CRÔNICAS E CASOS – Dona Cota

DONA “COTA”

JLBelas

agosto/2006

                      

 

Esse era o nome pelo qual a maioria das pessoas a conhecia.

Seu nome de batismo: Procópia Augusta da Silva.

Nascida depois da “Lei do Ventre Livre”, nunca foi escrava. O que não aconteceu com sua mãe, de quem ouviu muitas estórias das senzalas e com quem aprendeu a arte das rezas, das ervas que curam, de aparar as crianças que chegavam ao mundo e das “simpatias”.

Seu rosto, de formas marcantes, ao mesmo tempo em que transmitia serenidade, dava-nos a sensação de dureza. Uma mistura de ternura e força.

Gostava de dançar, principalmente o “calango”, um estilo bem antigo de música, que se assemelhava ao batuque, ao jongo e ao baião. Quem sabe isso a remetia a lembranças da infância e da juventude?

Sempre ficava impressionado com os cabelos dela, quando, sentada de costas para a minha mãe, se deixava despentear, soltando suas grossas tranças , sempre contidas num bem arrumado coque. Tinha a impressão de estar vendo uma cascata de águas turbulentas, formadas de perfeitas ondas com espumas brancas.

Seus olhos, castanhos escuros, ágeis, aguçados, lhe deram o privilégio de, durante toda a sua vida, não precisar de auxílio de lentes. Enxergava melhor que todos nós.

Não tenho a mínima ideia de sua passagem pelos bancos escolares. Só sei que lia com correção e interpretava, com lucidez e precisão, tudo o que lhe caía nas mãos.

Querida por todos que conviveram com ela, de perto, e que puderam sentir sua determinação, fidelidade, amizade e tantas outras virtudes, a despeito de sua dureza e intransigência, quando, por alguma razão, contrariavam suas convicções.

Todos os meses, ia sozinha ao Rio de Janeiro receber sua pensão alimentícia, deixada por seu marido, que falecera quando os seus seis filhos ainda eram muito jovens. Quando voltava, passava por nossa casa, almoçava e ficava conosco até a tardinha. Nunca me esqueci dos doces e das frutas, que, nessas ocasiões, sempre trazia para mim.

Pelo menos uma vez por mês, eu ia passar um dia com ela e aproveitava para ajudá-la nos consertos e nos pequenos reparos de sua casa. Nesses dias, almoçava com ela e deliciava-me com a tradicional feijoada, que ela fazia todos os dias e que era a base de sua alimentação. Essa iguaria perfeita começava a ser preparada, todos os dias, à tarde. Iniciava com a cata do feijão. Depois, punha esses grãos de molho e, a seguir, preparava as carnes que iriam ser cozidas com ele. Tudo isso ficava dentro d’água por toda a noite e era colocado no fogão, lá pelas 4 horas da manhã do dia seguinte. O cozimento só terminava por volta das 10h, quando, então, era servido o almoço. Esse “ritual” se repetia a cada dia.

Somente no final de sua vida, usou remédios comprados em farmácias. O que mantinha sua saúde era os chás, feitos com ervas que ela mesma colhia num terreno amplo, ao pé de um morro, próximo à sua casa.

Parteira, “rezadeira”, religiosa de uma irmandade católica, numa mistura de índio, negro e branco. Como benzedeira, usava uma linguagem que parecia ser uma mistura de palavras vindas dessas três origens.

Minha avó Cota (como era conhecida) foi para mim uma das maiores lições de vida. Quase centenária, mantinha suas convicções. Ao mesmo tempo, sua doçura, misturada com seu autoritarismo, fazia com que cada uma de suas ações me levasse a entender sobre a vida, a sobrevivência, o afeto e a luta por princípios nobres. Paralelamente a isso tudo, via nela a personalização do amor pela vida, pela família, pelas pessoas.

Por trás de uma máscara dura, estampada em sua face, pude ver minha AVÓ , expressão máxima dessa palavra. Seu olhar doce dirigido a mim e seu colo aconchegante são responsáveis por uma parcela significativa do afeto que existe em mim.

Vovó Cota, para muitos que só a conheceram por fora, era uma fera; para mim, que vivi intensamente perto do seu “coração”, a mais doce das criaturas que pude conhecer.

Sinto saudade dela, da mansidão do seu olhar, quando dirigido a mim.