entre a causalidade material (…) e a causalidade humana (…); pois, se considerarmos somente os efeitos, esta diferença não é muito útil: o homem é tão sólido como as forças naturais, e, inversamente, as  forças naturais são tão irregulares e caprichosas quanto ele; existem almas de bronze, existem também homens e mulheres cujos caprichos se movimentam como as ondas do mar“ (p. 89).

“Não nos podemos colocar no lugar de nossos semelhantes, entrar na sua pele, ‘reviver’ seu passado (…) A compreensão psicológica não permite nem adivinhar, nem criticar (…). A ideia de que o homem compreende o homem quer dizer somente que, dele estamos prontos a crer tudo, como da natureza. A compreensão é uma ilusão retrospectiva“ (p. 91).

“A única virtude da compreensão é, pois, nos mostrar o ângulo, segundo o qual toda conduta nos parecerá explicável e banal; mas ela não nos permite dizer, entre várias explicações mais ou menos banais, qual é a boa.” “De fato, se deixarmos de atribuir à palavra `compreender’ o valor de termo técnico que lhe dá Dilthey e se retomamos o sentido que tem na vida quotidiana, constataremos que compreender é o explicar uma ação a partir do que se sabe dos valores alheios; ou então compreender é informar-se sobre os fins de outrem, seja por retrodicção e reconstrução: compreendo sua mentalidade” (p. 92-93). Não em julgar… se o que se passou é bem ou mal. “

“(…) a história se ocupa do que foi e não do que deveria ter sido… Os julgamentos de valor em história… são julgamentos de valor no discurso indireto: O historiador não pode passar sem julgamentos de valor; (…) mas esses valores (…) são os de seus heróis (…) é o julgamento de valor do discurso indireto. O historiador se limitará a constatar que as pessoas da época julgavam dessa ou daquela maneira; ele pode acrescentar que nós julgamos diferente” (p. 93-94).

“Registrar uma diferença entre valores e os nossos não é julgá-los” (p. 94).

“A evolução atual dos estudos históricos, em todos os países ocidentais, é um esforço para passar dessa história factual a uma história dita estrutural. Essa evolução pode ser esquematizada da seguinte maneira: uma história factual se colocará a pergunta: quais foram os favoritos de Luís XIII?; uma história estrutural pensará, antes de mais nada, em perguntar-se o que era um favorito? Como analisar esse tipo político das monarquias do Antigo Regime, e por que existiram favoritos?(p. 110-111)”.

As citações feitas acima praticamente servirão de base para quase tudo o que falarei no item que se segue.

Abordarei a prática clínica e, como poderão perceber, ela está completamente mergulhada nessas ideias, de tal modo que é quase impossível se diferenciar o que é proposto pelo clínico do que o é pelo historiador, segundo o enfoque que estamos estudando.

Entretanto, talvez fosse interessante destacar, agora, alguns aspectos principais das ideias do historiador, que têm repercussão no trabalho clínico.

1- Que tipo de ciência o clínico faz? O que ele pode garantir ou predizer em relação ao comportamento de seu cliente? Sua postura deverá ser a de acompanhar um processo, ver para onde o rio corre, como corre. Contrariamente ao cientista, que se orgulha de saber o que ocorrerá no momento seguinte, após sua ação, o clínico sabe que não há previsibilidade no seu campo de atuação.

2- Há um não sentido em qualquer tipo de julgamento sobre os valores das outras pessoas, principalmente quando tentamos compreender sua “mentalidade”. Um clínico historiador deve preocupar-se em ser fiel ao que se passou, e não em julgar. Isso significa que ele, embora sabendo de seu envolvimento, sua “implicação” no relacionamento com o cliente, saberá que seu julgamento sobre fatos do outro são ilusões, no mínimo inúteis. O que ele pode fazer é a constatação da diferença entre seus valores e os do cliente. Registrar diferenças não é julgar.

3- O que se deverá buscar numa relação terapêutica voltada para a compreensão da história do cliente não é uma análise dos fatos, mas uma síntese. Não é a explicação de um acontecimento, mas a compreensão de um contexto no qual ele ocorreu e suas repercussões na estruturação de um modo de organização subjetiva da pessoa que vivenciou tal acontecimento.

 

 

  1. O MÉTODO Recapitulação Progressiva da História Pessoal (RPHP)

 

3.1- HIPÓTESES BÁSICAS

 

Nos itens 1 e 2, apresentei,  respectivamente,  breves exposições  sobre a Teoria da Personalidade, de Carl R. Rogers, e sobre a Nova História, enfatizando o posicionamento de Paul Veyne e a semelhança de sua proposta ao método psicoterápico, que venho desenvolvendo.

Agora, talvez seja interessante apresentar, de modo mais detalhado, o que denomino de RPHP.

Nas linhas que se seguem, vocês poderão observar que poucas referências farei à ligação entre o método RPHP e a Teoria da Personalidade. Uma das razões para isso é que, para as pessoas afeitas a essa abordagem, fica bastante clara tal ligação, além do que já, no item 1, deste documento, comentei bastante os aspectos comuns desse método em relação àquela teoria. Por isso, dei preferência, ao fazer os comentários, à utilização de ideias menos familiares a todos da ACP, ou seja, às da Nova História.

Na prática clínico-terapêutica, a história do cliente é a matéria-prima com a qual edificamos nossas teorias.

Entretanto, uma questão quase sempre nos escapa: para que, realmente, serve essa história, a história do cliente? De que modo nos aproximamos dela e com quais teares tecemos nossas conclusões, a partir de seus “fios”?

O que mais se costuma ver é o uso da história do cliente como um meio para se explicar seu problema. Essa história é traduzida a partir de uma teoria que acredita conhecer as correlações entre aqueles fatos históricos da vida dele.

Tais correlações garantem a explicação do que está acontecendo com aquele indivíduo.  A partir daí, chega-se a um diagnóstico, a um conhecimento da realidade do outro, às vezes, a uma sugestão, uma orientação, uma proposta terapêutica…  dependendo do enfoque teórico do terapeuta.

Quase sempre, as conclusões a que chegam são baseadas em fragmentos insignificantes de uma realidade infinitamente grande, a realidade na qual aquela pessoa, cuja história se está recolhendo, vive.

Mais ainda, impressiona-nos o modo como muitos profissionais agem diante dos fatos, como se a teoria que usam para explicá-los fosse confiável, a ponto de fazerem afirmativas que se assemelham a verdades acabadas, definitivas.

Tem-se pouco o hábito de colocar em dúvida as afirmações feitas sobre as “causas” que determinam certos comportamentos. Comumente, não há uma postura que poderíamos chamar de “humilde”, diante da grandiosidade dos fatos simples.  Não há paciência e um olhar ingênuo diante de uma narração que lhe é confidenciada por um paciente. Não há confiança no seu discurso: parece que sempre o que ele diz não é exatamente o que queria dizer. Pouco se vê uma intenção de compreender o que se escuta, mas, sim, de explicar o que é narrado.

Quem é essa pessoa diante de você? Essa pessoa que se sente infeliz, que está insatisfeita com a vida que está levando?  Ou essa outra, que “tem tudo para ser feliz”, mas não consegue realizar sua felicidade? O que significa “ter tudo para ser feliz”? O que é felicidade para o terapeuta? O que é felicidade para o paciente?

Em outras palavras, quais os referenciais, os valores, as crenças, as experiências do paciente? Onde viveu sua infância? Em que época? Em que momento histórico de seu país, de sua família, de seu ambiente em geral? Que tipo de informações recebeu do ponto de vista da religião, da ética, da moral? Como ele foi sendo, aos poucos, construído?

A partir do meu contato com as pessoas que atendo, tenho-me perguntado: o que posso saber e entender sobre essa pessoa que está diante de mim? Quais os determinantes sociais, políticos, econômicos e psicológicos que atuaram na construção dela?  Portanto, quem é ela? Quem ela acredita ser? O que tem conseguido fazer com o que ela percebe e reconhece como sendo ela própria?

Quando atua num determinado momento, pode considerar que ela está agindo por si mesma, ou em função de expectativas que foram criadas em relação à sua pessoa? Ela é dona de si? Se é, por que não consegue modificar um tipo de ação   inadequada  que  repete sempre, como se lhe escapasse o poder de mudar?

Que implicações isto tudo tem para a clínica? Onde o estudo da história de cada pessoa contribui para que o paciente possa organizar seu futuro a seu modo?

Como operacionalizar um método histórico, que tenha como objetivo uma recapitulação progressiva da história da pessoa?

Para que uma recapitulação da história da pessoa? O que se espera a partir disso?

Que tipo de benefício um cliente pode obter com tal construção?

As psicoterapias mais conhecidas não se preocupam em organizar a história do cliente por várias razões: umas de ordem prática, outras de ordem filosófica, outras, ainda, de ordem epistemológica.

Meu posicionamento, muito pessoal, diga-se de passagem, é que a clínica é soberana, ou seja, a prática clínica coloca-nos diante de uma realidade que desafia as teorias conhecidas. E, talvez por isso, existam “muitas clínicas”, reflexo de uma procura de explicação para as realidades dos clientes que nos procuram.

Poderíamos dizer que há uma clínica nietzscheana, uma rogeriana, uma lacaniana, uma freudiana, uma kantiana, uma heiddegeriana, etc., etc. Em cada uma delas, destacamos um ponto de vista filosófico, ou seja, um modo diferente de explicar a realidade e, por isso, é compreensível a existência de “choques de verdades”, pois, como a realidade se mostra para cada um de nós de forma diferente, ela também  nos dá possibilidade de interpretá-la de várias maneiras.

Em um artigo escrito por mim em 1978, que circulou entre meus estagiários do HEPQ em 1980, tentei levantar essa questão, dizendo o seguinte:

(…) cada cliente diante de nós se mostra como uma grande e nova teoria. Cabe a nós estarmos abertos ao contato com aquele novo universo – único – e nos “arriscarmos” a ficar diante de uma experiência também nova para nós, que poderá até anular todas as outras que já vivenciamos com outras pessoas.

A grande teoria que se nos apresenta diariamente é a história do nosso cliente.  O grande desafio que se nos apresenta no nosso dia a dia é a compreensão dessa história. Ninguém nunca escreveu sobre aquela pessoa que está diante de nós. Nenhuma teoria a explica inteiramente.

Algumas conseguem explicar aspectos muito gerais do seu comportamento, que são semelhantes em muitas pessoas. Mas de que nos serve isso? De que nos serve saber que as pessoas, em sua maioria, reagem de tal ou qual forma, em tais ou quais situações?  O nosso cliente está entre aquelas pessoas que reagem daquele jeito? E,  em caso afirmativo, a que nos levaria isso, se levarmos em consideração a totalidade do seu existir?

Na tentativa de encontrar um meio de compreender o cliente e sua história, venho desenvolvendo um método de trabalho que denomino de RPHP (Recapitulação Progressiva da História da Pessoa). Ele vem ganhando forma em meu trabalho clínico, nos últimos dez anos. Nas linhas a seguir, passarei a descrever algumas de suas características.  Considero que alguns aspectos seus estão muito próximos do modo mais atual de se fazer história, ou seja, em consonância com o que hoje se costuma denominar de “Nova História”.

Talvez os historiadores possam discordar desse meu ponto de vista e, por isso, seria interessante para mim receber um feedback a esse respeito, já que essa área do conhecimento está sendo explorada por mim há pouco tempo.

Parti dos seguintes pressupostos:

1- Uma história do presente pode ser mais bem entendida, mais compreendida, se soubermos um pouco mais sobre o seu passado; tanto o presente nos ajuda a entender o passado, como o passado  nos ajuda a compreender o presente.

         COMENTÁRIOS

         Lemos em P. Veyne (p. 11) uma citação de Cournot:

(…) a curiosidade do homem não tem unicamente por objeto o estudo das leis e das forças da natureza; ela é, ainda, mais facilmente despertada pelo espetáculo do mundo, pelo desejo de conhecer sua estrutura e suas revoluções passadas (…).

Na realidade, essa vontade de conhecer o passado, a estrutura desse passado, o modo como as coisas aconteceram, como se foram modificando até o presente, parece ser algo que fascina o homem. Ouvir histórias, saber por que a sua realidade é como é. Saber como termina uma história. Ouvir novelas, ver novelas, ler livros… Tudo isso parece brotar de uma força muito grande que possuímos, que nos fascina, que nos impulsiona na busca da compreensão do mundo e de nossa existência nele.

Não vejo por que não comparar a História que se ocupa com o estudo dos homens, de seu passado, de seu presente, dos movimentos das populações, dos povos, dos seus costumes, de suas culturas… com a história de uma única pessoa. Penso e vejo que os mesmos princípios que norteiam os métodos da História se assemelham a alguns que norteiam os de algumas terapias, principalmente as que acreditam que a compreensão da realidade é o melhor meio de lidar construtivamente com ela.

Fato curioso, entretanto, é que, para se entender melhor esse passado, não nos podemos, somente, lançar em sua direção e nos distanciarmos do presente. Na realidade, as duas dimensões estão entrelaçadas de forma praticamente indivisível.

A compreensão de um fato do presente pode estar atrelada ao conhecimento de um fato passado, mas somente quando se consegue dar ao passado uma dimensão que se estende até o presente, ele ilumina o momento atual.

Uma citação de Febvre (1992, p. 7) me parece bem apropriada:

É preciso que a historia deixe de vos parecer como uma necrópole adormecida, onde passam apenas sombras despojadas de substância… Penetrai no velho palácio silencioso onde ela dormita e que, abrindo as janelas de par em par, reacendendo as luzes e reanimando o barulho, acordai com a vossa própria vida, com a vida quente e jovem, a vida enregelada da princesa adormecida (…)

Também uma citação de Belas (1978), que será apresentada na íntegra, mais adiante, ilustra essa ponte passado/ presente:

(…) e me leva (o cliente) a conhecer cada recanto de sua morada (seu mundo interior).

É como se eu (terapeuta) deixasse de existir, me perdesse no universo dele (…)

Ele dá um sorriso alegre – encontrou um velho e querido brinquedo esquecido pelo tempo que já longe vai (…)

Seu mundo vai se tornando também meu.

Posso quase tremer de alegria ou chorar de tristeza ao “lembrar” de nomes e ao “ver ”objetos.

E eu não existo naquele momento (…)

Nas citações acima, passado e presente estão juntos.

O passado ganha um colorido que o torna “vivo”, que o presentifica a ponto de transmitir forte emoção.

Considero esses trechos interessantes, pois retratam muito bem a participação do historiador diante de um fato passado. Como se pode notar, o fato não é estático, desperta no historiador o desejo de se situar no ontem, mas vivendo-o como se fosse o hoje, dando-lhe o colorido, o som, o movimento.

Ainda que tal posicionamento possa encontrar muitos opositores, já que pretendo, aparentemente, com ele, afirmar a crença numa possibilidade de reconstituir o passado, presentificá-lo, o que, na prática, é impossível, creio que essa questão vale a pena ser pensada por se mostrar, na vivência clínica, muito promissora.

Quando digo “reconstituir o passado” não estou afirmando que se possa retornar ao passado. Como nos diz Veyne, o historiador tem um limite ao entrar em contato com um evento:

“(…) em nenhum caso, o que os historiadores chamam um evento é apreendido de uma maneira direta e completa, mas, sempre, incompleta e literalmente, por documentos ou testemunhos, ou seja, (…) por indícios” (p. 12).

E, mais à frente:

“Por essência, a história é conhecimento mediante documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em fotomontagem e não mostra o passado ao vivo ‘como se você estivesse lá’” (p. 12).

O que busco, através do RPHP, é, somente, retomar e recompor, através das memórias, um evento com uma gama bastante grande de elementos a ele associados,  de tal maneira que se sinta uma distância mínima entre passado e presente, e em que  a imaginação preencha as lacunas, tanto as que existem dentro do que conta a história, como as que existem dentro daquele que a escuta. Se isso acontecer, poder-se-á dizer que se “viveu” novamente o fato.

É claro que se trata de um “fato novo”, mas esse fato novo carrega, em seu bojo, presentificado, o que de essencial existe tanto no passado como no presente.

2- Uma pessoa tem uma história que começa muito antes de seu nascimento, antes de sua concepção e até mesmo da de seus pais, avós.

 

COMENTÁRIOS

 

Quando inicio um processo terapêutico, utilizando a RPHP, costumo fazer uma “entrevista” antes da primeira sessão, ou seja, antes de começar, concretamente, a tentativa de recuperação de lembranças da vida do paciente. Nessa entrevista, quase sempre, deparo-me com uma pergunta que me chega com uma certa curiosidade por parte do sujeito que quer submeter-se a tal método. Tal pergunta é: “Por onde vamos iniciar a minha história?“

Não me parece difícil perceber que o sujeito é construído pelas histórias que o cercam, histórias essas de “várias idades” e de “vários lugares”. As dimensões tempo e espaço se estendem por várias direções. Em outras palavras, a origem dos pais, o desejo de ter aquela filha, a época em que a criança nasceu, a situação financeira da família, as expectativas em relação ao bebê e a seu futuro, o fato de ser o primeiro, o fato de ser o terceiro, o quarto… o fato de ser mulher ou homem, o que isso significa para os pais e para a família… enfim, seria impossível esgotar esta lista, já que isso implica num número infinito de possibilidades, de combinações, de valores, desejos, etc.

Tudo isso determina um olhar que é lançado na direção daquele ser que chega ao mundo, que já vem carregando uma quantidade enorme de rótulos, de expectativas, de sonhos alheios.

É claro, também, que, muitas vezes, os pais não se dão conta da existência de tais expectativas, e algumas delas só chegam à consciência depois que eles começam efetivamente uma relação concreta com a criança.  Ali, expressam suas frustrações ou suas alegrias diante da filha, seus desejos e planos para o filho, sua indignação por ela não ser como gostariam que fosse…

Uma criança, recém-nascida, que de “história oficial” tem poucos minutos, horas, ou meses, já carrega em si uma imensa “história não oficial“, que é a dos seus pais, seus familiares, sua sociedade… pois é através delas que é avaliada, orientada, formada, construída.

Isso dito, podemos responder à interrogação inicial: “Quando começa a história do cliente?”

Começa antes de sua concepção.

A história de cada sujeito é herdeira de todas as histórias que a antecederam. Por isso, o ponto proposto para se começar o trabalho, embora fique estabelecido como sendo o momento da concepção, ficará sempre em aberto, já que informações anteriores a esse marco da vida do paciente podem ser profundamente importantes para a compreensão de seu modo de ser, de viver, de estar no mundo, de reagir, de existir, de sofrer, de se alegrar…

3- A compreensão da história de uma pessoa possibilita o surgimento de um “desamarrar-se” do passado, criando condições para que ela           possa optar por novos caminhos a serem seguidos no presente.

 

 

COMENTÁRIOS

 O que impede uma pessoa de resolver um problema que a aflige?

 Esta é uma questão bastante complexa e, talvez, resida aí o ponto crucial de toda e qualquer terapia: o que significa sucesso terapêutico, a eficácia do processo, sua potência como método de ajuda psicológica?

Colocando isso de outra maneira, o que é terapêutico na terapia? O que é o problema psicológico, responsável pela vinda do cliente ao gabinete de psicologia? Ou ainda, num contexto diferente do da clínica particular, o que ocorre quando estamos numa relação com um paciente de um ambulatório público, tentando ajudá-lo a solucionar suas dificuldades no plano psíquico?

Nossa vivência clínica, tanto com pacientes internados, ou não, em ambulatórios de instituições públicas, quanto com pacientes de consultório particular, leva-nos a acreditar que, neles todos, a possibilidade de compreensão de suas histórias se torna um fator importantíssimo para a superação de suas dificuldades.

Mas, diriam alguns, o paciente de ambulatório, não psicologizado, não traz no seu discurso, em sua demanda, uma história tal como é trazida pelo paciente da clínica particular, pois esse último, quase sempre, tem um nível cultural e social que já imprime nele uma forma de se pensar, que é histórica. Ele já ouviu falar sobre a importância da infância, da educação, do passado, etc. no desencadeamento de problemas psicológicos. As pessoas mais humildes, com pouca formação acadêmica, que chegam aos ambulatórios por estarem “doentes dos nervos”, não atribuem ao passado o peso que aquele outro atribui. Então, os pacientes não psicologizados estão mais ligados a situações atuais, do presente. A eles não interessaria, nem acrescentaria nada o passado.

Nisso tudo, acredito que haja é uma grande confusão, um grande engano. O presente, o futuro e o passado são dimensões de uma história, de um engendramento de modos de pensar e de sentir, que foram construídos em cada um de nós. Quando falo que a história do paciente de ambulatório deve ser compreendida para que ele se desamarre do passado, não quero dizer que ele precise, fatalmente, se lembrar de sua infância. Diria o mesmo em relação ao paciente do consultório particular, o psicologizado.

Como falei linhas atrás, o presente contém o passado e vice-versa. Assim como o futuro contém o passado. O passado, ao qual me refiro aqui, pode corresponder a um minuto, uma hora, um dia, um mês, ou mais tempo.

Também não estou preocupado em definir ou descobrir relações causais entre fatos passados e os atuais, mas, sim, compreender a dinâmica que está presente na forma de agir daquele sujeito.

Por tudo isso, considero que compreender a história é uma condição para se potencializar uma mudança na forma de agir, na criação de alternativas de comportamento mais flexíveis, mais eficazes do ponto de vista das reais necessidades do sujeito.

Compreender significa algo muito distante de intelectualizar.

O compreender se dá a nível experiencial.

A compreensão ocorre quando o sujeito pode “viver” o que está sendo compreendido. Isso se passa numa dimensão visceral, total, em que o sujeito está, todo ele, mergulhado no que percebe.

4- Quando uma pessoa consegue, gradativamente, se dar conta de como sua história foi sendo construída, adquire maior capacidade para gerenciar sua vida, para dar a ela novos rumos, que lhe sejam mais criativos e “saudáveis”.

 

COMENTÁRIOS

 

Qualquer profissional da psicoterapia, com um mínimo de experiência clínica, sabe que não basta o cliente ser informado ou lhe ser sugerido mudar sua forma de agir. Não basta que se lhe deem sugestões para andar por “novos caminhos”. Só quando ele vai compreendendo como se engendra, nele, sua maneira de agir, através de sucessões de acontecimentos que ocorrem no seu dia a dia, é que começa a adquirir, de fato, e de maneira duradoura, novas alternativas para suas ações e mudanças significativas no seu modo de ser.

Quando afirmo que o se dar conta de como sua história foi sendo construída é uma condição para que ele mude seus rumos, estou querendo chamar atenção para uma atitude muito comum em muitas orientações teóricas, que se caracterizam pela crença de que a mudança possa ocorrer por uma força que seja externa ao sujeito.

As mudanças que ocorrem nos clientes, que vivenciaram um processo terapêutico com êxito, dão-se como movimentos que partem de dentro do sujeito. E o que seria esse mudar, a partir de alterações internas, que não uma reorganização de seu modo de se perceber e perceber a sua realidade, a sua história?

Muitas situações, por mim vividas na prática clínica, sugerem que, no momento em que o sujeito começa a se dar conta de como sua história foi sendo construída e as ligações existentes entre situações passadas, as atuais e as suas projeções para o futuro, ele ganha uma potência, passa a ter uma atitude de maior segurança em relação às decisões a serem tomadas na sua vida, e começa a modificar seus rumos, os que, até então, insistia em seguir, mesmo que já se tivessem mostrado não eficazes para a concretização de um modo de vida construtivo para si.

Em outras palavras, ele começa a sair da rigidez e inicia um movimento. No princípio, um movimento lento, cauteloso… Progressivamente, vai testando a nova hipótese e arriscando mudanças.

Quando começa a ver com mais nitidez o que se passa dentro de si, nas situações às quais fica exposto no cotidiano, aí, sim, assume “o leme do seu próprio barco”.

Essa caminhada é lenta.  Lenta o suficiente para, muitas vezes, se ter pouca condição de perceber que ela está acontecendo.

Ela é lenta, porque é um ir e vir constante. Um andar para frente e correr para trás.

Mudar é sempre muito difícil, pois implica em alterações profundas na visão de si mesmo e do próprio mundo que cerca o sujeito em mudança.

O sujeito só muda quando consegue estabelecer um outro paradigma confiável que garanta sua integridade psíquica. Para mim, esse novo paradigma é uma nova compreensão de sua própria história, incluindo-se, aí, obviamente, a maior parte possível do contexto no qual ele está inserido.

5- Na recapitulação da história de uma pessoa, o terapeuta deve funcionar como um historiador, ajudando-a a perceber, do modo mais pleno possível, as tramas, mais que os fatos, que estiveram  marcando sua vida.

 

 

            COMENTÁRIOS

           

Imagino o quanto o leitor, que ainda não teve a oportunidade de vivenciar uma terapia calcada na metodologia que estou expondo neste documento, possa estar inquieto diante de tudo o que escrevi até aqui. Pode estarse perguntando se o que tenho falado não é, no fundo, uma mesma coisa que todos os terapeutas realizam: escutam a história do cliente e tentam, de algum modo, ajudá-lo a se entender através de intervenções, que, de certo modo, serão sempre novas visões, novas maneiras de perceber o seu mundo.

Os terapeutas não seriam, portanto, os profissionais que contribuiriam para que o cliente pudesse alcançar uma nova versão de sua realidade? E, através disto, contribuiriam, também, para que ele agisse de maneira nova na sua vida?

         Talvez, a grosso modo, isso seja verdade.

Mas o que considero diferenciador no que estou propondo é o modo de se fazer isso, de se “compreender” para “construir” de novo.

Enquanto terapeuta, não me preocupo em exercer um papel “instituído” de terapeuta. Minha postura não pretende ser a de alguém que “sabe”, um técnico, um especialista…

Se tiver conseguido, até esse ponto em que escrevo este trabalho, deixar claras as minhas ideias principais sobre a possibilidade de se conhecer a realidade, será fácil entender quando digo que não pretendo ser alguém que “sabe”.

Considero esse ponto fundamental para a compreensão de minha proposta terapêutica.

Ainda que não esteja afirmando nada de novo, nada que seja absurdo para aqueles que vivem a prática clínica há algum tempo, essa postura de “olhar ingênuo” ainda é muito contestada e pouco praticada por um grande número de profissionais “psi”.

Quando falo de “olhar ingênuo”, sou comumente criticado e o argumento que mais lançam contra essa minha ideia é que ela é ingênua, já que, para meus críticos, isso seria o mesmo que se fechar os olhos e negar a existência de uma carga imensa de determinantes culturais, sociais, políticos… influenciando nosso “olhar”. Há em nós uma subjetividade que nos é imposta, e o nosso olhar será sempre comprometido, “impuro”, “naturalizado”…

Não nego isso, pois negar tais influências seria negar o óbvio. Somos traídos, a cada momento, por afirmações que contrariam nosso posicionamento filosófico, aquele que conseguimos exteriorizar, e que acreditamos ser, verdadeiramente, nosso.

O que quero dizer, ao falar num “olhar ingênuo” não é tão ingênuo assim, como pensam.

Olhar ingenuamente é uma tentativa de não interferir, com ideias “pré-fabricadas”, na história que nos está sendo contada. 

 

O que quero dizer com “ideias pré-fabricadas”? São as que fazem parte da nossa história e não da história do cliente. Impossível isso! (Dirão alguns.) Isso é o conceito de neutralidade disfarçado. (Completarão eles.)

E,, surge mais uma questão bastante polêmica: como não misturar a história do cliente com a do terapeuta? Neutralidade é ficção!

 

Não estou falando isso! Acredito que não há possibilidade de neutralidade nas relações humanas, mas acredito, também, que podemos focalizar uma história de um outro e ajudá-lo a “se ouvir a si próprio”. Talvez isso implique num certo treinamento por parte do terapeuta, talvez isso já seja uma característica de algumas pessoas que gostam de escutar pessoas…

A escuta atenta, a possibilidade de esperar com paciência até que alguns relatos façam sentido – um novo sentido – talvez seja uma grande contribuição que uma pessoa possa dar a quem se aventura a contar sua própria história para uma outra.

A trama, mais que os fatos, é o que busca o historiador. É o que deveríamos estar tentando buscar, como terapeutas.

Uma sucessão de fatos, uma série de documentos… tudo isso acontecendo num determinado contexto social, familiar, religioso, moral, político… que vai sendo delineado gradativamente, sem precipitações, aos poucos, mostrando um  “movimento”, um sentido, algo que começa a poder ser entendido mais concretamente.

O terapeuta é um acompanhante, alguém que participa da remontagem de uma história, que acaba sendo um “quase personagem” dela. A compreensão da trama ocorre praticamente ao mesmo tempo dentro do cliente e dentro do terapeuta.

Belas (1978), em seu texto “Eu queria poder dizer-lhes”, documento escrito para os estagiários de Psicologia do Hospital Estadual Psiquiátrico (Jurujuba – Niterói), tenta levantar essa questão, convidando os estudantes em supervisão a pensarem sobre o conceito de “neutralidade” do terapeuta na relação com seu cliente. Dizia ele:

Eu queria poder dizer-lhes, exatamente, o que sinto

quando  UM OUTRO de mim se aproxima,

e, com olhar interrogante, se pergunta: onde estou?

quem sou ?

Queria poder transmitir-lhes minha vontade

de entrar na “casa dele”, habitar ali

e sentir, bem de perto, suas alegrias e pesares.

Seria maravilhoso poder descrever-lhes em tons fortes

minha inquietude na espera de ser convidado a ultrapassar

a porta que separa o seu mundo do meu.

Bom seria, também, se vocês pudessem sentir

o sorriso que se abre dentro de mim,

quando abandono minha vida lá fora e

me entrego – todo – à vida dele.

Fico feliz quando ele me toma pela mão

e me leva a conhecer cada recanto de sua morada.

É como se eu deixasse de existir, perdesse-me no

universo dele…

– E começa a procura…

Aqui e ali nos desencontramos,

pois a casa tem muitos cômodos e nós não a conhecemos bem.

Ele não tem também muita ideia de como é a sua própria casa.

Somos dois exploradores de mãos dadas…

Os dias se passam e, muitas vezes, estamos “parados”,

no mesmo lugar…

Não sabemos por onde ir, o que fazer….

Ele dá um sorriso – alegre – encontrou um velho e querido

brinquedo, esquecido pelo tempo, que já longe vai…

É uma boneca de pano – velha – mas linda!…

É um carrinho sem rodas que lhe faz brotar – lá do fundo –

uma lágrima de dor.

É um nome – Pedrinho – que faz com que seu corpo todo

seja, de alegria, um tremor só: foi uma época inesquecível…

É um olhar fugidio e um ar de tristeza – uma gaiola já

enferrujada e vazia.

Seu mundo vai se tornando também meu.

Posso quase tremer de alegria ou chorar de tristeza ao

“lembrar” de nomes e ao “ver” objetos.

E eu “não existo” naquele momento…

Eu “sou’ o outro. Eu vivo muitas vidas além da minha.

Eu me sinto um velho.  E eu me sinto uma criança.

Sinto-me eu. Sinto-me ele me fazendo as mesmas

perguntas: Onde estou?  Quem sou? ”

 

6- Uma pessoa consegue recapitular sua história com mais facilidade se criarmos para ela condições especiais que lhe favoreçam rememorar acontecimentos nem sempre muito agradáveis, bem como compreender correlações entre fatos de sua vida…

 

COMENTÁRIOS

Desde o início do minha atuação na clínica, interessei-

me pelos trabalhos experimentais, que verificavam a correlação entre o funcionamento do SNA e os efeitos da psicoterapia.

No livro Psicoterapia e Relações Humanas, escrito por Carl Ranson Rogers e G. Marian Kinget (Madri: Editora Alfaguara, 1971, da página 291 à 296), podemos encontrar os resultados dos estudos feitos por William N. Thetford e os de  Bernard Chodorkoff.

 

No primeiro estudo, o de Thetford, era focalizado, basicamente, o nível fisiológico, e o segundo, o de Chodorkoff, o nível psicológico.

Em ambos, conclui-se que: se, como consequência da terapia, o sujeito se torna capaz de manejar melhor sua tensão emocional a nível psicológico, esse fenômeno terá sua expressão também a nível fisiológico.

Interessei-me, também, pelo conceito de tonus optimal, descrito no capítulo 5 do livro Sensibilidade e Relaxamento, escrito por Bernard Gunther (1981, p. 82). Esse autor diz:

Relaxamento é soltura: permitindo, deixando ir, deixando vir, fluir livremente, entrega. O estado natural do organismo. Uma condição na qual os nervos, os músculos, experimentam uma plena sensação; colocando-se em eu-tonus; sem esforço.

(…) estar atentamente relaxado é apenas o necessário despender de esforço muscular desejável para um funcionamento eficiente – o TONUS OPTIMAL.

Tonus Optimal é um conceito dinâmico no qual o organismo se adapta automaticamente à quantidade de tensão muscular necessária para cada atuação particular.

Até agora, a prática clínica tem-me mostrado que o cliente experimenta uma sensação de tensão muscular, quando explora sua história, principalmente quando “anda” por “terrenos perigosos”, para a manutenção de sua integridade psicológica, ou seja, mesmo sem se dar conta, o sujeito muda seu tônus muscular, quando lhe é proposto recapitular algum momento de sua vida, o qual (geralmente isso é verificado a posteriori) contém fatos que comprometem sua imagem pessoal. Isso se dá em função dos valores norteadores do grupo social ao qual pertence, tornando difícil a assimilação de atributos novos na percepção que ele tem de si mesmo. Esse fato é muito evidente e, provavelmente, cada um de nós já experimentou essa sensação, várias vezes, na vida. Há um paralelismo entre o estado emocional e o muscular. Isso não é nenhuma novidade para todos nós. Ocorre, entretanto, que, quando conseguimos ajudar uma pessoa a relaxar, ela consegue, mais facilmente, “andar“ por aqueles “terrenos perigosos”, aos quais me referi linhas acima.

Essa condição de tranquilidade, de relaxamento, uma vez conseguida, tem-se mostrado muito eficiente, pois diminui o grau de defesa comum em situações terapêuticas, sem contudo deixar o sujeito demasiadamente desprotegido.

Tenho utilizado, em cada sessão, nos processo de RPHP, o recurso do relaxar e esse é complementado por minutos de meditação. Essas duas atividades somadas funcionam como preparação do sujeito para entrar em contato com sua história, de modo mais pleno.

O uso de tais recursos me leva a acreditar que, através deles, não só fica mais fácil recapitular situações com conteúdos desagradáveis, traumáticos, de forte tensão, como também contribui para uma flexibilidade aumentada para perceber relações entre fatos vividos pelo cliente, sejam eles de que natureza forem.

Esse recurso também tem-me ajudado a sentir, com certa antecipação, o quanto aquela fase da história do sujeito está carregada de tensão, de momentos difíceis, pois, nessas sessões, apresentam uma dificuldade muito acentuada para conseguir um nível de relaxamento bom, mesmo tendo experimentado esses estados favoráveis em sessões anteriores.

Casos extremos já foram registrados, em que o sujeito não consegue continuar o processo, mesmo tendo obtido um bom nível na sessão experimental, e, até, nas que focalizavam os primeiros anos de vida.

A sensação que se tem é de que o cliente “percebe” que não suportará o confronto com os fatos que certamente virão à sua lembrança. O processo de defesa aí se instala fortemente, como um meio de autopreservação da integridade psíquica, que se encontra, nesses casos, quase sempre muito fragilizada.

7- Ao longo da vida de uma pessoa, ela vai formando uma imagem de si que decorre de percepções, que adquire no contato com as pessoas com as quais convive, bem como das percepções que ela vai tendo a seu respeito, através dos valores da sociedade em que vive, que lhe chegam, de forma direta ou indireta, claramente ou de forma encoberta.

COMENTÁRIOS

Há uma literatura bastante farta que nos fala sobre este

tema, mas, talvez, fosse interessante se pudéssemos lembrar que, no nosso dia a dia, experimentamos, com muita clareza, o que disse no item 7, acima.

Assim, se perguntarmos a qualquer pessoa como ela é, como ela se define como sujeito, invariavelmente ela procurará adjetivos, que foram ou são originários dos valores que caracterizam seu grupo social. Em outras palavras, os parâmetros que usa para fazer um conceito sobre si são sempre os mesmos, utilizados pela sua sociedade, ou pelo seu grupo de origem, principalmente pelo que sempre ouviu falar a seu respeito.

Ainda que, num determinado momento de sua vida, ela passe a ser seu próprio juiz, se avalie, se classifique… nem por isso deixa de utilizar, para seus julgamentos, os valores que são significativos para as pessoas da sua sociedade.

Em meu trabalho, utilizando o RPHP, isso fica profundamente constatado e é praticamente inexistente uma escuta da história de um cliente, que não venha carregada de afirmações relativas à sua pessoa, sempre associada à percepção de que outros tiveram ou que ainda têm dela.

8- O mundo ao seu redor passa a ser um determinante poderoso para a formação de seu modo de se ver, de se julgar…

 

 

COMENTÁRIOS

Como comentei no item anterior, a percepção do sujeito é socialmente determinada, o mundo ao seu redor é um determinante poderoso no seu modo de julgamento dos outros e de si mesmo.

Poderíamos perguntar-nos, então: onde estaria a fronteira entre o indivíduo ele mesmo e o indivíduo construído pela sociedade?

Para mim, uma das grandes questões enfrentadas pelas pessoas que procuram a terapia trata exatamente da coexistência desses “dois indivíduos”, desses “dois sujeitos”, que tentam coexistir dentro de um mesmo “corpo”.

Em relação a esse aspecto, poderia lembrar de J. Rajchman, em seu livro Foucault: a liberdade da filosofia (1987).

 Diz ele:

Assim, os nossos próprios eus podem ser as grandes ilusões realistas do nosso tempo – as entidades interiores, totais, privadas, individuais, mentais, que frequentemente aceitamos como certo serem o que somos. (p. 48).

Esses dois personagens vivem em guerra dentro de um território que é seu corpo e, nele, travam uma luta nem sempre suave.

9- Num determinado momento, fica difícil para uma pessoa poder definir       se o que ela pensa de si é algo sinceramente seu, ou se seus                  comportamentos são apenas reflexos de expectativas que o mundo                  construiu para ela.

 

     COMENTÁRIOS

 

É interessante observar-se que, num determinado momento, algumas pessoas se dão conta da existência de uma contradição muito clara no seu modo de julgar, de se perceber. Ela se julga “burra”, quando “se sente  inteligente”, diz ser uma “desastrada”, quando “se sente cuidadosa”. Diz-se incapaz, quando pensa de si exatamente o contrário disso… Enfim, ela “sabe” que seu julgamento não é correto, mas tem uma dificuldade muito grande para admitir que o que, no fundo, pensa a seu respeito pode ser verdadeiro. Fica com uma avaliação insegura, não acredita mais nos seus critérios para fazer julgamentos sobre si mesma.

Nos casos mais extremos, sucumbe à avaliação externa e perde seu equilíbrio, aliena-se.

10- A pessoa passa a agir como se fosse ela própria e não se dá conta da quantidade de “forças” que agem sobre ela.

         COMENTÁRIOS

Nesse “estágio”, o sujeito funciona acreditando que é exatamente como se

autopercebe. Seu julgamento sobre si e sua realidade, ainda que bastante distorcido, guarda uma certa coerência. Ele não se dá conta da distância entre sua percepção da realidade externa e a percepção da sua realidade interna. Ambas são rígidas, limitadas e determinadas por fatores externos ao sujeito. Ele é o que dizem que é.

Talvez, esse fato esteja na base das terapias que se utilizam de sugestões a serem dadas aos clientes, provavelmente uma tentativa de, através delas, modificar a autoimagem e, consequentemente, o comportamento deles.

Pode ocorrer, entretanto, que, cada vez mais, essas discrepâncias fiquem progressivamente mais evidentes. Ela não encontra explicação para o que está sentindo, para o que se está passando dentro de si. Aos poucos, isso vai incomodando mais e mais.

Num certo nível, a pessoa se dá conta de um estado de desconforto, quando percebe um movimento interno que parece dirigi-la numa determinada direção, e um outro que a contraria, empurrando-a numa direção oposta. Ela não compreende o que acontece dentro de si. Nada faz muito sentido.

Tudo indica que o cerne da questão clínica é a busca da compreensão do como se estruturou a contradição na conduta do sujeito, em outras palavras, entender a contradição da história da subjetividade.

Compreendida sob este ângulo, a clínica passa a ter como meta terapêutica não

a resolução dessa contradição, mas, sim, tornar o sujeito compatível com essa sua contradição temporal. Estar no tempo, ser histórico, é ser e não ser ao mesmo tempo.

11- A compreensão desse conflito ocorre quando as forças que o provocam ficam mais evidenciadas, através da percepção mais clara dos     acontecimentos que foram vivenciados por aquela pessoa, em vários     momentos de sua vida. Como decorrência disso, surge uma possibilidade da solução do conflito, da eliminação do desconforto ou, pelo menos, da sua diminuição. O sujeito começa a encontrar alternativas de soluções para seus problemas, pois passa a compreender seu modo peculiar de ser, sua dinâmica pessoal. Isso significaria dizer que ela, antes paralisada pelo conflito, passa a ter melhores condições para funcionar, para sair do estado de rigidez em que se encontra.

 

           

         COMENTÁRIOS

O objetivo do RPHP é exatamente este: criar condições bem definidas que ajudem o cliente a perceber, com mais clareza, a sua história, de que modo ela foi sendo organizada, algumas fontes de seus valores e como esses valores e essa história se articulam na estruturação e no funcionamento do seu modo de ser e viver.

Progressiva e paralelamente às novas percepções que vai adquirindo de sua história e de seu mundo, o sujeito começa também a mudar seu modo de agir, já que, agora, consegue compreender muito melhor os conflitos que enfrenta quando atua no seu dia a dia.

Mas como conseguir isso? Como seria uma sessão terapêutica na qual se aplicasse tal método?

Tentarei, a seguir, descrever o esquema básico de uma sessão de RPHP.

Depois, procurarei detalhar um pouco mais cada item desse esquema.

3.2- ESTRUTURA DO MÉTODO

ESQUEMA BÁSICO DE UMA SESSÃO DE RPHP

 

Uma sessão dura aproximadamente 50 minutos.

Ela é dividida em quatro momentos principais.

Primeiro Momento

                                                        Tempo

A– Criação de um estado de relaxamento

       físico do cliente

5 minutos

B– Aquecimento da imaginação

3 minutos

C– Caminhada no tempo, para trás

3 minutos

D- Exploração de uma idade ou período de vida determinado

9 minutos

E– Retorno no tempo até aqui e agora

3 minutos

F– Relaxamento físico

5 minutos

          Segundo Momento

A- Expressão gráfica. Proposta: colocar, numa folha de papel, traços, rabiscos, qualquer expressão gráfica, que possa significar, para o cliente, o tom emocional e momentos importantes da exploração da idade – ou fase de sua vida – que foi revista no primeiro momento dessa sessão.

B- Expressão corporal. Em alguns casos, quando é muito difícil a expressão gráfica, incentiva-se o cliente a se expressar corporalmente, de tal modo que seus movimentos físicos possam complementar, ou até substituir, o que experimentou ao se expressar graficamente, ou ao tentar fazer isso, momentos atrás.

Terceiro Momento

Preenchimento de um “questionário”, do qual constam sete perguntas, as quais

deverão ser respondidas de modo muito sucinto.

As perguntas são:

1- Como era seu mundo nesse período de sua vida?

2- Como as pessoas conceituavam você?

3- O que você sentia pelas pessoas com as quais convivia nessa época?

4- Que conceito você fazia de você mesmo?

5- Se fosse possível, o que você mudaria nessa parte de sua vida?

6- Que relação que você estabeleceu com “você” mesmo durante esse      trabalho?

  • Agora, após responder a todas essas perguntas, como você está-se sentindo?                            O que esse período representou para você?

         Quarto Momento

 

Gravação em Vídeo. Durante aproximadamente cinco minutos, momento no qual o cliente tem a oportunidade de registrar todo o tom emocional que vivenciou na sessão.

Um quinto momento é possível, caso o cliente necessite de um aprofundamento e discussão de questões que surgiram nesse trabalho, nesse dia, nessa sessão.

Após dar essa visão bem geral de como é composta uma sessão, vejamos, passo a passo, como tudo acontece.

O primeiro momento

A- CRIAÇÃO DE UM ESTADO DE RELAXAMENTO

Quase sempre o cliente, quando chega ao consultório, mesmo aquele que se mostra tranquilo, calmo, se encontra numa situação de ameaça. Ele “sabe” que, no espaço terapêutico, há uma possibilidade de entrar em contato com verdades sobre si mesmo que seriam muito difíceis para ele admitir.

Uma sessão terapêutica coloca sempre o cliente em risco de ter que admitir aspectos de si muito pouco aceitáveis para ele mesmo e, talvez, para os outros.

Este estado de ameaça provoca, a nível físico, uma tensão e ela pode dificultar o surgimento de uma permeabilidade de percepção, agindo, assim, sobre a memória, sobre a compreensão da realidade, sobre a capacidade de contato com suas sensações, ou seja, uma pessoa que está muscularmente tensa não consegue identificar, com facilidade, as alterações que estão ocorrendo em si num dado momento, sejam elas de ordem muscular ou não, nem no mundo exterior a ela.

Considero, pelo que tenho podido vivenciar na prática, que iniciar uma sessão de RPHP com um relaxamento facilita em muito o trabalho, pois cria uma diminuição na tensão muscular, aumentando a possibilidade de o cliente “caminhar” com mais segurança e menos “defesa desnecessária”, e, com isso, avançar mais na compreensão da dinâmica da estruturação de seu modo de ser.

O relaxamento proposto, geralmente, é o que a maioria de nós conhece: um modo de tomar consciência do corpo, parte por parte, pés, pernas, quadris, tronco, braços e mãos, pescoço, cabeça.

Através desse exercício, que dura aproximadamente 5 (cinco) minutos, procuro ajudar o cliente a aumentar o grau de consciência de seu corpo, do seu estado de tensão, das partes que lhe parecem mais congestionadas, as mais relaxadas…  enfim,  se perceber corporalmente.

O relaxamento é dirigido por mim e sempre acompanhado de uma música, uma mesma música, à qual dei o nome de “Música A”. Isso provoca, progressivamente, sessão após sessão, uma associação entre música/relaxamento, o que ajuda, cada vez mais, o cliente a conseguir, a cada encontro, níveis mais profundos de descontração física.

O trabalhado, até então, situa-se basicamente no nível físico, nos músculos, nas vísceras…

         B- AQUECENDO A IMAGINAÇÃO

 

Complementando o relaxamento, proponho um outro exercício que atua a nível da imaginação. Pretendo, com isso, além de provocar um relaxamento físico, provocar também um “aquecimento” da imaginação (outro elemento importante para o método).  Ela será muito útil, quando o cliente estiver explorando sua história, ao mesmo tempo que ajuda, também, o cliente a se desligar do seu “aqui-agora”.

Para isso, uso de uma imagem que é proposta para o cliente e lhe peço que a desenvolva, que mergulhe nela, que crie algo a partir dela e sobre ela.

Dou a ele cerca de 3 (três) minutos para isso, e, nesse momento, estou-lhe apresentando, simultaneamente, uma outra música à qual denominei de “Música B”.

Tendo relaxado e exercitado a imaginação nosso cliente, ele está em condições e iniciar a terceira etapa desse primeiro momento.

Qual o papel da imaginação em nosso método?

Na realidade, quando se pergunta a alguém sobre sua história, ela utiliza uma parcela considerável de lembranças reais, concretas, de fatos documentados, e uma outra que é feita basicamente de fantasias criadas por ele, por uma necessidade de preencher lacunas da memória.

Ao “aquecer” a imaginação do cliente, eu o estou convidando a utilizar desse recurso de modo mais pleno, pois tenho certeza de que o que ele criar e/ou imaginar sobre si e sua história, certamente contém o seu modo peculiar de ser, sua verdade sobre si mesmo e ela é que lhe dá condições de articular suas “lembranças reais” em algo maior que é seu modo de ser no mundo.

A realidade dele é seu mundo fatual e seu mundo imaginário. Ambos são somente dele. Ambos são molas que impulsionam, dirigem e orientam seu modo de perceber o mundo e, portanto, de interpretá-lo.

Imaginação e realidade, de um mesmo sujeito, são o sujeito e, portanto,  portas de entrada para a compreensão de seu mundo.

C- A CAMINHADA NO TEMPO

Nunca vi um encontro terapêutico que não contives-

se uma história a ser contada. Sempre procuramos os fatos antigos, para que eles possam dar condições, ao que nos ouve, de entender o que se está querendo contar.

Na terapia, o cliente chega e se expressar de certo modo para o terapeuta. Essa expressão só terá sentido, só poderá ser compreendida, dentro de um contexto, de uma história.

Quando somos alunos do curso de graduação em psicologia, ouvimos, constantemente, a sugestão para que acompanhemos o fluir do discurso do cliente, não o atropelemos…

Ouvimos, também, sugestões que indicam como é importante a sequência, às vezes aparentemente desconexa, do discurso dele, pois isso, certamente, mostra os caminhos que ele precisa percorrer, para, finalmente, chegar às suas descobertas, a seus insights.

Organizar uma história, colocar nela uma sequência cronológica, seria simplesmente um absurdo, algo que contrariaria profundamente o “flutuar com o cliente”.

Talvez seja importante fazer uma ressalva aqui.

Não considero errado que se “flutue” com o cliente, que se deixe por conta dele a sequência que ele bem desejar.

Não creio que seja necessário, para se fazer uma terapia, para se compreender um cliente, que se organize, no tempo, os fatos de sua vida…

Tudo isso é profundamente pertinente, se não estivermos aplicando o RPHP.

 

E é exatamente, de modo profundamente solto que atuamos com um grande número de clientes, aqueles que não estão vivenciando o método de reconstrução da história pessoal.

Por uma questão puramente prática, é fácil perceber-se que é muito mais simples se entender uma história, se você a começa pelo começo.

Uma situação A, que antecede a uma B, que, por sua vez, vem antes de C…  É mais fácil compreender C, se conheço A e B. Nossa compreensão será mais ampla, mais segura.

Poderemos argumentar se é indispensável conhecer A e B para se compreender C. Diria que não. Mas, certamente, poderemos afirmar que a compreensão de C se torna muito mais difícil e limitada, quando não conhecemos A e B.

Mas é crucial que falemos, antes que o leitor fique com uma ideia distorcida do que de fato ocorre na prática do RPHP, que, para nós, o fato C é também muito importante para a compreensão do A e do B. Em outras palavras, o presente ajuda a compreender o passado e vice-versa.  Mais ainda, as fantasias projetadas para o futuro, sem dúvida, também interferem na configuração do que se percebe no presente do sujeito.

A história não é um fio descontínuo.

Um momento da história está fatalmente ligado e até determinado por todos os outros que o antecederam, numa sucessão retroinfinita, bem como com todos os outros que o sucederão.

Onde começa uma história? Impossível responder.

Onde terminará uma história? Igualmente impossível responder.

Se é impossível responder onde começa uma história, por outro lado, é possível afirmar-se que, quanto mais longe, para trás, pudermos ir nela, mais o momento presente se tornará compreensível, mais forma, mais inteligibilidade, mais próximos estaremos de sua “natureza”, e o mesmo se dirá em relação ao “futuro”.

Não nos podemos esquecer de que o futuro é também uma força poderosa que dá sentido, energia e movimento para o presente.

A história de cada um de nós começa, a nível concreto, no ponto em que a conseguimos visualizar e ter sobre ela alguma informação ou algum entendimento, mesmo que sejam apenas suposições, fantasias.

Se não podemos saber, com certeza, como fomos gestados ou como foi o momento em que fomos concebidos, talvez nos seja possível ter dados sobre nossos pais, o momento em que eles viviam quando fomos gerados, a situação social, econômica, o momento político e social de nosso grupo de amigos, familiares… Onde morávamos, o que os nossos familiares realizavam na época…  Enfim, podemos saber como era o mundo ao qual chegamos, mesmo que isso contenha uma infinidade de lacunas e fantasias.

Mas como se processa essa “caminhada no tempo”?

Na fase em que estou, ainda, apresentando o método ao cliente, como uma alternativa possível a ser usada, caso ele se interesse, ajo do seguinte modo:

a – Explico como é o método.

b – Se ele se interessar pela experiência, realizo uma “sessão experimental”, em que ele passa pelo processo, focalizando uma época, ou uma data, ou uma experiência dele, da vida dele, que lhe pareça bem consciente, bem viva em sua memória. Trata-se de uma vivência para que ele experimente o relaxamento, o “aquecimento” da imaginação, a caminhada no tempo e a exploração de um momento de sua vida, mas que, segundo ele, não represente uma situação fora do comum.

c – Uma vez que o cliente viu como será a dinâmica das demais sessões, ele, então, decide se está ou não interessado em utilizar o recurso que lhe estou apresentando.

d – Caso ele decida por começar o processo, então passo a programar, com a ajuda dele, os espaços de tempo que serão focalizados, que serão explorados em cada sessão.

Do momento da concepção até aproximadamente oito anos de idade, costumo fazer uma exploração ano a ano. Depois dessa fase eu e o cliente, com a indicação dele, organizamos os períodos de vida a serem focalizados. Por exemplo, uma programação para um adulto de 25 anos de idade poderá ser assim:

1a sessão: do pré-natal até o nascimento

2a sessão: do nascimento até um ano

3a sessão: de 1até 2 anos

4a sessão: de 2 até 3 anos

5a sessão: de 3 até 4 anos

6a sessão: de 4 até 5 anos

7a sessão: de 5 até 6 anos

8a sessão: de 6 até 7 anos

9a sessão: de 7 até 8 anos

10a sessão: de 08 a 10

11a sessão: de 10 a 15

12a sessão: de 15 a 16

13a sessão: de 17 a 17

14a sessão: de 17 a 19

15a sessão: de 19 a 22

16a sessão: 23 anos

17a sessão: 24 anos

18a sessão: 25 anos

Quando o cliente escolhe, na décima sessão, explorar o período de 8 a 10 anos de idade, provavelmente acreditou que, dentro desse período, há acontecimentos que julga significativos para a compreensão de sua história, ou por saber, de antemão, sobre tais acontecimentos, ou, pelo contrário, perceber que se trata de um período profundamente obscuro sobre o qual não se lembra de absolutamente nada.

Quando optou por fazer a 13a sessão, explorando somente a idade de 17 anos, certamente acreditou que esta idade foi muito significativa e que vale a pena  explorar mais profundamente essa fase de sua vida.

Raciocínio semelhante aos desenvolvidos nos dois últimos parágrafos podem ser encontrados nas demais escolhas feitas pelo cliente, para as explorações das idades após os oito anos.

Bem, mas como é, na prática, essa caminhada no tempo?

Uma vez já relaxado e tendo estimulado a imaginação, o cliente recebe uma sugestão para que imagine algo que possa transportá-lo no tempo.

Feito isso, começo a solicitar ao cliente que tome consciência de si mesmo, como ele é naquele momento, a idade que tem, a sua aparência física, etc., e que, conseguido isso, então, comece a caminhar no tempo para trás, de tal modo que possa, como um espectador, se ver no dia anterior, como estava na véspera…

Segundos depois disso, sugiro que o cliente “se veja” há uma semana atrás, logo

após, há dois dias atrás, depois há um mês atrás… e, assim, sucessivamente até chegarmos à época que estamos interessados em explorar.

Todavia, é importante que o cliente mantenha sempre presente a ideia de “estar- se vendo como ele era“, como, se durante toda a caminhada no tempo, ele fosse sempre um espectador de si. Assim, ele, que tem hoje 25 anos, “se verá” com 18, com 14… com um ano de idade, como um feto dentro da barriga de sua mãe…

Na primeira sessão, caminharemos no tempo até o momento da concepção, ou antes, caso sinta necessidade de explorar o contexto no qual os pais viviam na época em que ele foi concebido, ou uma breve história dos próprios pais, do namoro deles, das suas famílias, etc., etc.

Nessa primeira sessão, minha proposta é explorar o período da concepção até o momento do nascimento.

Na segunda sessão, caso a primeira nos tenha dado uma sensação de “é suficiente”, exploraremos o período que vai do nascimento até um ano de idade, e, assim, sucessivamente.

Não tenho nenhuma norma rígida em relação à permanência do cliente na exploração de determinada idade ou fase de vida. Em outras palavras, caso ele queira repetir uma, duas, três ou mais vezes a exploração de uma mesma idade, a escolha é dele. Ele repetirá quantas vezes considerar necessárias para ele. Via de regra, o que tem ocorrido, na prática, é uma repetição de, no máximo, 3 vezes. O mais comum é  fazer-se apenas uma para cada idade ou período.

Essa caminhada no tempo, para trás, tem como objetivo, apenas, ajudar o cliente a se situar no tempo, numa época de sua vida.

Finalmente, é importante que se saiba que, aqui também, uso uma música como fundo para esse momento. É a “Música C”.

Uma vez feito isso, passamos para o outro momento da sessão, que é a exploração daquela idade ou daquela fase da vida.

 

 

D- EXPLORANDO UMA IDADE OU UMA FASE

 

Uma vez tendo “caminhado no tempo”, mantendo a consciência da idade que ele possui no dia em que vivencia a sessão terapêutica, sendo um “espectador de si”, o cliente “chega” à idade a ser explorada.

Nesse momento, começa a ouvir uma outra música (“Música D”) e, então,  sugiro ao cliente que  observe a si mesmo naquela idade que estamos focalizando, ou seja, se estamos tentando rever seus 3 anos de idade, seria interessante que ele pudesse “ver” como ele “é” aos 3 anos.

O terapeuta tenta ajudá-lo a prestar atenção aos seus sentidos:

“Observe formas, cores, sons e ruídos, odores, sabores, sensações viscerais, sensações táteis, emoções… Verifique como aquele menino (a) está se sentindo!

Observe o mundo no qual ele(a) vive, as pessoas a seu redor… Observe a expressão no rosto das pessoas que convivem com essa criança.

Observe o que dizem em relação a ela, o conceito que fazem dela, o que parecem sentir por ela nessa época.

Observe o que sente pelas pessoas que convivem com você nesse período.

Procure identificar o que essa criança sente por ela própria, como parece sentir-se nas situações: segura? confiante? insegura? com medo? alegre? triste?… Ela parece gostar de si mesma?

Se fosse possível, você, que tem agora 25 anos, o que gostaria de mudar nesse período de sua história? O que gostaria que tivesse sido diferente, quando tinha 3 anos?

Se você desejar fazer algum comentário sobre o que está “vendo”, lembrando ou imaginando, faça-o, mas em voz baixa. Estou junto de você nessa exploração,  caminhando também no tempo…

Uma vez dadas essas instruções, fico quieto e, durante cerca de mais 8 minutos, o cliente permanece “mergulhado” no “tempo passado”, deixando que lembranças antigas ou atuais ocorram.

Ele deverá, somente, observar e ir registrando, mentalmente, o que vai passando por “sua cabeça”.

Pedimos sempre que ele não se exija, que não se cobre um “lembrar”, mas que, pelo contrário, se permita ser um espectador do que vier a acontecer naquele momento.

         E- RETORNO NO TEMPO

Findo esse tempo de exploração do “passado”, é hora de retornar.

Recomeça a “Música B” (3 minutos).

Sugiro ao cliente que “se despeça” daquela criança (nesse exemplo que estamos dando, trata-se dele, com 25 anos, “em contato” com ele aos 3 anos).

Inicia-se uma contagem crescente.

Exemplo: Desse ponto em que você está, dos 3 anos, agora, passaremos para 5 anos… para 10 anos… para 15 anos… para 20 anos… para 23 anos… para 24 anos… para o dia X (por exemplo, um mês atrás)… para o dia Y (dois dias atrás)… para o dia Z (dia anterior, ou manhã do dia em que estamos realizando a sessão)… para o aqui e o agora, nesta sala, ouvindo os sons, os ruídos, sentindo o peso do seu corpo, o gosto da boca, o cheiro do ar, as cores, as formas… movimentando seu corpo aos poucos e “acordando, como se acordasse de um sono longo, sentindo-se bem física e psiquicamente.

         F- RELAXAMENTO

 

Nesse momento, recomeça a “Música A” (do relaxa-

mento inicial).

Sugere-se ao cliente que fique quieto, tentando rever e organizar um pouco tudo o que aconteceu, o que sentiu, o que “viu”…

Ele dispõe, caso queira, de 5 minutos para isso.

Em resumo, esse primeiro momento poderia ser descrito assim:

                                                           Tempo

  • relaxamento – “Música A“ 5 minutos

  • imaginação – “Música B“ 3 minutos

     3-caminhada no tempo  – “Música C“            3 minutos

     4-exploração – “Música D“                          9 minutos

     5-caminhada no tempo  – “Música C“            3 minutos

     6-relaxamento – “Música A“                        5 minutos

     Total=28 minutos

Para facilitar a marcação do tempo e a dinâmica da sessão, essas músicas foram gravadas numa fita C-60, na sequência indicada acima. Assim, uma vez colocada a fita na aparelhagem de som, elas mesmas vão marcando a duração de cada etapa, liberando-me dessa tarefa.

O segundo momento

 

EXPRESSÃO GRÁFICA

 

Uma vez tendo caminhado no tempo e revisto um período de sua vida, o cliente, quase sempre, se encontra mobilizado ou, pelo menos, reflexivo sobre o que experimentou minutos atrás.

Essa experiência comumente é marcada por surpresas, questionamentos, novas formas de compreender “como as coisas aconteceram”…

Não é raro que a emoção se faça presente e, junto a ela, “algo” que não fica bem definido enquanto sensação.

Minha prática tem-me mostrado que a palavra não é suficiente para expressar todo o conteúdo de uma vivência, de uma experiência vivida.

Muitas vezes o cliente percebe que esteve mergulhado numa lembrança de alguma situação e que “não há palavras para descrevê-la”. Nesse momento, outras formas de “falar” se mostram fundamentais. Por isso, solicito sempre que o cliente tente pôr numa folha de papel, utilizando lápis-cera, hidrocor, lápis de grafite, ou outros materiais, algo que possa representar, para ele mesmo, um pouco do que sentiu.

Sugiro que deixe fluir, o mais espontaneamente possível, qualquer coisa que lhe ocorra, seja um rabisco, uma figura geométrica, uma forma disforme, uma cor…

A pessoa não se deverá preocupar com o convencional, por exemplo, desenhar de forma compreensível uma pessoa, um animal, uma flor… O que nos interessará será mais “o que saiu dele”, esse movimento de pôr para fora algo que está sendo sentido dentro de si, ainda que não compreensível, lógico…

Alguns clientes que têm mais facilidade para se expressar verbalmente, escrevem naquela folha utilizando o mesmo critério usado para o desenho: “deixar fluir tudo o que quiser escrever, sem censura, sem convenções, nem mesmo as ortográficas.

O que pretendo é que se crie um fluxo de ideias, de pensamentos,  de imagens que possam estar associadas ao que foi “revivido”, no momento em que o cliente esteve “revendo” um período de sua vida.

EXPRESSÃO CORPORAL

Pode ocorrer o fato de o cliente ter dificuldade para se expressar gráfica (desenhar) ou verbalmente (escrevendo livremente). Isso não é comum, mas já tive alguns casos assim. Nessas circunstâncias, sugiro ao cliente que procure, então, expressar-se corporalmente.

Como seria isso?

Pedimos para que fique numa posição física que possa representar para ele o que está sentindo, ou que faça movimentos com o corpo ou com parte do corpo.

Quando acontece isso, sempre peço ao cliente para que preste atenção ao que ocorre dentro dele, que sensação experimenta ao fazer tais movimentos…

Essas propostas estão baseadas em princípios da Terapia Expressiva.

 

 

 

O terceiro momento

 

O QUESTIONÁRIO

 

 

O que ocorre com maior frequência é que, do primeiro momento até o final do segundo, o cliente passe por uma experiência muito viva do reencontro com sua história, podendo sentir os tons emocionais, afetivos, vivenciais, relacionais… enfim, sentir sua história sendo algo muito mais vivo, com movimento.

É como se o cliente “visse” sua vida e não somente olhasse para ela como algo estático, como uma sucessão de fatos, um acumular de informações.

Percebe que muitos fatos foram omitidos, não lembrados, esquecidos. Muitos ficaram claros, outros profundamente obscuros.

Tento tranquilizar o cliente, de modo que ele não se preocupe se muitos dados lhe escaparam, pois sabemos muito bem que é impossível recuperar todos os fatos, entender suas correlações…

Nosso objetivo não é esse.

Nosso objetivo é chegar o mais próximo possível da compreensão de como os fatos se foram interligando, a ponto de produzir um tipo característico de percepção de si e do mundo que o cerca. Como, ao longo da história daquela pessoa, alguns fatos significativos foram-se organizando e construindo, no sujeito, seu modo peculiar de ser no mundo.

E como, quase sempre, o cliente nos procura por sentir que seu modo de ser não lhe está dando condições para produzir um tipo de vida que lhe seja a desejada, torna-se importante para ele entender como poderá desconstruí-lo, para, com isso, liberar-se de muitas amarras que o limitam.

Cheguei à conclusão de que se poderia lançar mão de uma estratégia para conseguir maior eficácia na compreensão do que ocorria durante as sessões, ou seja, na compreensão das tramas daquela história e, com isso, criei um questionário.

Ele tem como propósito organizar as vivências em dois eixos: um transversal e um longitudinal.

No eixo transversal, podemos ter uma visão das características da idade ou da fase que estivermos pesquisando numa sessão.

No eixo longitudinal, temos uma visão de como, ao longo da vida do cliente, uma determinada atitude foi sendo construída, modificada…

Tentarei explicar isso melhor.

Estou partindo de um pressuposto básico que é: uma pessoa vive num mundo em relação com pessoas, instituições, objetos… enfim, uma pessoa vive no mundo em relação com tudo o que há nele. Parto, também, da ideia de que, nessa relação, ele vai formando um conceito de si mesmo e do mundo, através de uma troca incessante de experiências e de descrições da realidade interna e externa.

Esses conceitos, de si mesmo e do mundo, nem sempre correspondem ao que ele descreveria como sendo ele próprio ou o mundo.

Tudo indica que as descrições que lhe chegam sobre o mundo e sobre ele próprio, muitas vezes, são acompanhadas de pressões fortes, provenientes do meio em que vive, que lhe impõem uma forma de ver distorcida, tanto da realidade que o cerca, como de si mesmo.

Com o passar do tempo, a pessoa passa a ser o que esperam que ela seja, e o mundo para ela passa a ser como lhe foi descrito durante toda sua vida.

Carlos Castaneda (1992, p. 9), no livro Viagem a Ixtlan, faz uma afirmação que ilustra bem essa vivência dos homens:

(…) todos que entram em contato com uma criança são um mestre que lhe descrevem o mundo sem cessar, até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo conforme descrito… A partir daquele momento, porém, a criança é sócia. (…) é capaz de fazer todas as interpretações perceptíveis adequadas que, conformando-se com aquela descrição, a revalidem.

Não importa, aqui, discutir a natureza dessas forças, nem as razões que poderiam levar as pessoas a absorverem esses padrões de descrições do mundo e de si.  O importante, na prática, é se perceber que isso acarreta uma luta no interior daquelas que, por alguma razão, chegam a sentir a existência dessa divisão interna. Tal divisão faz com que se sinta “falsa” com ela própria, não podendo ser o que sente que, de fato, é, com medo de arriscar novas formas de viver, prisioneira de ideias sobre si e sobre a realidade.

Muitos nem percebem tal divisão.

Apenas agem incongruentemente.

Tentando amarrar esses dados, de modo mais objetivo, proponho ao cliente que

registre, de modo bem sucinto, o seguinte:

  1. Como era seu mundo nesse período de sua vida?

Ao responder a esta pergunta, o cliente se reporta ao que experimentou, quando estava revendo aquele período ou idade, nessa sessão, nesse dia.

Procurará fazer um registro do contexto no qual viveu aquela idade, a casa, a rua, a época, do ponto de vista social, econômico, escolar, os amigos, os valores, as crenças… Enfim, tentará contextualizar esse momento de sua vida.

Procurará observar como imagina, ou como se lembra, através de dados muito concretos para ele, do mundo no qual estava vivendo, suas características mais significativas.

  1. Como as pessoas conceituavam você?

Nesse momento, procura verificar o que costumavam dizer a seu respeito.  Como o viam, o qualificavam…

Quais eram os atributos mais descritos pelos outros, como característicos de seu modo de ser, de agir…

Quem era ele para seus pais, seus irmãos, amigos, conhecidos, professores…

  1. O que você sentia pelas pessoas com as quais convivia naquela época?

Tenta-se, através dessa pergunta, perceber como o cliente reagia, que sentimentos experimentava e, talvez, que conflitos eram gerados nele, a partir do modo como os outros o julgavam.

Outro aspecto que surge com essa pergunta é o tom emocional e afetivo, que caracteriza a relação do cliente com as outras pessoas.

  1. Que conceito você fazia de você mesmo?

– O modo como o próprio cliente se avaliava.

– Que juízo fazia de si.

– Quais as características mais marcantes no seu modo de ser, de agir, de    pensar…

– Que tipo de relação estabelecia consigo mesmo?

– Seu nível de autoaceitação, de valorização ou desvalorização de si…

Até esta questão número 4 (quatro), como se pode notar, estamos atentos a dois polos:

  • a relação sujeito/mundo (o sujeito e o exterior dele);

 

2– a relação sujeito/sujeito (o sujeito e o interior dele mesmo).

Passemos, agora, para a quinta pergunta do questionário.

  1. Se fosse possível, o que você mudaria nessa parte de sua história, nessa fase de sua vida?

As pessoas costumam responder a essa pergunta, expressando suas fantasias, seus desejos, seus projetos, e, mais que isso, denunciam o que realmente importante ocorreu nesse espaço de tempo que está sendo focalizado na sessão.

Elas sabem que não poderão alterar o passado, mas, ao se lhes permitir fantasiar essa possibilidade de mudança, quase sempre aproveitam para visualizar o  que gostariam, ainda, se fosse possível, de criar como alternativa de saída construtiva para seu problema.

Seria bom que não nos esquecêssemos de que, nesse tipo de trabalho, essas questões são levantadas a cada sessão, em relação, portanto, a cada idade ou etapa de sua vida. Como decorrência disso, a sucessão de mudanças idealizadas ao longo da história da pessoa acaba por apontar numa direção bastante concreta, que nos pode dar uma pista sobre seu movimento de mudança interior, o que vale dizer: possibilidade de criar saídas alternativas e promissoras para os problemas que enfrenta.

  1. Aproxime-se de “você mesmo”. Olhe bem como você é aos 5 anos (ou 7, ou 15, dependendo da idade que se estiver revendo na sessão).

      Diga alguma coisa para “você”. Ouça o que “você” tem a dizer para você. Observe “sua” expressão do olhar, “sua” postura física,“seu” corpo, “sua” fala, “sua” voz…

      Tente se aproximar de você mais ainda e, se possível, abrace “você”, coloque “você” no colo… Observe nessa hora o que você sente por “você”. Finalmente,“despeça-se de você”.

Por meio dessas sugestões, tento estabelecer “um contato do cliente com ele mesmo”. Como consequência dessa “aproximação”, conseguimos chegar bem perto do sentimento dele para consigo mesmo: o quanto ele se aceitava/se aceita.

Tudo me leva a crer que o grau de autoaceitação se correlaciona com o grau de possibilidade de mudança, de solução de problemas do cliente, mas ainda não posso afirmar isso de modo categórico.

7- Após responder a todas essas perguntas, como você está-se sentindo AGORA? O que esse período de sua vida representou para você?

Após todas as etapas acima descritas de um até seis, o cliente passa a ter uma percepção muito viva do que aquele período representou em sua vida, no seu modo de ser. Por isso, propor-lhe esta sétima questão o ajuda a fazer uma verdadeira síntese daquele seu período de vida.

 

 

O quarto momento

 

 

GRAVAÇÃO EM VIDEOTEIPE

Depois de respondida a sétima pergunta, muitas vezes, proponho ao cliente que

sejam gravadas, em videoteipe, as impressões gerais experimentadas por ele naquela sessão.

Tenho sido indagado sobre a necessidade, sobre a eficácia e a pertinência do uso do vídeo…

Gostaria de esclarecer que, em minha maneira de ver, tudo o de que dispusermos como recurso para ajudar o cliente a ampliar sua percepção de si e do mundo que o cerca deve ser colocado à sua disposição, para que ele o utilize como melhor achar.

O vídeo é um desses recursos e, por sinal, muito poderoso. Não fará mágica, não fará o tempo parar, não cristalizará nada, “somente” atuará como um espelho, ou como mais um “documento” a ser compreendido.

Através do feedback que o VT lhe oferece, ele cria uma nova linguagem, que fala sobre o seu modo de ser, seu modo de dizer o que diz, de olhar, sua postura física, seus gestos, um retrato vivo dele mesmo.

Talvez seja interessante acrescentar, também, que, embora o vídeo seja um recurso que utilizo no consultório, em outras situações vivenciadas nas quais apliquei o RPHP, ele não foi usado. Portanto, o vídeo não é um dispositivo essencial para a eficácia do método.

O quinto momento

 

O que ocorre numa sessão terapêutica varia imensamente.

Há sessões em que, por terem sido revistas situações repletas de lembranças fortes, com muita carga emocional, o cliente chega ao seu final muito tenso, confuso, “desequilibrado”. Nesses casos, esse quinto momento é indicado.

Nele, dar-se-á oportunidade ao cliente para falar mais sobre aquelas lembranças. Com isso, cria-se oportunidade para que ele se “reorganize”, se reequilibre e, aí, sim, possa encerrar a sessão.

O mesmo pode ocorrer quando as lembranças são profundas e intensamente alegres. Há, também, nessas situações, um “desequilíbrio” e devem-se criar condições para que ele usufrua, o mais plenamente possível, do material surgido e possa integrá-lo à sua história, tornando-a, cada vez mais, compreensível.

Tristezas, choros, alegrias, sorrisos, tudo é a pessoa manifestando-se, tudo é sua história, seu passado / presente / futuro.

Cada sessão tem a estrutura que tentei descrever nas linhas anteriores.

Em média, para se recapitular a história de uma pessoa, precisamos de 20 sessões de 50 minutos, sem se levar em conta o tempo que o cliente utiliza para as discussões de aprofundamento sobre elas.

Tenho notado que, sempre que falo sobre esse método (RPHP), os ouvintes, ou leitores, me fazem perguntas semelhantes às que se seguem.

– E, no final disso tudo, o que acontecerá?

– Haverá alguma conclusão? Uma orientação ao cliente?

Explico, então, que, na fase preparatória para a implementação do RPHP, costumo conversar bastante com a pessoa que deseja utilizá-lo e tento deixar, o mais claro possível, o seguinte:

  • Não haverá um “final”, uma “conclusão”, uma orientação”.

  • O que se espera é o desenvolvimento de um trabalho que, durante seu próprio processo, propiciará o surgimento de uma nova compreensão sobre os fatos passados e os atuais.

  • Essas “novas percepções” tendem a criar “novas possibilidades” de abertura de alguns caminhos, que nos poderão ajudar a encontrar soluções mais criativas para os problema que são trazidos para a terapia.

  1. O SELF: Construção, Desconstrução e Autorreconstrução

    

 

O self, tal como o estamos conceituando aqui, é um conjunto organizado e mutável de percepções que se referem ao indivíduo, tais como as características, atributos, qualidades e defeitos, capacidades e limites, valores e relações, que ele reconhece como descritivos de si mesmo e que percebe como dados de sua identidade.

 

Neste item, darei alguns exemplos de como o self do cliente vai sendo historicamente construído, ao mesmo tempo em que vai sendo desconstruído e, como decorrência disso, vai-se autorreconstruindo.

Utilizarei, para isso, os dados fornecidos por duas pessoas que passaram por esse processo, às quais chamarei de cliente A e cliente B, e que me autorizaram a usar essas informações no presente trabalho.

Deixarei que os dados recolhidos falem por si.

O caso da cliente A nos servirá como exemplo de um tipo de recolhimento de dados, que é feito de forma mais descritiva, em que, juntos, redigimos um tipo de síntese do que foi falado por ela em cada sessão. Por isso, colocarei sempre entre aspas o que ela escreveu no questionário.

No caso da cliente B, apresentarei o que ela redigiu, sem nenhum acréscimo, sem nenhuma reflexão nossa sobre o que foi escrito no questionário.

Se observarmos cuidadosamente o conjunto de respostas dadas pelas clientes, verificaremos exatamente como entram em contato com os elementos que construíram seu self, no momento em que cada uma delas revê, relembra, imagina, um período ou uma idade de sua vida. Ao mesmo tempo em que isso ocorre, observa-se que aí surge um movimento, que podemos definir como “desconstrução”, pois se assemelha a um desmontar o todo e passar a ver as partes constituintes da estrutura do self.

Nesse processo de verificação dos elementos constituintes (desconstrução), ocorre um movimento inverso, que é o de autorreconstrução, ou seja, o próprio cliente passa a compreender as articulações que existem entre esses elementos que compõem seu self.

 

Essa compreensão é, na verdade, uma nova percepção do seu self, e esse fato novo (essa nova percepção) passa a gerar um movimento de mudança no seu modo de se ver, de se aceitar, e, consequentemente, na sua conduta.

Tal movimento tem-se mostrado ser de natureza positiva e semelhante ao que se costuma definir como “mudança construtiva da personalidade”, tão bem exemplificada num estudo citado por Rogers (1970, p. 232), que focaliza as relações entre a terapia e autopercepção, e que apresentou como um dos resultados o seguinte:

É portanto razoável concluir deste estudo que uma das alterações associadas com a terapia centrada no paciente é a da autopercepção, que se altera numa direção em que o eu é mais valorizado. E mais a frente: (…) sabemos por exemplo que é sobretudo o conceito do eu que se modifica ao longo da terapia e não o eu-ideal. Este último revela uma tendência para modificar-se, embora ligeiramente, e a sua modificação dá-se na direção de uma menor exigência e de uma maior realização. Sabemos que a imagem do eu que emerge no termo da terapia é avaliada pelos terapeutas como mais adaptada. Sabemos que esse eu que finalmente vem à superfície tem um maior grau de tranquilidade interior, de autocompreensão e de aceitação de si, de responsabilidade em relação a si mesmo. Sabemos que esse eu posterior à terapia encontra uma satisfação e uma tranquilidade maiores nas relações com os outros. A pouco e pouco, fomos capazes de ir juntando ao nosso conhecimento objetivo novos conhecimentos sobre as modificações provocadas pela terapia na autopercepção do paciente.

4.1– Apresentação de dois casos e gráficos

Passarei, agora, a apresentar os dois casos sobre os quais falei e convido vocês a verificarem como essas mudanças ocorreram ao longo da recapitulação progressiva da história de cada um delas.

RPHP- CLIENTE A

 

Início da terapia centrada no cliente: 22/02/95

Início da utilização da RPHP: junho de 1996  

Término: da RPHPdezembro de 1996.

Obs.: Cliente atendida duas vezes por semana.

 

 

QUESTIONÁRIO DE LEVANTAMENTO DE DADOS

DESCRIÇÃO DAS RESPOSTAS DADAS

 

ITEM 1 – O MUNDO (Como era o mundo no qual você viveu este período de sua vida? Quais os pensamentos mais presentes em você nessa época? Quais os valores, as atitudes das pessoas que estavam ao seu redor?)

 

A sensação experimentada durante o período pré-natal foi de um mundo que parecia bom.

Do nascimento até o primeiro ano, a sensação de “espaço” se fez presente e as imagens lembradas foram: o quarto, o berço, os armários, etc. Tudo isso num contexto claro: “sempre claro (dia)”.

De um a dois anos, experimenta sensações agradáveis “pelo contato com o espaço e a curiosidade do descobrir (brinquedos, etc.).

Dos dois aos três anos, ocorre uma mudança, com tonalidades negativas e surge uma “sensação de algo não conhecido”.

Dos três aos quatro anos, primeira manifestação de raiva e uma sensação de experimentar uma realidade muito negativa: “Raiva das pessoas”.

Dos quatro aos cinco, as sensações mudam quase radicalmente: “Muita alegria, muito orgulho pela chegada do meu irmão.”

Dos cinco aos seis anos, novamente, retorna uma sensação desagradável: “Percepção de um ambiente confuso, com discussões.”

Dos seis aos sete anos, continua experimentando sentimentos desagradáveis, tais como: “Decepção. Medo. Raiva. Tristeza.”

Dos sete aos nove anos, “há uma ‘mudança para melhor’, mas, às custas de ‘um preço’”. Declara: “Certo alívio e ao mesmo tempo uma responsabilidade demasiada”.

Dos nove aos 11 anos, o ambiente ao seu redor, seu mundo, volta a ficar mais tranquilo: “Bom, mais tranquilo”.

Dos 11 aos 15 anos, vive um tempo de muitas mudanças (…) Passou a conhecer muita gente  e experimentar um “mundo mais aberto”. Tudo isso levava à sensação de perspectivas de “mudança de vida”.

Dos 15 aos 18 anos, consolida a relação de namoro. Com isso corta as relações de amizade que conquistara até então. A família do namorado passa a ser o ponto principal dos relacionamentos e passa a viver um “novo mundo”. Está feliz neste período.

Dos 18 aos 21 anos, tudo parecia maravilhoso, com muitas coisas novas acontecendo: casamento, faculdade, trabalho… Era um “mundo diferente, com muitas esperanças”.

Dos 21 aos 25 anos, ainda é um período de mudanças. É a “Fase da maternidade”, de viver a experiência de ser mãe.  Sente prazer em cuidar dos dois filhos.

Dos 25 aos 30 anos, é um período muito cansativo. Nele há muita atividade, muito trabalho, muitas responsabilidades: com os filhos, vida profissional, marido, vida social. É uma fase cansativa, de quase exaustão. Como diz: “É como se eu precisasse fazer isso!”

Dos 30 aos 35 anos, parece ser o momento da tomada de consciência do mundo falso em que vivia. “Vi que tinha uma vida minha e uma outra, que eu demonstrava para os outros.” “Comecei a observar e questionar minha vida.”

Dos 35 aos 37 anos, começa um novo relacionamento. O mundo agora é “complexo, pesado…” Nele surge a necessidade de decisões e essas são “difíceis”.

Dos 37 aos 38 anos, é o início de uma fase mais tranquila. É como se o temporal estivesse passando. É o início de uma outra vivência, de um outro mundo. Nessa sessão A dormiu. (cansada? relaxada? (…) “Dormi. Não me lembro de muita coisa. Foi uma fase mais tranquila. Parece o começo de uma segunda grande mudança.

Os 39 anos, é a consolidação desse  2o “mundo novo”.

Aos 40 anos, inicia-se uma ampliação da “visão de mundo”. Agora, as pessoas que convivem com A começam a ser percebidas por ela de modo mais “claro”: “É um momento de muitas revelações para mim. Comecei a perceber o verdadeiro sentido dos relacionamentos das pessoas que convivem comigo. É como se fosse um renascer. Havia momentos legais, mas com alguns atritos. Neste período, fiz umas arrumações em relação ao meu mundo.”

Já começa a “mostrar uma nova cara”, desconhecida para os que a cercavam. “Eu era muito previsível (boazinha) e fiquei um pouco ‘rebelde’. Eles não entendiam o que estava acontecendo.”

Aos 41: “Observei que as coisas que incomodavam antes já não incomodavam mais. Estou mais compreensiva, aceitando mais as necessidades do outro. Aprendi a ‘dividir’”. As decepções são menores, são menos intensas. Sinto mais coragem para enfrentar os problemas, tirar dúvidas, esclarecer. Ainda falta um pouco para tudo isso ser completo.

 

ITEM 2 – TU/EU (Que conceito as pessoas com as quais você conviveu nessa época, faziam de você? Que pensavam e diziam a seu respeito? Como avaliavam você, sua conduta?)

 

00-00- Uma criança bonita, porém decepcionante para a mãe pelo fato de ser menina.

00-01- Achavam-me bonitinha e calma.

01-02- Uma criança alegre, inteligente

02-03- Não acreditavam na minha percepção.

03-04- Bonitinha, arrumadinha, essas chatices todas…

04-05- Não me importava muito com isto.  Estava feliz demais.

05-06- Ignoravam-me. Só me davam alimento e conforto. Estavam mais preocupadas com elas próprias.

06-07- Não me davam importância.

07-09- Achavam-me muito forte, daí davam-me milhões de responsabilidades.

09-11- Vários. É uma situação diferente, morando com parentes. Eles gostavam de mim. Era mais valorizada.

11-15- Com 11 anos e corpo de moça, gostavam de estar junto de mim.

15-18- Todos gostavam muito de mim (a família do namorado). O pai dele me “adotou”.           Ganhei um pai que me apreciava muito.

18-21- Admiravam-me muito por ser nova e administrar uma casa, trabalho, estudo (…) pelo meu jeito de me vestir (…) tinha corpo muito bonito (…) Admiração grande pela minha estética.

21-25- Zelosa, cuidadosa, boa dona de casa, boa mãe. Capaz de dar conta de tudo.

25-30- Muito admirada. Era uma gata borralheira. De dia empregada, de noite madame.

30-35- Todos me viam muito positivamente. Era o que eu mostrava para os outros. Tentava mostrar-me mais claramente para o meu marido.

35-37- Maluca, doida, por deixar uma situação estável do casamento. Queriam levar-me a um psiquiatra. Desequilibrada.

37-38- Fiquei mais voltada para minha vida de casa. Com um novo casamento. Não sei           como me viam. Muitos não aceitavam o que fiz; uns me achavam egoísta, outros não. Eu não me importava com isso.

39-     Achavam-me extraordinária por conseguir organizar uma nova família.

40-     Um pouco rebelde (…) mudando(…) Antes eu era previsível. Eles, agora, não me  entendiam. Eu ia por um caminho “incontrolável” (Eles não me controlavam mais).

41-     Minha mãe está me achando ótima. As pessoas mais próximas estão entendendo          melhor minhas atitudes. Alguns não estão contentes com meus posicionamentos mais definidos.

 

ITEM 3 – EU/TU (O que você sentia pelas pessoas com as quais onvivia nesse período de sua vida? O que pensava sobre elas?)

                             

00-00- Carinho

00-01- Nada

01-02- Muito afeto

02-03- Não sei o que sentia.

03-04- Raiva

04-05- Muito carinho, afeto

05-06- Pena. Não conseguiam verificar algo bom para a vida delas.

06-07- Pena, desprezo, raiva

07-09- Pena de uns e desprezo de outras

09-11- Carinho, atenção. Acreditava nelas. Mais confiança.

11-15- Gostava muito de estar com elas. Só não gostava do meu pai. Ele sempre me envergonhava, bêbado.

15-18- Gostava muito delas. Sentia muito carinho.

18-21- Gostava de estar com eles. Fiz novas amizades. Faculdade, trabalho. Bom relacionamento com eles.

21-25- Não me preocupava muito. Dava-me bem. Sempre sobrecarregada. Não contava muito com as pessoas. Elas eram às vezes intrometidas.

25-30- Sempre querendo agradar e tratando bem os outros. Cumprindo meu papel.

30-35- Pena, porque era um mundo de tanta hipocrisia,

          promiscuidade, etc.

35-37- Desprezo pela total falta de respeito por mim.

37-38- O mundo era eu, meu marido e as crianças. Os sentimentos eram bons para com os que ficaram perto de mim.

39-       Foi um dos momentos da minha vida em que fiz

          mais amigos.

40-       Alguns passei a admirar mais e, em relação a

          outros, decepcionei-me.

41-       Eu deixo acontecer. Continuo tratando bem. Braços mais abertos (não totalmente) e bem mais firmes.

 

ITEM 4- EU/EU (O conceito que você fazia de você mesmo nesse período de sua ida. O que você sentia por você mesmo…)

00-00- Muito amor

00-01- Curiosa. Percebia os aspectos e as formas do lugar.

01-02- Eu era muito legal. Bonitinha, simpática.

02-03- Um pouco receosa

03-04- Achava-me bem bobinha e ao mesmo tempo inteligente.

04-05- Sentia-me muito importante.

05-06- Achava-me um pouco abandonada, mas capaz de encontrar coisas boas para fazer.

06-07- Sentia-me até bastante corajosa.

07-09- Achava-me bastante forte para suportar os problemas.

09-11- Muito legal.  Eu era capaz de segurar a barra daquela época.

11-15- Eu me valorizava muito. Achava-me maravilhosa.

15-18- Enfim, encontrei pessoas que me deram valor. A L. foi uma verdadeira irmã.

18-21- Pessoa extremamente forte, acreditando na vida. Pessoa muito importante.

21-25- Eu me via fazendo tudo aquilo que quis que fizessem por mim. Fui capaz de fazer p/meus filhos o que não tive.

25-30- Eu me achava extremamente capaz. Fazendo tudo: pagando contas, cuidando das crianças, saindo… Sempre provando para mim que eu era capaz.

30-35- Começando a sair dessa história, tendo certeza que não continuaria nessa história. Esse mundo eu não queria.

35-37- Corajosa e muito pressionada. Achava que iria conseguir. Disposta a mudar.

37-38- Surpresa com o que fizera. Muito corajosa e revoltada.

39-     Achava-me apenas o máximo em relação aos “meus”.

40-     Corajosa

41-    Estou precisando pegar sol… e, no meu diálogo com meu marido, estou com pouco saco. Não sou mais marionete. Estou com pouca paciência.

RPHP – CLIENTE B

 

Início da Terapia Centrada no Cliente: 28-02-94           

Início utilização do RPHP: junho/1995

Término: março de 1998

Obs.: Cliente atendida uma vez por semana.

 

QUESTIONÁRIO DE LEVANTAMENTO DE DADOS

DESCRIÇÃO DAS RESPOSTAS DADAS

 

ITEM 1 – O MUNDO (Como era o mundo no qual você viveu este período de sua vida? Quais os pensamentos mais presentes em você nessa época? Quais os valores, as atitudes das pessoas que estavam ao seu redor…)

00-00- Dificuldade de sair da casca.                             TN

  • Vontade de sair logo (da casca)

    • De que eu era diversão para eles. TP

01-02- Confusão                                                                      TN

02-03- Solidão                                                              N

03-04- Ansiedade                                                         MN

04-05- Confusão de pensamentos (ausência,

          solidão, distância…)                                           N

05-06- Rejeição e irritação por parte das pessoas.      N

06-07- Da alegria das brincadeiras da época                MP

07-08- Descobertas

08-10- Ausência do pai

10-13- Da minha carência

13-17- Aproximação e embate com o pai

17-21- A distância da família

21-25- Da dificuldade de entrar nas relações

          com os homens.

25-30- Avançar na vida.

30-35- Sobre a minha sensualidade.

35-38- As mudanças e o que perdi.

38-40- Monotonia das coisas

40-41- Necessidade de mudar.

41-42- De que tudo estava parado há muito tempo.

42-43- De que precisava realizar mais os meus

         desejos e menos os dos outros.

43-44- De que vivi um ano de conflitos. Desatencioso,

          pouca alegria, confuso.

44-45- Das minhas divisões internas. Atencioso,

          momentos alegres, pouca tensão.

44-     Atencioso, momentos alegres, pouca tensão

ITEM 2- TU/EU (O conceito que as pessoas, com as quais você conviveu nessa  época, faziam de você. Que pensavam e diziam a seu respeito? Como avaliavam você, sua conduta…)

  • Expectativa                                         TP

  • Expectativa                                         TP

00-01- Um brinquedo                                                   TN

01-02- Uma novidade                                                   TP

02-03- Carinho                                                              P

03-04- Criança que esperava demais das pessoas.      N

04-05- Indiferença                                                       MN

05-06- Criança inoportuna                                            N

06-07- Criança carente que solicitava demais.             TN

07-08- Respeito

08-10- Pessoa autoritária

11-13- De eu poderia dar mais de mim.

13-17- Conceito positivo, respeito

17-21- Positivo, pessoa com garra

21-25- Pessoa ingênua

25-30- Pessoa verdadeira

30-35- Pessoa alegre, determinada e também confusa

35-38- Pessoa respeitada

38-40- Pessoa amorfa

40-41- Pessoa séria

41-42- Pessoa séria e frágil

42-43- Respeito

43-44- Respeito e carinho; com frequência viam

          minhas qualidades.

44-     Respeito, carinho e consideração; com

         freqüência, viam minhas qualidades.

45-     Com frequência viam minhas qualidades.

ITEM 3 – EU/TU (O que você sentia pelas pessoas com as quais convivia nesse período de sua vida? O que pensava sobre elas?)

00-00- Nada                                                                  N

00-00- Carinho                                                              P

00-01- Expectativa                                                       TP

01-02- Indiferença por alguns, pena da minha mãe.    N

02-03- Vontade de me livrar delas.                              TN

03-04- Desconfiança, sobretudo da minha mãe.                     MN

04-05- Distanciamento                                                 N

05-06- Medo                                                                 MN

06-07- Medo e carinho                                                 TN

07-08- Sentimento de novidade

08-10- Dúvidas

10-13- Dúvidas

13-17- Respeito

17-21- Insegurança

21-25- Sentimento de inferioridade

25-30- Prazer em conhecê-las.

30-35- Alegria por descobri-las

35-38- Alegria por elas me respeitarem.

38-40- Indiferença pela maioria

40-41- Compreensão maior do que no passado.

41-42- Desconfiança

42-43- Descrença

43-44- Respeito, carinho. Gostava da maioria.

44-     Respeito, carinho, consideração e muitas

         dúvidas. Gostava da maioria.

45-     Gostava da maioria.

ITEM 4 – EU/EU (O conceito que você fazia de você mesmo nesse período de sua vida.)

00-00- De uma pessoa com medo                              TN

00-00- Pena                                                                  MN

00-01- De um brinquedo                                                         TN

01-02- Pena                                                                  MN

02-03- Sentimento de muita solidão                            N

03-04- De pessoa desconfiada                                      N

04-05- De uma criança confusa, dividida                      N

05-06- De uma criança muito humilde, mas tirana

          às vezes                                                              N

06-07- De criança carente                                            N

07-08- De pessoa mais segura

08-10- De pessoa com muitas dúvidas

10-13- De uma carente

13-17- Pessoa em descoberta; angustiada.

17-21- De uma pessoa medrosa

21-25- De pessoa inferior

25-30- De pessoa verdadeira

30-35- De pessoa determinada, que conseguia o que

          queria.

35-38- De pessoa corajosa

38-40- De pessoa sem vida, sem graça

40-41- De pessoa séria, “velha” de ideias

41-42- De pessoa sem forças

42-43- Pessoa descrente

43-44- De pessoa permanentemente conflituada.

          Via falhas e vivia me criticando.

44-45- De pessoa fraca, com dificuldades para lutar. Via falhas e vivia me criticando.

45-     Via falhas e vivia criticando-me.

ITEM 5- O QUE VOCÊ MUDARIA? (Se fosse possível, o que você mudaria nesse período de sua vida?)

00-00-  Sair da casca com facilidade.                            TN

00-00-  Mudaria a expectativa das pessoas.                 TP

00-01-  Retardar a gravidez de minha mãe

           (espera da irmã).                                               N

01-02-  Ter PAZ no canto da casa da minha mãe.         MN

02-03-  Voltar para a minha mãe.                                 TN

03-04-  Mudar para a minha casa.                                 N

04-05-  Poder ficar junto com as demais crianças.       MN

05-06-  Perder a humildade demasiada.                                   N

06-07-  Nada. Estava tudo começando.                                   TP

07-08-  Até ali, nada.

08-10-  Preencher minha vida com a presença do pai.

10-13-  Que não tivesse passado pelas violências pelas

           quais passei.

13-17-  Não alterar o rumo das coisas.

17-21-  Acabar com a separação da família.

21-25-  De me tornar mais “jogada” menos medrosa.

25-30-  Esticar o tempo.

30-35-  Ter tido o filho que tirei.

35-38-  Não permitir as mudanças.

38-40-  Dar um impulso de vitalidade.

40-41-  Ter tentado ter um filho.

41-42-  Ter tentado um filho.

42-43-  Ter mais força, coragem para mudar.

43-44- Ter mais definidos meus desejos. Poucas coisas.

          Foi bom, mas há sentimentos desagradáveis.

44-45- Lutar mais. Ter mais força contra alguns.

          Bastantes coisas. Há muitos sentimentos

          desagradáveis.

45-       Bastantes coisas. Há muitos sentimentos

          desagradáveis.

ITEM 6: DESPEDIDA (Que conversa você teve com você mesmo?)

00-00-  Fique com carinho. Eu volto.                            MP

00-00-  Seja feliz. Eu serei.                                           MP

00-01-  Vamos nos reencontrar. Não se assuste.        TP

01-02-  Eu preciso ter sossego.  Tente!                                   TP

02-03-  Você vai voltar (para sua mãe).                                    P

03-04-  As coisas vão mudar.                                       P

04-05-  Você tem a sua liberdade agora.                                  P

05-06-  Vai chegar logo.                                                           P

06-07-  Eu voltarei logo. Volte, sim.                             TP

07-08-  As coisas estão bem.

08-10-  Fique tranqüila.

10-13-  Você vai superar.

13-17-  Vá em frente.

17-21-  Não tema nada.

21-25-  Saia da casca. Tente!

25-30-  Recupere sua história, pois é sua.

30-35-  Você não perdeu tudo. Procure ser feliz.

35-38-  Agarre o que você tem hoje com alegria.

38-40-  Ponha mais gás na sua vida. Vou tentar.

40-41-  Há outras opções, outros filhos.

41-42-  Seja mais leve.

42-43-  Coragem, vá em frente!

43-44-  Agora é a hora. Tente mais! Vi muito rapidamente minha imagem. Falei muito pouco comigo. Fiz algumas críticas a mim.

44-45- Continue lutando. Eu te ajudo. Vi minha imagem. Falei comigo. Gostei do meu modo de ser. Conversa agradável.

45-  Vi minha imagem nitidamente. Falei comigo. Tivemos uma conversa muito agradável. Tive contato físico, afetuoso. Gostei muito do meu modo de ser.

ITEM 7 – “AGORA” (Como você está se sentindo agora, depois de responder a todas essas perguntas?)

00-00- Angustiada                                                        N

00-00- Serena                                                              TP

00-01- Lúcida                                                               P

01-02- Tranquila, mas com o raciocínio confuso.         TP

02-03- Tranquila, sem lembranças marcantes.                        TP

03-04- Ansiosa                                                           MN

04-05- Um pouco abafada, sobretudo fisicamente      N

05-06- Pesada, mas com clareza de raciocínio.                        TP

06-07- Tranquila, leve                                                   MP

07-08- Tranquila

08-10- Com muitas dúvidas

10-13- Muito pesada, com todas aquelas cenas nas costas.

13-17- Bem

17-21- Com muitas dúvidas

21-25- Pesada, muito

25-30- Feliz por ter vivido aquela época.

30-35- Pesada

35-38- Leve, mas cheia de dúvidas.

38-40- Muito pesada.

40-41- Tranquila

41-42- Com o coração apertado

42-43- Em paz

43-44- Com o raciocínio claro, mas não feliz.  Bem, mas sentindo não totalmente relaxada.

44-45- Confusa, com pensamentos divididos. Um pouco intranquila. Tristeza.

45-       Bem, mas sentindo não totalmente relaxada.

 

  1. Possibilidades de Mudanças no Compor-tamento através da autorreconstrulção do

      Self

Tomei, como exemplo para o presente estudo, os dois casos apresentados no item anterior. O número de pessoas que vivenciaram esse método já passa muito de meia centena.

Como se pode perceber, o fato de se aplicar o RPHP implica, naturalmente, numa documentação escrita, gravada, enfim, registrada de várias maneiras. Isso tem permitido que se disponha, em mãos, de um documentário grande e de fácil visualização.

Tenho muitos dados que deverão ser, em breve, mais bem pesquisados e quantificados, que se referem à mudança conseguida através da utilização dessa metodologia.

Para o presente trabalho, convido os leitores a observarem os movimentos que surgiram nos dois clientes que nos serviram de exemplo.

Notem que, indiscutivelmente, houve um caminhar para um tipo de comportamento que caracteriza o que Rogers conceituou como mudança.

Todavia, ainda que se possa questionar se tal modificação na conduta se deveu essencialmente ao método, posso afirmar, pelo menos, que sua utilização “acelera” o atingimento da reorganização do self, ou seja, da mudança.

Tendo a acreditar que essa aceleração ocorra pelo fato de se diminuir, acentuadamente, o nível de “defesa desnecessária“ no processo terapêutico.  Com isso, o contato do cliente com o seu eu real acontece mais depressa e de um modo mais autônomo.

A cliente B, numa gravação em VT, no final da última sessão de sua Recapitulação, disse:

Eu tive progresso no trabalho. Ele me fez perceber outras coisas ‘fora’. Agora, eu também avalio o seguinte: a partir de um certo momento, e eu acho que isso fica bastante perceptível para a gente, eu tive uma dificuldade. O trabalho começou mais fácil e foi ficando mais difícil. E eu acho que pode até ter-me levado a ter mais conflitos nesses últimos tempos. Acho que à medida em que o trabalho ficava mais difícil, essa minha luta aqui dentro (bate no peito), eu não sei explicar isso… foi ficando mais difícil… a luta foi ficando mais pesada. A luta foi ficando mais dura. Eu não sei se é porque eu estava percebendo mais as coisas… entende? então eu tinha que lutar mais com essas coisas também, com minhas dificuldades que eu estava vendo aqui.

Eu localizo… (o início dessa dificuldade). Eu acho que o último ano foi bastante claro, bastante claro mesmo. Agora, eu acho que… se a gente olhar para trás aqui (verificando o material produzido por ela durante as sessões, questionários, desenhos…) eu tenho quase certeza de que é na minha fase de… é… na minha fase pós-operatória, minha vida complica aí.

Muitas coisas mais foram relatadas por essa cliente, em relação ao que experimentou ao vivenciar essa metodologia. Entretanto, não cabe, no momento, transcrever tudo o que ela disse e que considero importante para a compreensão desse processo. Na ocasião em que este trabalho foi apresentado à comunidade da ACP, em Itaipava, em 1998, com autorização da cliente mostrei o texto citado no parágrafo anterior através de uma gravação em fita cassete feita a partir da entrevista dela registrada em VT. Minha intenção era dar uma idéia mais vívida do seu discurso e dos tons emocionais de sua fala.

  1. UMA FOTOGRAFIA DO SELF ATRAVÉS DA RPHP

 

Com a utilização do questionário de levantamento de dados sobre a construção

do self, surgiu uma possibilidade de se transformarem essas informações em gráficos.

Dei um nome a essa forma gráfica de representar aqueles dados. Chamei-a de “Fotografia do Self“, claro que tudo isso entre aspas.

Muito interessante é o que venho observando, quando, ao construir esses gráficos, a partir das avaliações feitas pelo cliente, apresento-lhe essa “fotografia”. Quando faço isso, ele que, até então, havia utilizado somente a linguagem (verbal) e a expressiva (desenhos), para definir conceitos sobre si, agora passa a dispor de mais uma, o gráfico.

Como verão logo abaixo, cada item do questionário gera um gráfico, ou seja, temos a possibilidade de construir sete gráficos. Cada um deles representando o MOVIMENTO que apareceu ao longo de sua história, em relação ao aspecto pesquisado por nós.

Por exemplo: o movimento do item MUNDO (item 1 do questionário); o movimento do item TU/EU (item 2 do questionário), etc., etc.

Mas qual a importância de se poder verificar esse “movimento”?

Tenho notado que esse movimento nos ajuda a perceber o que denominamos de TENDÊNCIA DE COMPORTAMENTO.

A “tendência de comportamento” é a probabilidade de ocorrência de um determinado comportamento, a partir do movimento mais regular, observado em períodos anteriores da história do cliente. Falando isso de outra forma, eu e os clientes temos notado que, quando ele apresenta um “gráfico ascendente” (parte de níveis mais baixos para os mais altos), sua conduta naquele aspecto ali representado (por exemplo: MUNDO, ou visão do mundo, a percepção que teve ao longo de sua história em relação ao seu ambiente externo) tende a ser mais “otimista”, “segura”, “confiante”. Nos casos contrários, seu comportamento quase sempre tende a ser “pessimista”, “inseguro”, “desconfiado”.

Quais as implicações dessa percepção do cliente em relação a essa sua “tendência”?

Quanto mais ele percebe que “tende” a agir de determinada forma e verifica concretamente os comportamentos que costuma utilizar para atingir a realização dessas ações, mais consegue “escolher por onde ir”. Passa a ter um domínio maior sobre suas ações e determina, com maior segurança, o caminho a seguir, caminho esse que garante uma realização maior de seu EU REAL. É como se ele se livrasse de formas de agir que havia aprendido, a partir da “condicionalidade que vinha de fora”.  Passa a se livrar dos modos de agir que aprendeu a partir de uma avaliação não organísmica.  Tenta ser o que ele acredita ser, verdadeiramente.

Lembro-me, aqui, de uma citação de Rogers, que ilustra bem o que tentei mostrar acima:

Ser o que se é é mergulhar inteiramente num processo. A mudança encontra-se facilitada, e, provavelmente, levada ao extremo, quando se assume ser o que verdadeiramente se é. (1970, p. 155).

Esse recurso (a representação gráfica) ainda necessita de maiores observações

para se poder usufruir melhor de seu potencial. Todavia, já agora, posso afirmar que se trata de um meio muito rico na compreensão da construção do self e, principalmente,

no modo como ele age. Na prática, tem colaborado para que os clientes percebam, com mais clareza, formas pessoais de agir, compreendendo-as, podendo, com isso, aceitá-las melhor e transformá-las.

Quando falo em perceber “tendências”, não estou falando de “previsão” de futuro, nem das ações futuras do cliente. Estou, simplesmente, dizendo que se pode compreender o seu modo de agir e o quanto, muitas vezes, esse modo está longe de ser o que lhe é mais genuíno. Aponta incongruências, aponta congruências, aponta, portanto, acordo ou desacordo entre o eu e a experiência.

7- SUGESTÕES, QUESTIONAMENTOS, CONCLUSÕES…

Este trabalho, em grande parte, foi escrito em 1995. A fundamentação, através da Nova História, e a descrição do método RPHP constam da monografia que apresentei à UFF, naquele ano. Todo o resto é material novo e começou a ser elaborado há um mês. Por isso, não houve tempo suficiente para documentar, mais fartamente, tudo o que foi afirmado aqui.

Quando pensei em escrevê-lo, achei que seria interessante fazer um levantamento das várias conceituações que encontramos em diversos autores sobre o SELF. Cheguei a fazer isso com a intenção de estabelecer um paralelo entre o que estamos chamando de self e o que outras pessoas entendem pelo mesmo nome.  Infelizmente, o tempo não permitiu que eu fizesse isso.

Como se trata de um estudo em seu começo, muitos aspectos apontados nele carecem de um embasamento mais substancial, uma reflexão mais profunda.

Portanto, sou de opinião que se faz necessário um estudo ainda mais detalhado sobre as hipóteses lançadas aqui, e que se transforme esse tema numa pesquisa que permita oferecer a todos nós uma segurança maior na aplicação desse método.

O campo de aplicação dessa metodologia tem-se mostrado muito grande.

Há um trabalho, no qual utilizei a metodologia do RPHP, realizado com um grupo de clientes do ambulatório de um hospital público municipal. Os resultados foram muito interessantes e mostraram a aplicabilidade dessa metodologia nessa amostragem, e ratificaram um dos pontos principais de seu uso: quando se adota a RPHP no trabalho com grupos, há o surgimento de uma aceleração no nível de aproximação entre os participantes e um grau muito grande de aceitação deles em relação aos demais e a si mesmos. Esta experiência foi documentada e consta do site www.jlbelas.psc.br, sob o título: PSICOTERAPIA- A História e a Clínica, que aborda a utilização do Método de Recapitulação Progressiva da História Pessoal no trabalho de Grupo Terapêutico, no Ambulatório de um Hospital Psiquiátrico Público.

No trabalho com casais, a RPHP da relação dos cônjuges apontou na direção de maior clareza da dinâmica do relacionamento e da vida conjugal.

No treinamento de professores, contamos com algumas experiências, entre as quais a que tivemos numa escola, na qual procuramos ajudar os professores que atuavam em níveis que iam da educação infantil até o quarto ano do ensino fundamental. Minha proposta foi ajudar esses profissionais a reviverem suas histórias como estudantes daquelas faixas etárias. A recapitulação de suas histórias, como alunos, fez com que conseguissem um relacionamento muito profundo, compreensivo e afetuoso com os seus pequenos alunos, que estavam iniciando o ano letivo naquela escola.

Por tudo isso, o método RPHP tem mostrado possuir um potencial muito interessante, principalmente por acelerar um processo de revisão do self, sua ação no comportamento individual e no comportamento social.

Parece que uns dos aspectos mais estimulados na pessoa, através desse processo, é o aumento da autoaceitação e da aceitação dos demais, melhor visão da realidade e, consequentemente, a descoberta de melhor forma de lidar com ela.

Não se trata de algo que substitua a relação terapêutica, tal como é proposta dentro de uma abordagem centrada na pessoa, ou em outra qualquer. Pelo contrário, esse método tão somente contribui para uma aceleração do processo terapêutico.

Tenho pensado no quanto a teoria da mudança da personalidade, proposta por Gendlin, poderia ajudar a compreender um pouco mais os fenômenos que são desencadeados pelo RPHP. Quando esse autor fala sobre “experienciação” me dá a impressão de que o que ocorre nas sessões de recapitulação se assemelha muito a esse conceito, só que de maneira mais frequente e mais acentuada, ou seja, o fenômeno “experienciação” se dá com maior intensidade e em maior número de vezes, se compararmos sua ocorrência nas duas situações: “terapia convencional” e “RPHP”. Trata-se de uma hipótese, por enquanto.

Gendlin nos diz:

Mediante uma concepção da psicoterapia como um processo experiencial – explica Gendlin – evita-se uma dimensão horizontal da comunicação na sessão psicoterapêutica, que consiste em ir de um fato a outro fato, de um juízo a outro juízo, ou, em síntese, do não sentido aqui e agora ao não sentido aqui e agora, permanecendo-se na área dos conceitos rígidos e das introjeções, que não conduzem o cliente a um movimento terapêutico.

Salientando-se o processo experiencial, ao contrário, trabalha-se numa dimensão vertical que vai do não sentido aqui e agora ao sentido aqui e agora (experienciação) (Apud PUENTE, 1980).

Tenho pensado, também, que outras pessoas, tais como Celia Mancillas Bazan, cuja tese de mestrado sobre o “Desenvolvimento Humano das Mulheres”, na parte da fundamentação teórica, traz uma série de conceitos e ideias interessantes sobre o self; o livro recentemente lançado por Afonso Lisboa, cujo título é Trabalhando o Legado de Rogers, em que se pode encontrar uma boa base com vários conceitos, através de reflexões muito interessantes do ponto de vista filosófico…

Além desses, outros trabalhos, tais como a tese da Viviane Mendonça  “Adolescentes Urbanos e o Mundo Atual”  e a da Shirley Martins de Macêdo sobre “A Relação Terapêutica na Abordagem Centrada na Pessoa”, podem enriquecer as reflexões sobre o tema que abordo neste documento.

Na fundamentação neurofisiológica, lamentei não ter podido acrescentar uma ótima informação trazida pela Sinara Tozzi Missel, que, certamente ajudaria a compreender melhor o papel do relaxamento e da meditação aplicada no RPHP.

         Lamentei não utilizar o material para mim enviado pela Márcia Tassinari, e também sugerido por Elias Boainain Junior, mas é certo que, num trabalho posterior, poderei acrescentar mais dados importantes para a compreensão do processo envolvido no RPHP.

A sugestão da Dircenea De Lazzari Correa, com suas intervenções sempre muito interessantes, e nos dando um estímulo tão necessário quando as forças já estão acabando… e a todos aqueles que colaboraram com esse trabalho, minha “promessa” de utilizar tudo o que me mandaram e o que, tenho certeza, outros colegas me mandarão, no aperfeiçoamento do presente estudo, pois é certo para mim que ele está apenas no nascedouro.

Como fica claro, muito ainda há a ser feito e, portanto, críticas, observações, sugestões, colaborações, tudo será bem-vindo.

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  1. RPHP – NOVOS ACHADOS (de 1998 a 2001)

Quando, em 1982, iniciei a minha pesquisa sobre o método de Recapitulação Progressiva da História da Pessoa, não pensava que esse trabalho se desenvolvesse e chegasse tão longe.

Hoje, com mais de cem casos atendidos, todos fartamente documentados, posso ter uma ideia mais clara do potencial deste recurso psicoterápico.

A partir da experiência no uso desse Método, fomos observando que ele comporta variações muito interessantes. Sobre elas falaremos a seguir.

A UTILIZAÇÃO DOS “ÁLBUNS DE FOTOGRAFIAS”


          Ao introduzir a utilização deste método, minha atitude era muito tímida, tal como ocorre no trabalho de pesquisa numa área tão complexa como a da vida das pessoas, de suas histórias, suas experiências…

Minha preocupação principal era ir, sem precipitação, tomando pé dos fenômenos que ocorriam no próprio momento em que o cliente falava sobre sua vida, seu passado, seu presente, seus projetos.

Sempre me pareceu importante, desde o primeiro dia em que, oficialmente, utilizei o RPHP como um método bem sistematizado, ir observando o modo como cada pessoa organiza o material que traz para discussão durante a sessão de terapia.

Inicialmente, as informações ocorriam basicamente através da narrativa de lembranças de fatos significativos (“profundos” ou “não profundos”), ou daqueles que ainda flutuavam na superfície da memória dos clientes. Aos poucos, fomo-nos dando conta da existência de outras vias, que nos levavam a estabelecer contato com lembranças de fatos vividos, importantíssimos para a compreensão das questões que eles estavam enfrentando com dificuldades no momento atual e que os trouxeram para a terapia. Entre essas “outras vias”, está o “álbum de fotografias”.

Mas o que é exatamente isso?

A maioria de nós possui um “álbum de fotografias”, seja ele concretamente um álbum ou apenas uma caixa, ou envelope, onde guardamos velhas fotos da infância, de familiares, amigos…

É incrível como essas fotografias levam o cliente a perceber fatos atuais de modos bastante novos, reorganizando sua percepção do aqui e agora, e, consequentemente, produzindo um efeito de mudança muito interessante.
Quando o cliente traz seu “álbum”, que, muitas vezes, é feito de imagens não só fotográficas (podem ser também de objetos pessoais, brinquedos, joias de família…), uso o scanner e crio um “álbum de fotografias”.

Esse álbum pode ser atualizado, ampliado, a qualquer momento. Vai-se formando aos poucos.

O material “fotográfico” fica no computador e essas imagens, que podem ser ampliadas, recortadas… servem como ponto de partida para inúmeras discussões que remetem os clientes às situações vividas de modo muito direto, concreto, quase como que permitindo que as pessoas “entrassem em cena”, que eles visualizam no monitor do PC. Alguns clientes se sentem, realmente, LÁ! Revivem momentos intensos que os ajudam a recompor e a reinterpretar muitos fatos de sua vida atual.

Durante essa experiência de rever suas fotos de modo contextualizado, histórico, a pessoa faz anotações, escreve sobre as sensações que experimenta ao retomar flashes de sua existência, fala a respeito, emociona-se, entra por novas portas e acaba vendo-se por novas janelas.

A UTILIZAÇÃO DO VÍDEO

Quem já leu sobre o RPHP sabe que a maioria absoluta das pessoas que passa por este processo registra em videoteipe o que vivencia em cada sessão.

Esse registro é de vital importância, pois este documento dinâmico permite que, a qualquer momento pós-sessão, o clima emocional desse momento vivido possa ser retomado de modo muito próximo da realidade que foi focalizada, discutida, experienciada…

Mas, a meu ver, há um aspecto ainda mais importante, decorrente da utilização do VT.

Na medida em que estou trabalhando basicamente com o self do cliente, a gravação em teipe gera uma situação muito especial, que poderia definir como um “confronto eu-eu”, em lugar do “confronto eu-tu”, este último, típico do encontro cliente/terapeuta.

Se considerarmos, dentro de uma abordagem centrada na pessoa, a importância da presença das condições “necessárias e suficientes” para a ocorrência do processo terapêutico, quando o cliente se coloca frente a frente consigo e as declarações que ele próprio fez sobre si, ou seja, quando ele vê a gravação em vídeo que fez durante as sessões de RPHP, podemos notar a ocorrência de situações e fenômenos terapêuticos bastante novos. É como se a figura do terapeuta ficasse num plano mais distante. Ele praticamente é “inexistente” naquele momento. Portanto, o seu papel facilitador, como o daquele que aceita, compreende e é congruente, cessa parcialmente e, às vezes, quase totalmente.

Quando o cliente fica diante da tela, vendo-se, ouvindo-se… ele, mui frequentemente, assume o papel de terapeuta, seu próprio terapeuta. Acredito que isso acelere o processo e esse fato seja o que me leva a falar de “autorreconstrução do self“.

Seria talvez exagero meu dizer que o vídeo, dentro da metodologia RPHP, ocupa uma importância fundamental, já que contribui fortemente para a “re-visão” do self e, como essa “re-visão” ocorre no sentido passado-futuro, para uma compreensão e uma aceitação progressiva de si mesmo.

NOVAS FORMAS DE RELAXAMENTO NA RPHP

         Quando iniciei a sistematização das sessões de Recapitulação Progressiva da História Pessoal, tentei controlar o maior número possível de variáveis, de tal forma que pudesse realizar sessões padronizadas. Essa padronização me permitiria verificar com mais segurança o que mudava, e como mudava, a autopercepção do cliente e, em decorrência disso, o seu comportamento.

         Na padronização proposta, parti de algumas teorias sobre a correlação que existe entre as condições fisiológicas e as psíquicas. Dessa forma, entre os recursos que uso para a estruturação de uma sessão de RPHP, está o relaxamento muscular. As pessoas que se interessam por estas técnicas de relaxamento sabem que existem inúmeras maneiras de se atingir um estado de descontração, de distensionamento muscular. Entre as várias técnicas conhecidas, optei pela mais tradicional, através da qual, iniciando a partir dos pés e atingindo a cabeça, vou ajudando o cliente a ter sua atenção cada vez mais concentrada em seu corpo e, ao mesmo tempo “desligando-se” dele, o que favorece o surgimento de uma descontração mental e psíquica e uma sensação de afastamento natural das tensões que estiver experimentando naquele momento de sua vida.

         Com o passar do tempo de utilização do RPHP, fui percebendo que não poderia manter apenas uma forma de relaxamento. Isso porque cada pessoa tem um modo próprio, mais adequado, para atingir o nível desejável de descontração para vivenciar mais plenamente esse método. Assim, essa parte da sessão passou a ser sempre discutida com cada cliente, a cada sessão.

         Eventualmente, a pessoa chega ao consultório após um dia mais duro, estressante… e, então, um relaxamento mais demorado a induz ao sono, o que não é desejável para o nosso trabalho. Noutra vez, chega eufórica, agitada… e necessita  “desligar-se”, o que implica na realização de um relaxamento mais demorado… Por isso, essa parte do método passou a ser bastante diversificada, para que as condições “ideais” para o deslanchamento do RPHP possam ser criadas. Entre essas “novas formas de relaxamento” estão os exercícios de alongamento, breves exercícios de jogos de imaginação, apenas ouvir a música, que é normalmente associada, nesse método, ao momento do relaxamento. Além disso, a proposta sugerida de que o cliente se deite para relaxar, deixou de ser feita e, em seu lugar, passei a sugerir que busque, numa sessão experimental, qual a melhor forma, para ele, de conseguir um bom nível de relaxamento. O que aconteceu a partir dai é que pude perceber que, para alguns deles, o melhor nível de relaxamento, mantendo o seu inteiro estado de consciência, era alcançado quando ficava sentado. Para outros, esse estado era conseguido quando ficava deitado no tapete, somente com uma almofada apoiando sua cabeça. Para outros ainda, o melhor mesmo era deitar sobre todas as almofadas de que dispunha… O ambiente mais escuro, ou o ambiente totalmente claro também interferiam no nível de relaxamento ótimo desejável.

         Pelo que se pode ver, deixei de lado a proposta inicial, que era mais rígida, para chegar a uma outra, bem mais flexível, o que nos faz pensar que, de fato, esse novo modo de encarar os elementos constituintes da estratégia do RPHP é bem mais coerente com a proposta geral da terapia que estamos propondo.

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