ESTUDOS: Reações agressivas do cliente e relacionamento terapêutico

REAÇÕES AGRESSIVAS

DE CLIENTES, DIRIGIDAS AOS PSICOTERAPEUTAS.

 

J.L.Belas – abril de 2009

 

 

 

         INTRODUÇÃO

 

Este tema foi sugerido por uma amiga, psicóloga, que se mostrou interessada neste aspecto da relação terapêutica, pouco divulgado pelos profissionais desta área.

Na ausência de uma bibliografia, ou de trabalhos sobre este assunto, esta amiga entrou em contato comigo, solicitando contribuições que pudessem servir de material para que ela realizasse uma pesquisa sobre a ocorrência desse tipo de comportamento por parte dos clientes. Esse pedido me fez buscar, no meu “arquivo de memórias pessoais”, lembranças de momentos onde o cliente reagiu agressivamente contra o seu terapeuta. Nessa busca, encontrei pouco material, mas muito mais do que imaginara inicialmente.

 

 

         

REAÇÕES AGRESSIVAS, NEGATIVAS, NO CONTEXTO PSICOTERÁPICO

 

 

Como tentei argumentar em um texto que escrevi a uns anos atrás, a agressão comumente está associada à frustração. Na relação terapêutica é possível que surja, independentemente das atitudes do profissional, muitos momentos nos quais o cliente experimente sentimentos de frustração. Daí, não ser absurdo o surgimento, nele,de sentimentos hostis em relação ao seu terapeuta.

Todavia, sugeri também que a reação agressiva, por parte do cliente, tenderia a ser pouco construtiva, caso o terapeuta não observasse alguns aspectos da relação construída entre eles. Se tais condições estiverem presentes no encontro terapêutico, é muito mais provável que a energia gerada pela frustração natural, que brota no confronto de duas pessoas diferentes, se transforme em matéria- prima fundamental para o desenvolvimento positivo do processo terapêutico e, portanto, para a melhora do cliente.

Nem sempre os terapeutas conseguem estabelecer este tipo de relacionamento e, muitas vezes até, nem estabelecem de fato uma relação. Esses terapeutas e clientes continuam separados por vários aspectos (nem sempre visíveis), que inviabilizam a aproximação verdadeiramente construtiva entre eles. 

Passarei a relatar, a seguir, alguns casos, de forma breve, mas – espero – explicativos. Ainda que apresentem características distintas, todos contêm momentos de agressão.

 

Caso 1- Reação agressiva associado à Doença de Wilson

 

A Doença de Wilson é uma rara doença genética, autossômica e recessiva, causada por mutações no gene ATP7B, o qual atua na excreção biliar de cobre. A falência desta via leva a um acúmulo lento do cobre até o ponto de se tornar tóxico, o que ocorre primariamente no cérebro e no fígado, mas também no rim e nas córneas.

A apresentação clínica pode incluir doença hepática, anemia hemolítica, sintomas neurológicos e psiquiátricos.

Sintomas neurológicos abrem o quadro em 40-50% dos casos e envolvem desordens de movimento, como tremor, distonia, incoordenação, disfagia e disartria. Geralmente, esses pacientes apresentam anormalidades de comportamento antes de desenvolverem sintomas neurológicos, como depressão, perda do controle emocional, comportamento bizarro e perda das inibições.

O cliente em atendimento era um adolescente de 13 anos e o que focalizarei, neste caso, é o aspecto das alterações do comportamento, decorrentes da perda do controle emocional e das inibições.

Era muito difícil estabelecer uma relação tranquila com esse cliente, pois sua agitação e seu descontrole motor exigiam uma ação constantemente frustradora por parte do terapeuta. Era necessário, a cada segundo, colocar um limite nas suas ações, pois as mesmas se tornavam até perigosas, no que se refere à integridade física deste cliente. Suas atitudes eram profundamente infantis, ainda que ele tivesse um físico bastante desenvolvido e uma força muscular extremamente poderosa.

Num determinado momento da sessão, ao receber um limite, o cliente em questão pegou o braço do terapeuta e o mordeu com muita força. Solicitado a parar com aquele comportamento, o jovem continuou como se não ouvisse o que lhe foi pedido. Solicitado mais uma vez, e não havendo parado de morder o braço do terapeuta, este pegou um dos braços do cliente e, do mesmo modo que o jovem agiu, o profissional começou a morder o braço do cliente. A cena oscilava entre a tragédia e a comicidade, já que o que se via eram duas pessoas grudadas, olhando uma no olho da outra, mordendo uma a outra. Quanto mais forte o jovem mordia o terapeuta, mais forte também o terapeuta o mordia.

Aos poucos, o jovem foi diminuindo a pressão da mordida, sendo este gesto correspondido pelo terapeuta. Chegou um momento em que o cliente parou de morder o braço do terapeuta e, neste instante, o mesmo foi feito pelo terapeuta.

Tendo cada um deles as marcas dos dentes do outro nos respectivos braços, iniciou-se uma conversa. O jovem começou a chorar e a acusar o terapeuta de tê-lo machucado. Ao que o terapeuta respondeu com as mesmas palavras: Você me mordeu, me machucou. Doeu em mim também. Igual ao que aconteceu com você. As pessoas sentem esta dor, quando você as morde.

Nesse momento, o que se viu foi um fato muito curioso e importante: o cliente, que costumava fazer isso com muitas pessoas da família, sendo que elas somente brigavam com ele, pela primeira vez pode ter consciência clara de seu ato, experimentando em si mesmo a dor de uma dentada (feroz). O terapeuta mostrou para seu jovem cliente que não estava com raiva por ele ter feito aquilo no seu braço, mas que ele, o cliente, precisava saber o quanto morder alguém doi. O jovem entendeu. A partir daquele momento, outras situações de frustração provocaram nele a mesma vontade de morder. Mas, antes de reagir daquela forma, o jovem se lembrava da dor e dizia: Morder doi, não é? Não vou morder mais não. Eu gosto de você.

Ao saírem da sala de atendimento, os dois ostentaram para os pais do jovem, que o aguardavam na sala de espera, seus braços devidamente arroxeados e doloridos. Os pais puderam entender, pois o próprio filho contou o que havia acontecido.

Este caso ilustra a agressão provocada por uma doença. O mais importante é que, mesmo aí, o resultado construtivo decorreu da atitude do terapeuta, que pôde transformar essa agressão num momento de crescimento para o cliente, e ter aprendido, com isso, um pouco mais sobre pessoas que apresentam comportamentos desse tipo.

 

Caso 2- Reação de ciúme doentio

 

Estava eu atendendo a uma cliente adulta, cerca de 35 anos de idade, quando a campainha da porta começou a tocar insistentemente. Era o último horário de consulta naquele dia. A minha secretária já havia ido para casa dela. E a campainha tocava, tocava e não parava de tocar. A insistência foi tanta que eu pedi licença à cliente e fui ver o que estava acontecendo, quem precisava tanto falar comigo naquele momento.

Para surpresa minha, não se tratava de ninguém conhecido, nenhum cliente desesperado, nenhum funcionário do prédio para me informar que nosso edifício estava pegando fogo, ou coisa assim. Aquela repetição frenética do som da campainha só poderia significar algo urgentíssimo, algo que não daria para ficar para depois.

– Pois não! Disse eu ao estranho rapaz diante da minha porta, cuja aparência era de uma pessoa transtornada. Seu rosto lívido. Seus lábios secos e roxos. Seus olhos faiscantes.

– Minha noiva está aí dentro? Perguntou o descontrolado homem.

– Não sei sobre o que o senhor está falando! Respondi calmamente.

Ao lhe falar isso, ele abriu uma caixa de papelão, até então sob sua axila esquerda. De dentro dela, ele tirou um revolver calibre 38 e, com mão trêmula, disse:

– Essa desgraçada está ai com você. Ela é mesmo uma vagabunda e o melhor que eu devo fazer é acabar com raça dela!!!!! (Falou isso aos brados. Acho que o prédio todo ouviu.)

Nesse momento, a cliente aparece e ele confirma a “traição dela”.

Ele começa a xingá-la de tudo e, mais trêmulo ainda, promete matá-la.

Nessa hora eu já não sabia mais o que fazer para me defender e defender a moça que, afinal de contas, era a minha cliente, nada mais do que isso.

Há momentos em que a gente parece tocado por alguma força que, até então, parecia não nos pertencer. Algo inesperado, forte. É como se a gente ficasse maluco. Talvez o medo extremo possa provocar isso. A sensação era: vou levar um tiro, vou morrer, o que fazer agora?

– Ponha-se daqui pra fora!!!!! Não admito que alguém queira me intimidar no meu consultório. Não do modo como o senhor está agindo!!!!! Foooraaaa!!!

Ele continuava falando, mas agora da soleira da porta para fora. Era já uma vitória. Mas de que adiantaria ele a dois metros de mim, portando aquela poderosa arma?

Neste exato momento de desespero, sentindo-me impotente diante do 38 e do seu dono, um louco enciumado, lembrei-me de uma coisa que a cliente me havia contado numa sessão:

– “Meu noivo trabalha no….”

O lugar onde ele trabalhava era o esmo onde um dos meus tios – gente muito boa – também trabalhava. E aí, como uma reação quase instintiva, disse:

– “Você conhece meu tio? P.B.?” Ele trabalha onde você trabalha. Você o conhece? Insisti.

Naquele exato momento, aconteceu um verdadeiro milagre.

– Você é sobrinho de P.B.? Disse o desvairado noivo de minha cliente.

A partir daí, ele guardou a arma. Pediu desculpas e quis ficar na sala de espera para depois conversar um pouco comigo.

Terminada a sessão, ele, de certo modo convicto de que eu não era o amante da noiva dele (ela foi para casa), ficou conversando comigo sobre seu problema, o ciúme doentio.

Custei a dormir naquela noite.

 

        

Caso 3 – A paciente do Hospital Psiquiátrico que só precisava ser ouvida.

 

Ela não chegava a ter um metro e meio de altura. Vou chamá-la de Carmen. Mas seus gritos e seu físico robusto faziam dela o terror da sala de espera do ambulatório do Hospital Psiquiátrico, onde era atendida. O diagnóstico que constava do seu prontuário dizia que era esquizofrênica, com comprometimento de epilepsia.

Certo dia, eu estava atendendo a uma cliente em meu consultório, no ambulatório desse Hospital, quando ouvi uma barulhada enorme. Parecia que havia começado a Terceira Guerra Mundial. Gente gritando, barulho de cadeiras se espatifando no chão, um pandemônio. Estava quase no fim do atendimento de minha cliente e  eu e ela  corremos até a porta do consultório para tentar saber o que estava acontecendo. Vimos, então Carmen fazendo o maior show e deixando todos apavorados. Suas ameaças iam desde bater até matar qualquer um que se negasse a atendê-la.

– Eu cheguei aqui bem cedo.Tenho que ir para o meu trabalho. Se eu chegar atrasada, o meu patrão vai-me mandar embora e aí vocês vão ver só! Mato todo mundo, quebro essa droga toda (os móveis da secretaria).

Era uma cena dantesca. Só faltava uma lata de gasolina e um fósforo para ela atear fogo em tudo que estava diante dela, inclusive as pessoas (muitas), que aguardavam na sala de espera. E não adiantava nenhum argumento, de ninguém. Ela espumava de raiva. Exigia seus direitos (criados por ela, ali mesmo) e não aceitava nenhuma negociação.

Sempre gostei de desafios nesta área. Como já havia passado por muitas experiências semelhantes lá no Hospital, resolvi aproximar-me dela, lentamente, como se estivesse buscando entender o que havia acontecido e as razões para ela estar tão transtornada. No fundo, era isso mesmo. Eu queria entender. Somente isso.

Quando me aproximei, ela me desafiou.

– E você? O que você quer? Você é doutor? Vai-me atender? Preciso ir trabalhar!!!!

– Eu só quero saber o que de fato está acontecendo. Não sou psiquiatra, sou psicólogo e, se você quiser posso atender você. Mas isso será lá na minha sala. Está bem?

Ela me olhou e me dirigi para a minha sala. Ela foi atrás de mim. Falando, ou melhor, gritando. Aos berros.

Quando entrei na sala, ela entrou também e continuou falando alto. Então eu lhe disse:

– Gostaria de lhe pedir que falasse um pouco mais baixo. Aqui é pequeno e escuto melhor quando falam mais baixo. Pode fazer isto?

Ela diminuiu a voz e começou a falar sobre sua preocupação com a hora, com o trabalho, com o fato de poder perder o emprego e o quanto era importante para ela aquele dinheiro, que ganhava através do seu trabalho. Fui ouvindo atentamente o que ela me queria dizer. A voz dela foi ficando cada vez mais baixa e sonora. Já não gritava mais.

Fiquei com ela aproximadamente meia hora e, após isso, ela me pediu para continuar acompanhando seu tratamento. Aceitei.

Coincidência, ou não, a partir daquele dia, a temida Carmen, mudou completamente seu comportamento. Suas atitudes violentas não apareceram mais, ainda que mantivesse, lucidamente, seu senso de direito, de cidadã, merecedora de toda atenção.

Ao relatar este caso, tento levantar uma questão: as pessoas atendidas em ambulatórios nem sempre se sentem, de fato, ouvidas e isso faz uma enorme diferença. Sentir que se é ouvido, faz de cada um de nós uma pessoa reconhecida, humana. A violência parece que surgiu exatamente quando, de alguma forma, se nega atenção[?] ao outro, frustra-se nele o desejo de ser reconhecido como uma pessoa humana, verdadeiramente humana.

 

Caso 4- Não me aborreça. Porque, se você me aborrecer, mato-o.

 

Este é o último caso que relato aqui. Também neste, a frustração de um paciente quase levou um terapeuta à morte.

No hospital, havia profissionais de Terapia Ocupacional. Eles desenvolviam um trabalho muito interessante. Certa época, esse setor foi coordenado por um TO muito competente, idealista e muito acessível no que se refere aos seus relacionamentos com os colegas e com os pacientes. Sua sala era sempre bem arrumada e os grupos de pacientes comandados por ele eram sempre muito dinâmicos, com muitas atividades diversificadas, etc.

Numa manhã, bem cedo, quando estava chegando ao Hospital, entrei no corredor que dava acesso às salas de atendimento. A primeira delas, a maior, era destinada à TO.

Ao passar diante da porta da sala da TO, ouvi uma conversa em tom elevado, mais parecendo uma briga, ou discussão. Andei mais devagar para me inteirar do que estava acontecendo. Percebi logo que se tratava de uma discussão, ou melhor, uma ameaça que partia de um paciente psicótico, dirigida ao terapeuta ocupacional, o coordenador ao qual me referi acima.

Um detalhe importante precisa ser mencionado aqui. Esse profissional era uma pessoa de estatura baixa, magro. O paciente que estava com ele era alto e forte. Forte o suficiente para levantar uma pesada mesa de madeira sobre a cabeça e ameaçar lançá-la sobre o TO.

Estavam somente eles dois na sala. Ainda não estava na hora de começar os trabalhos. Outros pacientes ainda estavam por chegar. Entretanto, esse, que já estava lá, exigia que o TO iniciasse o trabalho com ele, antes que os outros chegassem.

O argumento do TO não foi aceito pelo paciente e este estava pronto para esmagar o rapaz, que, temendo ser agredido, se encolhera num canto. Estava acuado e indefeso.

Nesse momento, percebendo o que estava acontecendo, entrei na sala e, talvez buscando a minha insanidade escondida no mais profundo de mim mesmo, gritei:

– Ponha, imediatamente, esta mesa no chão!!!

O paciente tentou argumentar:

– Ele não quer me atender. Eu vou matar ele!!!

E eu, enlouquecido, gritei:

-Se você fizer isso EU MESMO MATO VOCÊ!       

Se você é MALUCO ou sou DEZ VEZES MAIS MALUCO QUE VOCÊ!

Ponha essa porra de mesa no chão, porque, senão eu vou cobri-lo de porrada!!!!!!

Nessa hora, acredito que minha cara era tão feia que ele imaginou que eu era mesmo muito maluco e que as coisas iam ficar muito ruins para ele, que colocou a mesa no chão e começou a resmungar, reclamando que não fora atendido pelo TO, etc. … E completei:

– Suma!! Se manda rapaz!!! Fora desta sala!!!!  A G O R A !!!

Ele saiu. O TO estava lívido e agradecido. Realmente, como a coisa estava ia ser uma tragédia.

Depois deste incidente, este paciente continuou participando das atividades do hospital e, sempre que passava por mim, me cumprimentava cerimoniosamente, desviando o olhar, sem me encarar.

O importante nisso tudo é que, depois, discutimos esse acontecimento com a equipe. O que se viu e com o que concordamos é que ele, como não estava mais internado, e, sendo morador daquela região, tinha muitos conhecidos no hospital. Isso fez dele um privilegiado, uma pessoa paparicada por todos, pouco preparada para aceitar  limites. Tal como uma criança mal-educada, ele não sabia receber um não. Quando isso ocorreu, ele não aceitou, reagiu como uma criança mimada e agressiva.

Minha postura diante dele, firme, igualmente forte, fez com que ele parasse e desistisse de levar a cabo sua reação violenta, que, fatalmente, traria consequências desastrosas.

 

 

CONCLUSÃO

 

Tudo indica que a postura do terapeuta, na relação com seus clientes, se torna muito importante, principalmente quando eles apresentam transtornos psicológicos severos. Uma atitude firme, que contenha, ao mesmo tempo, uma preocupação de compreender o que está acontecendo, no momento mesmo em que o fato ocorre, tem-se mostrado eficaz quando, diante de uma reação violenta desse cliente, conseguimos organizá-la, transformando-a numa experiência enriquecedora tanto para o terapeuta como para a pessoa que ele estiver tentando ajudar.