Estudo de Caso na Prática Escolar

 

ESTUDO DE CASO NA PRÁTICA EDUCACIONAL*José Luiz Belas **

1998

1- Tentando uma conceituação

O tema Estudo de Caso me leva, imediatamente, a visualizar uma imagem que poderia ser descrita como a de uma convergência de informações, de vivências e de trocas de experiências, que,  partindo da percepção de cada participante desta atividade, nos levaria à compreensão mais clara  da natureza e da dinâmica de um fenômeno, que seria o foco de nossa observação.  No nosso caso, esse fenômeno refere-se ao comportamento de um “organismo humano”.

Por sua própria natureza, um Estudo de Caso provoca, em quem participa dele,  um processo de reciclagem pessoal, de descobertas pessoais. Todos aqueles que estão envolvidos num estudo deste tipo acabam, de certo modo,  vivenciando uma experiência de autodescoberta.

No presente trabalho, tentarei escrever um pouco sobre a minha prática nesse tipo de atividade, que considero uma das mais ricas, tanto na educação como também na clínica.

Um Estudo de Caso significa, para mim, uma tarefa que tem como objetivo a tentativa de aprofundar o nível de compreensão de um momento que está sendo vivido por um “organismo”, um ser humano, uma pessoa, um grupo, etc.

O propósito é termos uma consciência mais clara de alguns fatores que possam estar contribuindo para a construção do modo de ser e de atuar daquele organismo, naquele seu momento histórico.

Através disso, facilitar-se-ia o surgimento de condições favoráveis para uma reorganização da percepção do comportamento e do contexto no qual ele ocorre.

Como resultado do Estudo de Caso, espera-se que surja uma aprendizagem  significativa, a ser experimentada por todos aqueles que dele participarem. Em outras palavras, espera-se  que, por meio dessas aprendizagens, se criem novas ações direcionadas ao aperfeiçoamento, à melhoria, ao crescimento de TODOS  os envolvidos nesse processo.

O modo como conceituei, acima, um Estudo de Caso  parece deixar claro que o objetivo dessa tarefa é, por um lado, pretensioso, e, por outro, bastante modesto.

É  pretensioso, quando busca compreender como a pessoa ou um grupo  chegou a construir sua maneira de ser e de atuar. Isso implicaria em conhecer um número imensamente grande de fatos históricos, que contribuíram na formação de valores, de modos de percepção e nas condições físicas delas, hoje. Isso seria teoricamente impossível.

É modesto, quando se propõe a ser, tão somente, uma tentativa.

Num Estudo de Caso, a ser realizado numa escola, como é o nosso tema,  seria, pois, pretensão minha, por exemplo, conhecer todos os possíveis fatores que interferem na conduta de um aluno. Por isso, pretendo, simplesmente, levantar o maior número possível de dados, de fatos, de situações referentes àquela pessoa, que possam servir de referenciais e que ajudem a compreender (e não a explicar) um pouco mais o seu comportamento.

Na primeira versão deste meu artigo, ao buscar o significado da palavra CASO, em nosso idioma, tomei como referência o Dicionário Escolar MEC- 1979, e lá  encontrei:






Caso: Acontecimento, fatos, hipóteses, circunstância, dificuldade, apreço, estimação, importância, manifestação individual de doença… história, contos.

 

Chamei atenção, naquele momento, para um dos significados desta palavra, que era: “manifestação individual de doença”.  Este significado prestava-se perfeitamente ao que, técnica e vulgarmente, se identificava como um “caso que merecia estudo”, ou seja,  aquele que se apresenta como uma “manifestação individual de doença”.

Essa questão me intrigava, principalmente por ser uma distorção comum daquilo que, a meu ver, seria um  Estudo de Caso.

Tal estudo, na escola,  é, quase sempre,  proposto  quando o aluno apresenta problemas a serem resolvidos. Quanto maiores o problema e a dificuldade para resolvê-lo, mais o estudo de caso se faz necessário. Nunca se propõe essa tarefa, quando a situação é inversa.  Por quê?

 

Sou de opinião que essa questão deveria ser repensada e que passássemos também a nos deter no ESTUDO DE ALUNOS, apresentem eles problemas ou não.

Poderíamos enriquecer-nos muito como pessoas e profissionais, se nos detivéssemos, também, nos estudos dos outros  ACONTECIMENTOS, das CIRCUNSTÂNCIAS, das HISTÓRIAS, etc., que não carregam no seu interior somente as tragédias, as angústias, os medos, mas também aqueles em que existem alegrias, realizações, crescimentos…

Somos meio prisioneiros de um preconceito que nos leva a “compreender a saúde através da doença”.  Esquecemos de  prevenir a doença, através de um contato mais pleno com a vida saudável.

Comumente, priorizamos a ação de parar a doença, em lugar de evitar o seu surgimento. Este modo de pensar é também muito frequente nas escolas.  Enquanto o aluno estiver rendendo bem, feliz, não apresentando problemas, seu nome não será cogitado para  um Estudo de Caso. Com isso, deixamos de apreender os mecanismos de saúde e detemo-nos nos opostos a eles.

Como estou escrevendo de novo este trabalho, por curiosidade, dirigi-me ao Novo Dicionário Aurélio (2a edição – Revisada – de 1993) e procurei o significado da palavra CASO:






Do latim, casu, s. m. 1. Acontecimento, fato, sucesso, ocorrência. 2. Eventualidade, conjuntura, hipótese. 3. Acaso, circunstância, causalidade.

 

Para surpresa minha, nesse dicionário, “caso”  é conceituado de maneira bem mais próxima daquilo que julgo ser adequado:






Estudo de Caso  seria um estudo dos acontecimentos, dos fatos ocorridos, das eventualidades, dos contextos e conjunturas,  das hipóteses, das circunstâncias e prováveis causas.

 

Fiquei mais contente com esta descrição, pois ela contém uma visão bem mais compreensiva do que explicativa da realidade, portanto, mais adequada ao que acredito ser o objetivo destes  Estudos.

Faz-me pensar também que, passados mais de 10 anos, alguma coisa mudou em nossas cabeças.

Bem, você me poderia dizer: e a palavra Estudo?  Você não a viu no Dicionário?!

OK! Vamos lá!

Aurélio, na mesma edição citada acima, diz:






ESTUDO: [Do lat. studiu, ‘aplicação zelosa, ardor’] s. m. 1. Ato de estudar. 2. Aplicação do espírito para aprender. 3. Conhecimentos adquiridos à custa dessa aplicação. 4. Trabalhos que precedem à execução de um projeto. 5. Trabalho literário ou científico acerca de um dado assunto.  6. Exame , análise. 7. Fig. Atenção ou cuidado especial.

 

Interessante observar que utilizamos as palavras e nem sempre tomamos consciência de todos os significados dela. Pensamos saber tudo sobre ela. Mas, veja só, no caso de Estudo, mais uma vez os significados associados a essa palavra ajudam-nos a formar uma sentença bem apropriada ao que venho tentando propor neste documento.

Poderia falar assim:






quando, com ardor, aplicamos, zelosamente, nosso espírito para aprender, adquirimos conhecimento à custa dessa aplicação.  Quando estudamos um caso, estamo-nos preparando para algo, um projeto que surgirá a partir desse estudo.  Esse projeto será científico e consistirá num exame e numa análise dos fatos, os quais serão registrados de forma especialmente atenta e cuidadosa.

 

2- Quem dispara o processo?

O que determina o surgimento de uma proposta de Estudo de Caso?

No texto de 1984, realmente, não fui claro nesse ponto. Acho até que mudei muito o meu modo de pensar sobre este assunto. Hoje, não concordo com uma série de afirmações que nele fiz.

Um aluno, uma turma, um grupo de professores e de funcionários, a instituição escola como um todo, tudo isso, junto ou isoladamente, será,  no presente trabalho, considerado como um “organismo”.

Assim, apenas para fins teóricos, no presente documento, chamarei de “organismos menores” os que estão inseridos num contexto mais abrangente. Por exemplo, a instituição escola, no seu todo, seria chamada de um “organismo maior”. Um aluno, um professor, etc. seriam “organismos menores”.

Como falei linhas atrás,  quase sempre um Estudo de Caso é solicitado a partir do surgimento de um “mau funcionamento” de um desses organismos. Na escola, via de regra, o aluno  que não está funcionando adequadamente é aquele que dispara a necessidade de um Estudo.

 

Quase sempre, esse “organismo” que funciona mal está atrapalhando outros “organismos menores”, que existem ao seu redor, atrapalhando ou não o “organismo maior”.

Seja como for, percebe-se, com muita frequência, que precisa haver um mau funcionamento em um de seus “organismos”, para que se pense em realizar um Estudo de Caso.

Essa postura parece ainda indicar o que prevalece: o tradicional modelo médico, que tinha como meta “curar a doença”.

Embora não seja meu propósito, neste artigo, discutir a pertinência ou não de tal modelo, desejo, apenas, lembrar que, na própria medicina atual, ele não é mais o único ou o mais valorizado.

Na prática da “saúde”, cada vez mais a ação preventiva tem merecido espaços maiores. Na prática da  “educação”, ainda  há muitas instituições que continuam privilegiando, nas situações de desespero, as ações curativas, ou delas lançando mão.

 

3.  Um Estudo de Caso em que haja um funcionamento inadequado

Como falei anteriormente, o que se observa com maior frequência são os Estudos de Caso disparados pelos “organismos” em desajuste, que não estão funcionando em conformidade com as regras do contexto nos quais estão inseridos, os que estão atrapalhando os outros “organismos” do seu meio (um aluno atrapalhando a dinâmica da turma, não conseguindo render, ou rendendo e dificultando o aprendizado dos colegas; um aluno com dificuldades de relacionamento, etc.).

Por ser mais frequente, focalizarei, neste trabalho, principalmente, este aspecto: o estudo de caso em que há um “desajuste”.  Todavia, insisto em lembrar que, ao vermos o Estudo de Caso apenas por este ângulo, estaremos limitando muito seu potencial como instrumento de aprendizagem para todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem.

Há aproximadamente 15 anos, estou envolvido num trabalho clínico que se caracteriza pelo estudo da história do cliente. Por isso, hoje, para mim, mais do que no momento em que escrevi a primeira versão deste artigo, os dados históricos de um “organismo” ganharam uma importância imensamente maior.

A compreensão do que está ocorrendo com um aluno envolve um levantamento de informações bastante grande e variado.

Seria uma grande ilusão de nossa parte acreditar que, através de uma simples observação do comportamento do aluno, de seu rendimento escolar, do que ele é capaz de verbalizar sobre seu modo de ser e de agir, poderíamos entender o que se passa com ele e os elementos que, conjugados, acabam por empurrá-lo na direção de uma “conduta inadequada”, ou seja, do seu “mau funcionamento”.

Num Estudo de Caso, seja ele por desajuste ou não, deveríamos tentar, do modo mais pleno possível, entender o “contexto” no qual esses comportamentos ocorrem. Conhecendo tal contexto, estaremos a meio caminho  de conseguir uma boa compreensão da realidade sobre a qual nos debruçaremos em nosso Estudo.

Em termos práticos, diria que, para se conhecer um contexto determinante de uma conduta de um aluno, seria desejável que conhecêssemos:


– a versão do aluno sobre sua história atual;

– opiniões dos seus colegas e amigos;

– opiniões de outras pessoas que o conhecem dentro da escola;

– informações recolhidas através dos pais e/ou dos familiares;

– informações de profissionais que atendem o aluno: psicólogos, médicos, fonoaudiólogos e outros;

– informações dadas por seus antigos e atuais professores;

– outras informações.

 

É evidente que, para chegar a uma compreensão mais profunda do momento vivido por qualquer organismo, deveremos contar com a colaboração e as informações dos outros organismos, que interagem com ele.

O que quero destacar nessa proposta é a necessidade de contextualização do “desajuste”, pois, só assim, poderemos compreendê-lo.

Só compreendendo num nível máximo é que teremos condições de atuar, reorganizar e solucionar, também da melhor forma possível.

A “compreensão extensa” permite-nos uma ação mais eficaz para eliminar uma série de suposições falsas sobre os fatos e, consequentemente, diminuir a possibilidade de propostas de ações inadequadas para a superação da dificuldade apresentada pelo aluno em estudo.

 

4.  Como é a  estrutura de um Estudo de Caso?

Costumo organizar um Estudo de Caso dentro do seguinte esquema:

A-IDENTIFICAÇÃO DO CASO

Neste item, podemos listar um número bastante comum de informações gerais, que nos ajudem a identificar, com clareza e precisão, o que ou quem está em foco neste Estudo. Tratando-se de um aluno, poderíamos buscar os seguintes dados: nome, sexo, idade, data de nascimento, filiação, naturalidade, nacionalidade, etc.

B-  MOTIVO DO ESTUDO

b.1- Descrição detalhada do comportamento inadequado;




b-2- Justificativa para o presente estudo: avaliação do SOE da escola, conselho de classe, sugestão de algum professor do aluno, solicitação da família, etc.

 

 

C – DADOS RECOLHIDOS




c-1- Entrevistas realizadas: com o próprio aluno, com seus professores, colegas, família, profissionais que o atendem ou o atenderam o aluno, etc.

 

c-2- Outros documentos:



– Os materiais produzidos pelo aluno na escola, considerados significativos

para a compreensão do Estudo;

-  Atestados, laudos, exames…

 

D- O ESTUDO DO CASO PROPRIAMENTE DITO

Um caso em estudo deverá ter um coordenador. Alguém que fique como responsável pela dinâmica dessa atividade.

Não precisará ser, forçosamente, um profissional técnico, como, por exemplo, um psicólogo, um orientador educacional, um médico, etc. Caso seja possível contar-se com um desses profissionais, talvez o trabalho flua mais, pelo fato de eles já lidarem, no dia a dia,  com esse tipo de “material”.

O papel do coordenador é muito importante, pois a ele caberá promover o entrosamento das pessoas que trabalharão no Estudo, de tal forma que essa equipe consiga o melhor rendimento possível. O grupo sobre sua coordenação trabalhará com o objetivo de organizar as informações, discuti-las e produzir um leque de sugestões, que possam contribuir para a solução ou a minimização do problema que motivou aquele Estudo de Caso.

Essas reuniões da equipe do Estudo poderão estender-se por um tempo variável. Idealmente, deverão terminar somente quando o grupo sentir que já tem condições de propor alternativas, soluções e encaminhamentos mais consistentes.

 

5. O que esperar de um Estudo de Caso bem sucedido?

Num Estudo de Caso bem sucedido, espera-se que não só o “organismo  com mau funcionamento” seja beneficiado, mas que TODOS os participantes desse estudo se beneficiem dele.

Cada um, a seu modo, poderá sentir que cresceu ao discutir sobre o problema estudado. Dessa forma, os professores, os colegas, a família, a escola, todos se enriquecerão a partir do momento em que possam parar para compreender o que estava acontecendo e, através disso, entender qual o papel de cada um naquela situação.

Falar sobre o outro é também falar da gente. Compreender o que acontece com o outro é compreender o que acontece também conosco.

Muitas vezes, a Escola “acusa” a família do aluno, ou  o professor ou o próprio aluno, e, quando ela se envolve num Estudo de Caso, pode acabar percebendo que ela própria pode estar sendo uma das molas propulsoras para a ocorrência daquele “mau funcionamento do aluno”.

Ninguém está “de fora”, quando se fala de um Estudo de Caso, pois nós todos pertencemos ao “organismo maior”, no qual todos os fenômenos, que atingem os “organismos menores”,  ocorrem.

Um Estudo de Caso bem sucedido implica em “assumir um compromisso” junto a todos aqueles que dele participaram, pois  não basta levantar hipóteses, colecionar dados, concluir sobre o que está acontecendo com o aluno naquele momento de sua vida. É preciso que isso tudo sirva de ponto de partida.

O que for finalmente proposto precisará ser acompanhado, passo a passo.
O “depois”, talvez, seja mais importante do que o “antes” e o “durante”, no Estudo de Caso.

Ele, concretamente, não termina após os encaminhamentos que forem sugeridos, pois é muito importante que se acompanhem o seu desenvolvimento e os resultados.

Por não podermos, nunca, antecipadamente, afirmar que as soluções sugeridas, a partir de um Estudo de Caso, sejam as corretas ou as únicas, precisamos lembrar-nos sempre da importância de se ter uma atitude de humildade, sinal do reconhecimento de nossas próprias limitações. Muitas vezes, teremos que reconsiderar algumas das sugestões propostas pela equipe que participou do Estudo. Teremos que admitir que – em várias ocasiões – estamos indo pelo caminho errado. E, se não tivermos essa postura, provavelmente ficaremos atados e, consequentemente, todo o nosso trabalho  ficará limitado e comprometido.

Uma atitude de flexibilidade, de não rigidez, de não preconceito, de abertura para a experiência, um reconhecimento da igual importância que cada colaborador tem nesse processo, tudo isso é importante que exista no Grupo e imprescindível naquela pessoa que estiver liderando essa tarefa tão complexa e tão rica, como é o Estudo de Caso.

 

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* Revisão do artigo com o mesmo nome, escrito em março de 1984.

** O autor trabalhou durante 23 anos como psicólogo escolar no Centro Educacional de Niterói – Escola da Fundação Brasileira de Educação.

 

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