CRÔNICAS E CASOS – Uma Surra Inesquecível

 

UMA SURRA INESQUECÍVEL

(Lembranças da Infância – 3)

J.L.Belas – 2006

 

 

Quem me conhece há muito tempo, sabe que o meu vocabulário é muito pobre no que diz respeito aos palavrões. Não é hábito meu usá-los, nem mesmo quando dou uma topada, ou quando me fecham no trânsito. Fui muito bem educado, mas o fato de não fazer uso frequente, ou mesmo nunca fazer uso de palavras “obscenas”, não tem nada a ver com a minha educação em si, mas sim com UM FATO inesquecível, ocorrido em 1946/7.

Quando eu era criança, uma das brincadeiras favoritas dos meninos era jogar “bola de gude”. Em alguns lugares, chamava-se isso de jogar baleba ou de outros nomes bem regionais.

Bolas de Gude, como a garotada de onde eu morava chamava, eram pequenas esferas feitas de vidro, coloridas, e que também ganhavam alguns nomes diferentes, dependendo do tamanho, das cores e da beleza delas. Diga-se de passagem, algumas delas eram verdadeiras obras de arte. Os “olhinhos”, então, eram o máximo: seu colorido, os desenhos que se formavam nela, aleatoriamente, quando eram fabricadas… Eram, realmente, lindas!!!

Nós, meninos principalmente, costumávamos ter uma sacolas (de pano ou crochê), onde guardávamos esse nosso tesouro, construído aos poucos, na medida em que íamos conseguindo juntar uns trocados para comprar as bolinhas, ou ganhá-las no Natal, no aniversário, ou coisa assim.

Na vila onde morei, dos 3 para os 4 anos até quase nove, havia uma regra a ser seguida e instituída pelas mães daquelas crianças que lá viviam. Não era permitido o jogo à VERA. Somente se podia jogar à BRINCA. Em outras palavras: não podia ser jogo para valer. Só podíamos brincar de jogar.

Por que isso?  Simples. Entre nós, havia crianças que, como eu, tinham 6 ou menos anos de idade, e outras com 8 ou mais. Se jogassem para valer, os mais velhos ganhariam todos os jogos e, aí, já viu, né? Os pequenos entrariam pelo cano, sempre.

Tudo bem. A regra ditada pelas sábias mamães foi plenamente acatada pela garotada. Por isso, sempre que as crianças jogavam bola de gude, voltavam para suas casas com as sacolas cheias, tão cheias como estavam ao sairem para brincar no quintal da vila.

A paz reinava em “nossas terras” (nosso reino)!  Mas… como acontece nas histórias, sempre surge um revolucionário que sacode as leis e, muitas vezes, leva incautos cidadãos a se rebelarem contra elas. Pois é, foi isso que aconteceu.

Ao revolucionário desta história (evitarei o seu nome em respeito a ele, à senhora sua mãe e à grande amizade que sempre nos uniu) darei o nome de Vladimir, até porque não tínhamos na vila ninguém com este nome.

Vladimir, um dia, me chamou e começou a conversar sobre o quanto seria interessante se nós, em vez de jogarmos à brinca, experimentássemos jogar à vera. Creio que ele, com isso, despertou em mim o meu lado também revolucionário. Achei a ideia interessante, mas, como eu era dois anos mais novo que ele, não pude perceber sua real intenção ao me incentivar a transgredir.

A minha coleção de bolinhas era, modéstia à parte, a mais bonita, pois eu ganhava muitas delas de presente da minha tia, que trabalhava no Rio de Janeiro, era solteira, era uma artista plástica de nascença, responsável por todos os enfeites das mesas de festa dos meus aniversários. Isso dá uma ideia e justifica o que falei acima sobre a minha coleção. As bolinhas eram lindíssimas e, por isso mesmo, cobiçadíssimas pelos meus amigos da vila.

Eu, como um pato, caí na esparrela e fui para o “campo de batalha”.

Eu, como um pato, perdi todas as minhas bolas. TODAS!!!!

Como acontece com todos os jogadores, quando começam a perder, apostar mais alto parece ser a única saída para recuperar o que o outro ganhou dele. Pois é! Foi o que eu fiz, uma, duas, várias vezes, até perceber que não havia mais bolas para apostar.

Aí comecei a sentir um frio no estômago e, de imediato, como querendo acordar de um pesadelo, falei para Vladimir: “minhas bolinhas acabaram, e agora você me devolve elas”.  Ele me olhou de um modo estranho, como se me dissesse: Garoto tolo!!! Nem pensar!!!!

Por algumas vezes, apelei para nossa amizaaade, para que ele reconsideraaaaasse o nosso trato “briiiinca/veeeeera”, mas, nada! O danado estava determinado a me levar à falência, mesmo!

O desespero aumentava dentro do meu peito.  A respiração começou a ficar ofegante. O medo começou a se apoderar de mim, tomando-me todo. Fui ficando frio, pálido, roxo, sei lá mais o quê!… E foi nesse momento que aconteceu o inesperado: o garotinho franzino, educado, calmo, saiu de cena e entrou em seu lugar um outro, totalmente diferente, um “EU-2”.

Nossa vila era toda murada, com exceção dos fundos, por onde passava um pequeno rio. Um dos muros era, na verdade, a parede de um cinema, que terminava exatamente nos limites do terreno onde brincávamos. Essa parede foi o cenário onde o meu EU-2 apareceu e mostrou tudo o que sentiu, após ter perdido a batalha para Vladimir.

Com as costas coladas no paredão do Cinema Palace, no lado oposto onde eram projetados os filmes, deu-se início a um novo “filme”, ao vivo.

“EU-2” abriu os braços, como se crucificado estivesse, encheu o quanto pôde os pulmões com o ar fresco da vila, e gritou, berrando para o Mundo: 

-Vladimiiiiirrrrrr, SEU FILHO DA PUUUUUUUUUUTA !!!!!!!!!!!!!!!!!!, me devolve as minhas boooolaaas!!!!!!!!!!!!!!!!

Depois desse “grito de guerra”, saído com todas as forças, das entranhas do EU-2, poderíamos ouvir, se quiséssemos, uma mosca voando. 

Um silêncio sepulcral se fez ouvir por alguns segundos…

Vladimir ficou estatelado, tão lívido quanto EU-2 estava. Com os olhos tão arregalados quanto os de EU-2.

Logo a seguir, a primeira porta se abriu: a da minha casa. Minha mãe, ainda sem entender, nem acreditar, no que estava vendo e havia ouvido.

Segundos depois, a segunda porta também se abre, e dela sai a mãe de Vladimir. Sua expressão parecia um VT do que eu vira no rosto da minha.

Segundos depois de tudo isso, escutamos uma ordem dupla: as duas mães,  de forma surpreendentemente sincronizada, dizendo:

“Para dentro!!!!! Já!!!!!”

Pela primeira vez, e única, eu soube o que é levar uma surra de chinelo. E era um chinelo das antigas. Forte, de couro legítimo, pesado… Doeu paca!!!

Vladimir também levou uma bela surra. Apanhou para valer. Mas, como acontece com todas as crianças, brincar é para elas a motivação mais forte. É a própria razão de suas vidas.

Assim, meses depois, eu e ele voltamos a jogar bolas de gude. Mas… só à brinca!

Desse dia trágico e cômico, até uns 10 anos atrás, meus palavrões sumiram da minha cabeça, ou melhor, ficaram escondidos dentro da minha sacola de bolinhas de gude, misturados com os sons daquela “surra inesquecível”.

 

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