CRÔNICAS E CASOS – Meu relógio número um

Meu relógio número um

JLBelas – maio de 2007

 

 

No dia 5 de fevereiro de 1946, quando completei os meus seis anos, ganhei o meu primeiro relógio de verdade.

Pequeno. Exato para o tamanho do meu frágil pulso. Nesta data, o tempo passou a ter outro significado para mim. Até o dia anterior, mês, dias, horas e minutos eram somente nomes sem significados precisos.

Esse contador do tempo ficou ligado a uma pessoa muito especial para mim, e por quem desenvolvi um imenso carinho e admiração, durante toda a minha infância e parte da juventude.

Sei que, dentro de minha caixa de lembranças, há muitas sobre essa pessoa, mas vou buscar somente algumas, as que ficaram mais marcadas e guardadas com cuidado e zelo.

Só conheci, até hoje, um português torcedor do Fluminense e de nome Albano.

Alto, sem gigantismo, com um semblante plácido, um sorriso suave, um bigodinho não espesso, mas com estilo, bem colocado naquele rosto de formas marcantes.

Quando ria, sua pança seguia o ritmo das sonoras, mas contidas, gargalhadas.

Quando estava em casa, consertando relógios, sua profissão, mergulhava na mesa de trabalho diante daquelas ferramentas minúsculas, manuseadas com precisão, guiadas por um olhar atento, auxiliado por uma lupa especial que me encantava.

Sempre ficava impressionado com aquelas cenas que presenciava, quando visitava esse meu querido amigo em sua casa, na Villa Nadir: o abajur ligado, os relógios por consertar sobre a mesa de trabalho, as lupas, as ferramentas. Havia, ali, um clima de mistério. E, para mim, aquilo era fascinante. Naquele universo, o “tempo se tornava concreto, capturável, mensurável…” E ele, o meu amigo, era o detentor desse “incrível poder”. Para mim, durante muito tempo da minha infância, ele era um mago.

Mas não me recordo dele somente nesses cenários. Não. Um dos que nunca me esqueci foi aquele em que, eu e ele, mergulhávamos, sem parar, de um cais que havia na praia da Boa Viagem. A alegria tomava conta de nós, principalmente quando, naquelas águas cristalinas de então, submersos, nos olhávamos e nos víamos como duas crianças, livres e felizes.

Lamento nunca ter acompanhado Albano, o que, para mim, parecia uma aventura mágica: os dias em que ele ia fazer a manutenção dos relógios da Cantareira. Eram relógios grandes, que marcavam os horários das barcas e dos bondes. Eu tinha uma enorme vontade de poder estar com ele nesses momentos, mas nunca pude viver essa aventura. Creio que ele nunca soube desse meu desejo. Creio também que, se ele soubesse, pelo carinho que  demonstrava por mim, e por sua sensibilidade e ternura, me teria proporcionado a realização desse sonho.

Há pessoas que marcam a vida da gente, sem que a gente possa definir, com exatidão, o que foi mais destacadamente significante durante todo o tempo de nosso convívio com ela. Albano me fez viver sentimentos como: paz, tolerância, amizade, serenidade, compreensão e mansidão. Seu olhar e seus gestos sempre me transmitiram isso.

O relógio que ganhei dele, aos seis anos, trouxe consigo a alma daquele meu amigo, com todas essas virtudes que ele possuía. Essa máquina de contar o tempo, até hoje, continua simbolicamente funcionando, e marcando, concretamente, cada segundo em que tive o privilégio de experimentar e aprender, com ele, alguns valores fundamentais para se viver. Em meu pulso de hoje, não mais tão frágil, ainda sinto o tique-taque do meu relógio número um e, nele, a presença e a saudade desse grande amigo.