CRÔNICAS E CASOS – Recadastramento De Inativos Do RJ – O Sufoco

RECADASTRAMENTO DE INATIVOS DO RJ: O SUFOCO

JLBelas

março de 2006

 

 

Na semana passada, marquei na minha agenda um compromisso importante: fazer o meu recadastramento como funcionário inativo civil do Estado do Rio de Janeiro.

Talvez esta minha mania de “andar na linha” se deva muito à minha origem de classe média, dada por pais com pouca cultura, mas educados o bastante para serem corretos, cumpridores dos seus deveres como cidadãos,  exigindo do filho que seguisse os exemplos deles.

Pois é. Aí é que a coisa sempre pega: o filho aprendeu a lição com nota 10. Dentro da cabeça dele, compromisso é compromisso. Dever é dever. Se for para fazer o recadastramento, que se faça. E ponto final!

Em princípio a idéia do recadastrar-se pareceu-me mais do que justa e certa. Até porque a gente sabe que tem muito defunto por ai, descolando uma grana legal no fim do mês. Talvez para fazer umas farrinhas lá no céu, ou – mais provavelmente – no inferno.

Bem, a primeira etapa já havia sido feita: o recadastramento via Internet.    

A outra era para ser feita na segunda quinzena de março de 2006, e seria a entrega de documentos probatórios da minha “existência real”, ou seja: provar que estou vivo, que ainda não “defuntei”.

Acordei, fui para o consultório e marquei somente dois clientes pela manhã. À tarde, atrasei a minha agenda em uma hora, ou seja, fiquei com 5 horas disponíveis para ir a qualquer posto do DETRAN (como estava sugerido no recibo de recadastramento via Internet) e entregar minha certidão de casamento, PIS/PASEP, CPF, comprovante de residência e uma foto 3X4 recente, com fundo branco (colorida ou em preto e branco).

Saí do meu consultório às 9h50min e pensei: que posto poderia ser o mais próximo do meu local de trabalho? Imaginei que, ao terminar a entrega dos documentos, pudesse passar em casa para almoçar e retornar às minhas atividades.

Parti para o Detran do Cubango. Para surpresa minha, fui informado que lá não recebiam a documentação e que somente no Centro de Niterói poderia ser feito isso.

Decepcionado, parti para o Detran, que fica perto da Ponte Rio-Niterói, depois de telefonar para uma pessoa amiga que me informou que estariam realizando esse recebimento naquele lugar.

Ao chegar lá, fui informado que, somente no DETRAN da Rua Coronel Gomes Machado, eu poderia resolver o meu (agora) problema.

Já eram 10h30min. Trânsito pesado. Estacionar, impossível.  A não ser num estacionamento pago. Fui para lá depois de contornar dois quarteirões com engarrafamento comum nesses horários, no Centro.

Cheguei ao DETRAN às 10h50min. Na recepção, uma jovem simpática – mas não muito sorridente – me atendeu gentilmente e me encaminhou para uma sala para o “atendimento prioritário”, uma idéia genial que promove uma qualidade de vida invejável para nós, que já estamos plenamente na Terceira Idade.

Meus olhos deviam estar brilhando de alegria diante de tanta gentileza e amor pelos “velhinhos”.

Havia lugar para sentar! Viva!!! Era uma sala enorme. Poderíamos contar mais de 100 pessoas espalhadas naquele espaço burocrático. Mas aquela multidão não me atemorizava, pois, no lado do pessoal de cabelos grisalhos, os do meu time, a quantidade era bem menor. Talvez somente uns 5. Maravilha !!!

Não contei quantos terminais de computador havia, talvez uns oito.

Até então, o meu coração exultava de contentamento, imaginando que, com tanta gente ali para nos atender, tudo seria uma questão de poucos minutos. Logo, logo estaria liberado e, quem sabe, aproveitaria o tempo livre da manhã para dar uma caminhadazinha na Praia de Icaraí, antes de voltar ao batente.

Vocês já estão sentindo que a coisa não aconteceu, daí para frente, como eu estava sonhando. O sonho virou, rapidinho, pesadelo.

Ao ver que um senhor, que chegara segundos antes de mim, havia sido chamado. Meu coração pulou e pensei: o próximo serei eu.

O filme que começou naquele instante foi, deveras, surrealista. A pessoa que estava atendendo a fila das prioridades, pediu ao tal senhor que assinasse o nome dele num “minúsculo quadradinho“. Não poderia sobrar nem um riscozinho da assinatura dele fora daquele quadradinho.

A pessoa com mais idade, salvo raríssimas e felizes exceções, costuma aumentar a letra quando escreve. Pior: a firmeza da mão não facilita a realização de duas assinaturas EXATAMENTE iguais.  Entretanto, isso era uma exigência intransponível. 

– Não adianta: o Senhor vá treinando até conseguir. Dizia a gentil senhora que o atendia. E ele escrevia, escrevia , escrevia, e nada de conseguir realizar a impossível tarefa.

Ela pedia para que ele olhasse a primeira assinatura que esse homem da terceira idade – num momento de rara inspiração – havia conseguido fazer dentro das tais exigências, e que a repetisse igualzinha à primeira, num outro espaço do mesmo papel. Era algo semelhante a repetir-se uma senha criada na Internet: a segunda confirma a primeira e, para isso, uma tem que ser IGUAL à OUTRA.

E o tal senhor grisalho, com mão trêmula, não conseguia realizar aquela tarefa provavelmente inventada por alguém que, com certeza, nasceu de chocadeira. Não teve mãe.

Por isso, a tal senhora, funcionária obediente às regras burocráticas ali vigentes, propunha a ele que começasse tudo de novo.

Já se passavam mais de 20 minutos de tortura para esse senhor que, a cada nova assinatura, talvez perdesse mais algumas horas de vida pelo grau de tensão que isso lhe provocava. Ele suava. Ele tentava. E a fila aumentava. E tudo estava parado em função do parto da bendita assinatura daquele pobre homem, que, provavelmente, passava, naquele momento, diante de uma platéia impiedosamente crítica, pelo teste mais cruel e difícil de sua vida. Ele ali não sabia mais o que significa ser respeitado. Sua velhice o condenara ser uma pessoa que provoca risos e comentários maldosos.

Num momento de grande lucidez, a funcionária atendente resolveu dar uma nova folha de treinamento de assinatura para o senhor, e começou a atender uma jovem senhora que, usando de um recurso bem eficiente, levou sua mãe e a sua filhinha para poder ser atendida, também, na fila das “prioridades”. Nada contra a tal moça. Ela usou do direito que lhe é dado. Mas, para surpresa de todos que estavam por ali, atentos à verdadeira tourada sem capa vermelha que aquele senhor, de quem falei antes, estava enfrentando, uma outra tourada teve início, assim que a jovem mamãe pegou da caneta e começou a fazer o seu nome no tal “minúsculo quadradinho”.  E aí começou tudo de novo, agora em dose dupla: um confronto de habilidades entre um representante da terceira idade e uma da segunda (ou da primeira?).

Naquele momento, percebi que o meu companheiro de cabelos grisalhos começou a reconquistar sua moral e sua “incapacidade” e “velhice” começaram a ser reconsideradas. A jovem também estava agora passando pelo mesmo sufoco, tal qual o seu “colega de competição”.

E o tempo passava acelerado para todos nós, que aguardávamos a vez de enfrentar mais um touro de rodeio americano, desses que a gente vê na televisão.

Finalmente fui chamado.

ALELUIA !!!!! ALELUIA!!!!  Gritava eu, por dentro.

– Seus documentos, por favor! Disse aquela lúcida senhora que me fizera acreditar que nem tudo estava perdido naquele contexto hiperburocrático.

Eu lhe disse: – Bom dia!

E apresentei as cópias e os documentos originais, que me eram pedidos, para que eu provasse que estava vivo. Tudo ia bem até que…

– Por favor assine aqui dentro deste quadradinho. Não pode ficar nada fora dele, nem um riscozinho…

Como um bom caubói dos faroestes de Hollywood, saquei da minha caneta A G Spalding & Bros  e taquei lá o meu jamegão.

Perfeito. Acertei em cheio o tal “minúsculo quadradinho”.

Goooooollllll ! ! ! ! !  Vibrei.

Foi aí que ouvi:

– O Sr. escreveu com a sua caneta ?

Orgulhosamente, respondi-lhe: SIM!  E ela ,então,  me disse:

– Lamento. Tem que ser com a minha.

Uma esferográfica de ponta grossa, com um tremendo barbante antifurto, preso a essa ferramenta de trabalho. Aí, eu pensei: a porta do inferno se abriu. E não deu outra. Escrevi uma, duas, três vezes e comecei a sentir, mais de perto ainda, o que foi essa tortura para aquele senhor, que passou pelo “inferno” antes de mim.

Loucura pura. Kafka devia estar ali para aprender alguma coisa. Ele mesmo não acreditaria no que estava rolando naquele mundo estranho, de contrastes desconcertantes, que iam da informatização “raiteque” às paredes do prédio, carcomidas, sem reboco e decadentes.

Um monte de jovens junto com um monte de pessoas idosas, todas aguardando para passarem pela porta do inferno. Algumas tranquilas, como se estivessem acostumadas a viver lá. Outras com olhares esbugalhados, já sentindo os tridentes esferográficos  à espera da “carne nova” a ser espetada.

Finalmente, consegui. Bati o recorde da fila. Levei uns 5 minutos para conseguir fazer duas minúsculas assinaturas dentro de dois minúsculos quadradinhos e, proeza maior, fazer a segunda IGUAL À PRIMEIRA.

Nessa hora, pensei: ao sair daqui vou comprar um bilhete da loteria. Era o meu dia de sorte. Mas, logo depois, mudei de idéia. Por quê? Na sala ecoou uma voz que parecia vir do além. Ouviu-se a chefe do Serviço falar:

– “Atenção! O sistema externo está fora do ar. Por isso vamos interromper os atendimentos. Não há como fazer as fotos, etc.”

Santa Maria, rogai por nós. Pensei eu cá com meus botões: ”danô” tudo novamente. Sem chance! .Minha suposta sorte bateu asas e voou.

Mas o pior ainda estava esperando para dar as caras. Humor negro é pinto diante do que pude ver depois disso tudo que contei até agora.

Preste atenção para o diálogo abaixo.

Funcionária – Agora o Sr. terá que esperar o sistema voltar, para poder fazer a sua foto.

Eu – Mas tenho uma foto aqui comigo (Como um relâmpago, falei isso para ela.)

Funcionária – Ah! Então está tudo resolvido.

Mas foi aí que começou o segundo ato do drama, que eu estava vivendo. A funcionária pegou o meu retrato e ameaçou enquadrá-lo dentro de um outro quadradinho que estava desenhado no formulário a ser preenchido e concluiu:

– Ele é menor do que o espaço que está reservado para sua foto.

– Mas ela não será escaneada? (Argumentei esperançoso.) Então, dará para se aumentar o tamanho até o que for necessário. Certo?

Ela parou, pensou, viu que meu argumento era, no mínimo sensato, pegou a foto e mostrou para uma outra pessoa dali, supostamente entendida em fotos e em “especificidades documentais”. E aí veio a bomba.

– Essa foto não serve, pois o tamanho do corpo está muito grande, pois foi tirada de uma distância imprópria, etc., etc.

Resultado: eu tinha mesmo que aguardar ou ir fazer uma foto 3X4 num fotógrafo, que havia lá fora próximo ao Detran.

Topei. Disse: vou correndo e trago já essa foto com todas as especificações exigidas. E saí em disparada para o tal lugar, sugerido pela funcionária.

Para minha surpresa, ao chegar lá dei de cara com mais de 20 pessoas numa fila para fazer o mesmo que eu esperava conseguir: uma foto para ficar livre daquele pesadelo.

Como havia muita gente, corri para outro local que também tirava fotos para identidade. Gastei R$9,90. Caro, mas, na verdade, se custasse 50, acho que teria pago. Afinal de contas, só faltava isso para eu conseguir minha LIBERDADE. Valeria o preço. Pensei.

Voltei correndo para o posto do Detran com minha “carta de alforria”: minhas feias fotos. Ficaram horríveis. Nem minha mãe, se viva fosse, ao olhar para elas, diria, como as mães costumam dizer: Ah! Você ficou tão bem na fotografia, filho!

Mas estava eu a um passo de acordar daquele sonho tenebroso.

Ao chegar lá, a pessoa que me estava atendendo tinha saído para almoçar, e a que ficou em seu lugar me disse: o senhor vai ter que esperar ela voltar, pois ela começou o seu processo e ainda não registrou nada no sistema…

 Mal podia acreditar no que estava ouvindo. Surreal demais.

 Já estava ficando meio de mau-humor. Reconheço.

E foi aí que usei da velha tática. Olhei fundo, com olhar fulminante para a funcionária, substituta da que me atendia anteriormente, e disse:

– Como é seu nome? Como é o nome da sua colega que estava me atendendo? Como é o nome da chefa deste Setor do Detran?

E disparei a perguntar e a anotar e a falar ao telefone com algumas pessoas de minha casa. Para todos os efeitos, eram apenas pessoas para as quais eu falava e com as quais comentava sobre a aventura que eu estava vivendo naquela bela manhã/tarde outonal.

Funcionou!  Ouvi uma voz dizendo:

– Por favor, o senhor chegue aqui.  Vou fazer suas anotações no sistema (que a essas alturas acabara de retornar). Era a funcionária substituta da primeira.

Ufa! Até que deu certo. Eu já não teria mais que esperar a funcionária, que me atendera no início, retornar do almoço.

Mais uma vez, a porta da prisão começava a se abrir. Muito em breve, estarei eu fora dela! Minha cabeça insistia em pensar assim.

Aí chegou a terceira fase da tortura. A moça, que agora estava me cadastrando no sistema, pegou a foto que eu havia tirado minutos antes, no fotógrafo da rua, e foi perguntar a outra, expert em fotos, se estava boa para escanear. O que eu ouvi soou como que uma explosão dentro do meu cérebro:

– Esta foto não está legal, não. A camisa que ele está vestindo na foto é muito clara e não vai ficar boa, quando for escaneada. 

R$9,90 jogados no lixo. R$7,00 de estacionamento. 100mg de adrenalina jogadas em minha corrente sanguínea.

– Então, completou a funcionária, o senhor vai ter que tirar a foto eletrônica aqui mesmo, pois a que o senhor tirou não serve.

Não podia acreditar no que estava ouvindo. Ela continuou:

– Terá que aguardar naquela fila. E não tem jeito.

Aquela fila, a qual ela se referia, tinha mais de vinte pessoas, também aguardando para serem fotografadas.

A alternativa que me deram foi que eu voltasse no dia seguinte, ou num outro dia qualquer, para completar o processo.

Resolvi insistir mais um pouco, pois já passava das 13 horas, e soube que, além da foto que deveria tirar lá, depois de todas aquelas pessoas, ainda teria que tirar as digitais.

Imaginei que ainda ficaria ali, no máximo, mais meia hora, pois eu havia explicado, com toda tranqüilidade, à tal moça que iria tirar a minha foto, que um cliente me estaria aguardando às 14 horas, em meu consultório, e seria bom se eu ainda pudesse comer alguma coisa, antes, para não desmaiar na frente dele.

Começava a perceber que o meu depósito secreto de mantras e de meditações Zen já começava a ficar com o estoque quase a zero. 

Não fosse a jovem sensível – a que tira os retratos – ter percebido que eu estava à beira de um ataque de nervos, e que o que eu dizia ali era verdade – não teria conseguido passar na frente de 2 pessoas que haviam chegado, lá no Detran, mais de uma hora depois de mim, mas que não tiveram o benefício de entrar na fila dos ATENDIMENTOS PRIORITÁRIOS.

Finalmente, fui LIBERTADO às 13h40min. Dedos sujos. Pés cansados. Cabeça fervendo por ver tanta burocracia absurda, que em nada deverá melhorar a nossa qualidade de vida, nem garantirá que o nosso País se torne melhor, mais organizado e mais honesto.

O que vivi foi fruto de uma INCOMPETÊNCIA ADMINISTRATIVA? 

Uma DESORGANIZAÇÃO? 

Uma FALTA DE RESPEITO AO CIDADÃO?

Sei lá!

Sei, sim, foi uma manhã/tarde para não se esquecer tão cedo. Quem dera, nunca.

         Fui lá só para provar que eu estava vivo e quase saí de lá morto, enfartado, em decorrência de tanta loucura produzida por uma burocracia paralisante, emperrada e absurda do nosso Serviço Público.