DO RESSENTIMENTO À MÁ CONSCIÊNCIA

 

Psicoterapia: Teoria e Prática

 

  Recortes e reflexões sobre o capítulo IV do livro Nietzsche e a Filosofia,escrito por
Gilles Deleuze- Editado por RÉS-Editora Lda. Porto . Portugal
Aos meus clientes, pelo muito que me ensinam a cada dia.
J.L.Belas – 1994

 

SUMÁRIO

 

Tentei, neste trabalho, fazer uma aproximação entre o que vivo na minha prática clínica, e algumas idéias que  Nietzsche em relação ao ressentimento e a má consciência.

Em vez de tomar como ponto de partida o próprio Nietzsche, achei melhor ir até ele através de Deleuze, indiscutivelmente um mestre no assunto.

Penso que este tema seja muito importante para quem trabalha na clínica, pois nos ajuda a refletir sobre uma série de questões com as quais esbarramos diariamente, quando entramos em contato com nossos clientes.

Finalmente, trata-se de uma modesta contribuição para os meus colegas que trabalham em psicoterapia, independentemente da abordagem teórica que norteie o método  que utilizam.

ALGUMAS QUESTÕES DA PRÁTICA CLÍNICA

Nós, que  trabalhamos  em  consultório,  vivemos constantemente com uma questão trazida pelos clientes  que é  sua “impotência” para se desvencilhar de seus problemas, ou seja, para mudar.

Mesmo se empenhando para viver uma vida mais leve,  mais integrada e integral, as pessoas que nos procuram, quase sempre , trazem uma queixa básica: uma insatisfação com a vida  que  estão vivendo.

A despeito de seu nível  intelectual, de suas informações sobre a dinâmica psíquica  do  ser  humano,  das “causas”  do  seu problema, o cliente costuma falar sobre suas dificuldades do seguinte modo: ” uma coisa que  me  prende  e que não me deixa agir como acho que deveria”.

Um outro aspecto, que frequëntemente é mencionado nas entrevistas, diz respeito ao “tipo de prisão” que os clientes experimentam. Essa “prisão” se refere a um ancoramento nos fatos passados dos quais eles não conseguem se esquecer. Esse ancoramento, constantemente faz com que o  presente seja sentido como  se fosse o  passado, ou vice-versa. E, com isso, eles não tem uma visão do  futuro  como  algo que  vai acontecer, que é novo.  Não.  Eles vêem o futuro a partir do  passado, como se já soubessem como o futuro será. Isso os impede de conceber a vida como um fluir imprevisível. O que acarreta, nelas, uma falta de flexibilidade no modo de perceber fatos e situações que vivenciam.

Podemos mesmo dizer que a doença psi  é  uma  doença  cujo sintoma principal é a rigidez.

Em  outras  palavras,  a falta  de  flexibilidade  parece caracterizar os problemas psicológicos.

  Na maioria das pessoas com transtornos  psíquicos,  a flexibilidade, ou é inexistente, ou muito pouco presente nelas. Como conseqüência, a criatividade para  solucionar seus problemas quase não existe. Dessa forma, repetem, repetem, e repetem (aparentemente sem motivo lógico) comportamentos que são ineficazes para lhes proporcionar uma vida equilibrada, feliz…

Algumas pessoas  poderão  questionar  o  que escrevi nos parágrafos anteriores argumentando que os  artistas, mesmo quando apresentam transtornos psicológicos, nem por isso deixam de ser criativos. Considero este argumento falho, pois o  que quero dizer é que, mesmo as pessoas criativas, sensíveis, quando seus de problemas atingem  a  área afetiva, emocional, se mostram profundamente amarradas, rígidas  e suas “saídas” acabam não sendo  eficazes para promover uma forma de vida mais saudável.

Há exceções? Há. Tenho visto muito poucas.

Outro aspecto interessante é a questão  da  memória.

Há pessoas que vivem seus problemas de forma “enciclopédica”. Ou seja, elas “sabem” tudo a respeito delas mesmas.  Elas  não  esquecem  nada que aconteceu há um minuto, um dia, um mês, um ano, ou vários anos.

Sabem em que dia aconteceu um fato, as pessoas que estavam lá,  o que elas disseram, suas expressões físicas, etc.

Possuem uma supermemória que parece armazenar  todas  as  experiências  vividas, principalmente aquelas que lhes servirão para argumentar sobre suas dificuldades e que possam justificar a limitação em que vivem.

Quando Nietzsche nos fala sobre o ressentimento e a má consciência, parece clarear um pouco este ultimo aspecto apresentado, principalmente quando nos deparamos com algumas   pessoas  que são   “cegas” para os   fatos   que estão  diante  delas. Tais pessoas não conseguem “ver com nitidez” nem com precisão a realidade diante dela, no aqui e agora. Elas distorcem tudo, ou quase tudo. Não concluem nada, pois  o  concluir as coloca num “vazio” e provoca nelas  uma  enorme  angústia, uma “falta de chão”.

A clínica é muito mais  rica  do  que esbocei acima e, claro, não pretendo descrever aqui  todos os  tipos  de pessoas que nos procuram num consultório. Mas, entre os que chegam a nós, um grande número poderia estar incluído no que Nietzsche chama de “o homem do ressentimento”.

Tentarei destacar a seguir  alguns aspectos  apontados  por  Deleuze no livro que estamos utilizando nesse trabalho.

REAÇÃO E RESSENTIMENTO

O tipo ativo  exprime  uma  relação entre  as  forças ativas e as forças reativas, de modo tal que estas últimas são elas próprias agidas.  O tipo ativo, pois, engloba as forças reativas, mas num estado que elas se definem por um poder de obedecer ou de  ser agidas.  Compreende-se  então que  não  basta observarmos comportamentos reativos para que se possa caracterizar um ressentimento.

O RESSENTIMENTO designa  um tipo  em que as forças reativas imperam sobre as ativas:  deixando  de ser agidas.  Por essa razão O HOMEM DO RESSENTIMENTO “RE-AGE”.

Nele, a  reação deixa de ser agida para  se  tornar  algo  sentido.  Aí as forças reativas imperam sobre as ativas porque  se furtam à sua ação.

Talvez o que dissemos acima, num recorte  do   que   se  lê  no trabalho de Deleuze sobre Nietzsche, possa nos ajudar a entender o que disse anteriormente, lá no início, sobre o cliente com um “transtorno psi”, aquele que nos procura no consultório.  Nosso cliente não age,  ele re-age.  Ele sente, ressente, fica preso no que passou. A ele a ação  esta negada.

COMO ACONTECE O RESSENTIMENTO

E QUAIS SÃO SEUS PRINCÍPIOS?

“Vamos supor que um  sistema externo  do aparelho  recebe  as excitações perceptíveis, mas não retém  nada,  não  possui, pois, memória, e  por  trás  deste  sistema  encontra-se  um outro  que transforma a excitação momentânea do primeiro em marcas duráveis”.

Estes dois sistemas, ou registros, correspondem  à  distinção  entre  CONSCIÊCIA e o INCONSCIENTE :

“As  nossas  RECORDAÇÕES  são  por natureza inconscientes” e inversamente:  “A  consciência nasce aí onde termina a marca mnêmica.”

Em Freud : O sistema   consciente  nasce  como  resultado  de  uma evolução: no limite do exterior e do interior, do mundo interior  e do mundo exterior, “ter-se-ia formada  uma  crosta   de  tal  modo flexível devido as excitações que teria recebido sem  cessar,  que teria adquirido propriedades que a tornaram apta  unicamente  para receber excitações novas”.

Em Nietzsche : Distingue dois  sistemas  do  aparelho  reativo:

a- o inconsciente, definido pelas marcas mnêmicas, pelas impressões  duráveis;
b- consciência , um sistema digestivo, vegetativo, ruminante.

Sua função é  de  se  fixar à impressão indelével, investir a marca.

Todavia, essas forças reativas são insuficientes para que possa haver uma adaptação.  Esse  aparelho  reativo  precisa  se valer de um outro sistema de forças que não seja reação  às  marcas, mas sim à excitação presente ou à imagem direta do objeto.

Esta segunda espécie de forças reativas não se separa da consciência, “meio onde há lugar para coisas novas”.

A origem, a natureza  e  a  função  da  consciência  são apenas reativas e tem como finalidade identificar sob  que  forma,  e sob  que condições, a reação pode ser agida.

Mas, uma questão importante para apresentarmos aqui é que Nietzshe nos mostra que é “necessário que  os  dois  sistemas, ou  as  duas espécies de forças reativas, sejam separadas.   É necessário ainda que as marcas não invadam a consciência.”  Ele continua…” É  preciso que uma  força ativa, distinta e delegada, apóie  a consciência  e lhe reconstitua a cada instante a frescura, a fluidez, o  elemento químico móvel e leve.”

Esta faculdade ativa  supra-consciente  é  a   FACULDADE DO ESQUECIMENTO.

O  esquecimento  impede  que  as  marcas  invadam  a consciência e a paralise, impedindo assim  que ela exerça sua função.

Nietzsche define a faculdade do esquecimento como:

“… uma faculdade de  travagem,  no  verdadeiro  sentido da  palavra, um aparelho de amortecimento,  uma  força  plástica,  regeneradora  e curativa. Nenhuma  felicidade,  nenhuma  serenidade,  nenhuma esperança, nenhuma  altivez,  nenhum  gozo  do  instante  presente poderiam existir sem faculdade de esquecimento.”

Esta faculdade, força ativa, é delegada pela  atividade junto das forças reativas.  É  uma guardiã,  uma  vigilante,  que impede que os dois sistemas do aparelho reativo se confundam.  Tem apenas uma atividade funcional e, portanto, sujeita a  perturbações, a variações e malogros.

Por isso: “O homem em que este  aparelho de amortecimento se deteriorou e já não funciona, é  semelhante  a um dispéptico: não consegue terminar nada “… “Nele,  a  cera  da consciência  fica  como  que  endurecida,  a  excitação  tende  a confundir-se com a sua marca no inconsciente  e,  inversamente,  a reação às marcas  aparece na  consciência  e  a  invade.”

Dessa maneira, quando  a marca toma o  lugar  da  excitação  no  aparelho reativo, a própria reação toma o lugar da ação,  a  reação impera sobre a ação.     O  ressentimento, portanto,  é uma  reação  que, simultaneamente, se torna sensível e deixa de ser agido.

Para Nietzsche, a DOENÇA, como tal, constitui uma forma do ressentimento.

Como eu assinalei, no início deste trabalho,  “doença psi”  é uma forma de rigidez.
Este “modo nietzcheano pensar”, me levou a re-conceituar a “doença” e me fez lembrar de alguns  clientes  meus. Eles  tinham  uma “memória pródiga”.  Lembravam dos detalhes de certas situações vividas dias, meses,  horas ou anos atrás, como  se elas tivessem  acontecido  minutos antes.   Estavam ancorados nesse passado e não  conseguiam  se livrar dele.

O  item seguinte  acrescentará  mais  algumas características desses clientes e talvez esclareça melhor o que estou tentando mostrar.

COMO É O HOMEM DO RESSENTIMENTO?

Nele há uma invasão da consciência pelas marcas mnêmicas à entrada da memória na própria consciência. Ele ( o homem do ressentimento ) é um “cão, uma espécie de cão, que só reage às marcas(cão de caça).  Investe apenas nas marcas: a  excitação para ele se confunde localmente com a marca. Ele não pode agir a sua reação. Ele tem uma prodigiosa memória.

Nele, qualquer que seja a força da  excitação  recebida, qualquer que seja  a  força  total do  próprio  sujeito, servirá somente para investir a marca daquela, de modo que  é  incapaz  de agir, e até de reagir à excitação.  Todo mundo  é objeto de  seu ressentimento.

Ele não “reage”: a  sua reação  não  termina  nunca,  é sentida em vez de ser agida.

Ele experimenta qualquer ser e qualquer objeto como  uma ofensa  na medida exatamente  proporcional  em  que sofre  o seu efeito.  Portanto: a beleza, a bondade são para ele necessariamente ultrajes tão  consideráveis  como  uma  dor, ou  uma  infelicidade experimentada.

Ele não consegue desembaraçar-se de nada,  não  consegue rejeitar seja o que for. Tudo fere.

Todos os acontecimentos deixam marcas;  a  recordação  é uma chaga purulenta.

O homem do ressentimento é, por si mesmo, um ser doloroso: a esclerose ou o endurecimento da sua consciência, a rapidez com a qual qualquer excitação se condensa e se congela nele,  o peso das marcas que o invadem,  são outros tantos sofrimentos cruéis.

Nele, a memória das marcas é odiosa em si mesma,  por si mesma.

A esta memória intestinal e  venenosa,  Nietzsche  chama  a aranha,  a  tarântula,  o  espírito de  VINGANCA.

CARACTERÍSTICAS DO RESSENTIMENTO

O Homem do Ressentimento experimenta:

– impotência para admirar, para respeitar, para amar;

– passividade (não age);

  – imputação dos danos, distribuição das responsabilidades, a acusação perpétua.

Em alguns clientes, isso chega a um nível de defesa  tão grande que lhe é difícil até ouvir o que de mais “inofensivo”  se lhe diga. Há sempre uma  sensação  de  estar  sendo  acusado e , imediatamente, começa a direcionar a “culpa para os outros”.

É BOM ?   É MAU ?

Neste tópico, Nietzsche levanta uma questão típica, de interesse não só para o trabalho do clínico. Suas indagações nos direcionam, também, para uma reflexão sobre a formação geral do  homem e de  sua personalidade. Trata-se das distorções às quais somos submetidos, desde  o  princípio de nossa historia pessoal, relativamente aos valores e ao modo  como nos definimos como seres humanos, aceitáveis ou não, amáveis ou repudiáveis dentro do nosso grupo.

Netzsche nos diz:

” É bom todo aquele que não exerce violência sobre ninguém, todo aquele que não ofende nem ataca ninguém, não usa  de represálias e deixa para Deus o trabalho da vingança, todo aquele que como nós se mantém escondido, evita o encontro com o mal  e, de resto, liga pouco às coisas da vida, como nós, os pacientes,  os humildes, os justos”.

Através dessa afirmação, ele tenta mostrar  como tais idéias nos são repassadas,  e  o  quanto  elas  produzem a formação de conceitos de valor que acabam por impedir que o  homem tenha uma ação positiva sobre si mesmo,  levando-o a  utilizar freios que  limitam seu real desabrochar, não permitindo que ele seja ele mesmo.

Com  afirmações  desse  gênero,  que  todos  nós ouvimos durante todo o trajeto de nossa história pessoal, chegamos  a  formar certos juízos de valor que nos definem o bem e o mal, juízo moral , originado pela determinação ética do bom e do mau.

A culpa, geralmente presente nos clientes, é um aspecto  bem caracterizado e apresentado por Nietzsche, principalmente quando  discorre sobre o tema o bem e o mal,  o  bom  e  o  mau  e  ainda sobre  o desenvolvimento do ressentimento.

Para esse pensador, o sacerdote judaico (o artista do ressentimento) é o que põe em forma o ressentimento.

Diz Nietzsche:

“Esse gênio que criou  um  não  a  todos  os  movimentos ascendentes da vida, para tudo o que é bem nascido, poder, beleza, afirmação de si na terra, o qual inventou um outro  mundo,  e  que fez tais movimentos para a afirmação da vida parecerem  como o mal ,a coisa reprovável em si.”

“O sacerdote é aquele que põe em forma  o  ressentimento, aquele que conduz a acusação e vai sempre mais longe na empresa de vingança, aquele que ousa a inversão  dos  valores.

É  ele  que começa  a  dizer:  Só os miseráveis  são  bons,  os pobres,  os impotentes, só os  pequenos  são  bons;  aqueles  que sofrem,  os necessitados, os doentes, os disformes  são,  do  mesmo  modo,  os únicos piedosos, os únicos benditos  de Deus; e só  a eles  que  a beatitude pertencer. “Pelo contrário, vós  outros,  vós  que  sois nobres e poderosos, vós sois para toda a eternidade  os  maus, os cruéis, o  ávidos,  os  insaciáveis, os  ímpios  e,  eternamente, permanecereis também os réprobos, os malditos, os condenados”.

MÁ CONSCIÊNCIA E INTERIORIDADE

O objetivo do ressentimento pode ser visto por dois aspectos:

1- “privar a força ativa das suas condições materiais  de exercício;
2- separá-la  formalmente  daquilo  que  ela  pode.”

Como conseqüência  disso se pergunta então em que  se  transforma essa força ativa?

  Nietzsche nos diz:

“…qualquer que seja a razão pela qual uma força ativa é falseada, privada  das  suas  condições  de exercício e separada daquilo que pode, VIRA-SE  PARA  O  INTERIOR, VIRA-SE CONTRA SI.”

Em outras  palavras,  força  ativa  se  torna realmente reativa.

Nietzsche, nesse ponto, nos mostra com mais precisão ainda como se origina a má consciência:

” Todos  os  instintos  que  não desabrocharam, que qualquer força repressiva impeça de rebentar no exterior, viram-se para o interior: é  a isso  que  eu  chamo  a interiorização do  homem…  É  aí  que  reside  a  origem  da má consciência.”

Ele nos esclarece  :

“É  neste  sentido  que  a  má consciência toma o caminho do ressentimento.”

Um outro momento interessante na leitura desse  capítulo foi verificar que , a partir desse conceito de má consciência e de ressentimento, um outro aspecto, comum na clínica, surge.  Refiro-me aqui às  declarações  de  inúmeros  clientes  que dizem  como é difícil  para eles aceitarem seu sentimento de felicidade.

Explica Deleuze:

“O ressentimento esconde um ódio sob os auspícios de um amor tentador:
eu te acuso, faço-o para teu bem; amo-te,  para  que  te unas a mim, até que tu te unas a mim, até tu próprio te tornares  um ser doloroso,  doente,  reativo,  um  ser  bom…”

Deleuze  cita Nietzsche:

“Quando é que os homens do ressentimento alcançarão o triunfo  sublime,  definitivo,  brilhante,  da  sua  vingança? Indubitavelmente quando  conseguirem  lançar  na  consciência dos felizes a sua própria miséria e todas as  misérias:  de  modo  que estes comecem a envergonhar-se da sua felicidade e a dizer  talvez uns aos outros: é uma vergonha ser feliz perante tantas misérias.”

Mais adiante diz:

“A força  ativa  torna-se  reativa, o  senhor torna-se escravo…”
“Separada daquilo que  pode,  a  força  ativa não  se  evapora. Ao  virar-se  contra  si,  PRODUZ  DOR.”

“O sofrimento,   a  doença,  a  indignidade, o dano  voluntário,  a mutilação, as mortificações, o sacrifício de si são procurados  do mesmo modo que um prazer.”

Essas questões trazidas por  Nietzsche são tão comuns na prática clínica que ,  ao  ler  estas  linhas  é inevitável que “passe diante de nossos  olhos” vários  rostos  de pessoas por nós atendidas.

  A questão da má consciência levantada por Nietzsche poderia ser assim definida:

“Multiplicação da dor por interiorização da força, por sua introjeção, é esta a  primeira definição da má consciência. “

A  questão   da  dor,  outro  tema  muito significativo para  nós, é considerada  o  segundo  aspecto  da  má consciência.  Essa questão  nos levará a um outro conceito, rico para a prática clínica,  que é o de sentimento de culpa.

A PRODUÇÃO DA DOR

Uma  vez  interiorizada,  a  força  ativa  torna-se fabricante de DOR.

Essa  dor  passa  a  ser  interiorizada, sensualizada, espiritualizada.  Ou seja, a dor ganha outro significado:  passa  a ser a conseqüência de um PECADO, de uma CULPA.

A única saída para se livrar da culpa e do pecado é fabricar a própria dor.
” A dor transformada em sentimento de culpa,  de  temor, de castigo.”

Nietzsche  considera  que  a  definição  do  primeiro aspecto da má consciência seria TOPOLÓGICO, seu  estado  bruto,  ou material, transformação de forças….

O segundo aspecto da  má  consciência  é  definido como TIPOLÓGICO, ou seja,  sua transformação em sentimento de culpa.

Essa passagem de um aspecto para o outro  necessitou  da “intervenção” de agentes que possibilitaram a mudança  de  direção no movimento da dor:

– do SENTIDO EXTERNO( onde a dor  não  era  um argumento contra a vida, mas, pelo contrário, um excitante da vida “um atrativo da vida”, como nas guerras),
– para o SENTIDO INTERNO( ou seja, agora o sofrimento tem um outro sentido,  virado  para a paixão. Assim fazemos da dor a conseqüência de uma culpa e o  meio de uma salvação. Cura-se a dor fabricando mais dor.)

Nietzsche se pergunta quem inventou e desejou o  sentido interno da dor ?
Ele considera que a figura do sacerdote cristão, segunda figura, pois a primeira foi a do sacerdote judeu, foi  responsável pela criação do sentimento de culpa nesse nível que estamos  agora discutindo.

Diz Nietzsche :

” Foi apenas nas  mãos  do  sacerdote, esse verdadeiro artista para  o  sentimento  de  culpa,  que  este sentimento começou a tomar forma.”

E  Deleuze  completa:

”  É  o sacerdote cristão que faz sair a  má  consciência  do  seu  estado  bruto ou animal, é ele quem preside a interiorizacao  da  dor.
É ele, sacerdote-médico, que cura a dor  ao  infectar  a  ferida.
É ele,sacerdote artista, que conduz a má  consciência  à sua  forma superior: a dor, conseqüência de um pecado.”

” Esse sacerdote muda a direção do ressentimento.
Num  primeiro  momento,  como  já vimos,  o  homem  do ressentimento,  sofria,  mas  procurava  uma  causa  para  o  seu sofrimento fora de si, acusando tudo e todos:
“Vê esses homens que se dizem bons, eu te digo: são maus.”  Diziam os sacerdotes nesse primeiro momento.

Num segundo momento o homem reativo precisou encontrar a causa do seu sofrimento dentro de si mesmo.
Ai surge  o  sacerdote dizendo agora: ” E verdade, minha ovelha, alguém dever ser a causa do teu sofrer; mas tu próprio és a causa de tudo  isso,  tu  és  a causa de ti próprio.”

Surge ai a noção de PECADO.

Comentei,  no  item  “características  do  ressentimento”, sobre alguns clientes que lançavam a culpa para os outros.

Será que poderíamos dizer que  a  má  consciência  e  o ressentimento  ocorrem  em  “escalas” , em “momentos  evolutivos” diferentes para cada pessoa e dentro a mesma  pessoa  ?  Ou,  de outro modo, há pessoas  que ainda vivem numa fase na qual  não sentem a culpa como  lhes sendo devida, onde elas  ainda  não  se  colocam  como  culpadas?   Onde  a consciência ainda não se tornou capaz de dizer  : ” tu próprio  és causa de tudo isso ” , ainda não assumem o seu PECADO ?

Chamo atenção aqui para as “personalidades imaturas, infantilizadas”. Elas não costumam se admitirem culpadas, pecadoras…

Enquanto o ressentimento diz: é  por  tua  culpa,  a  má consciência diz: e por minha culpa.

Nesse momento o  sacerdote  se torna o senhor daqueles que sofrem.  Deleuze nos chama atenção para o  paralelismo  existente entre os conceitos de má consciência e de ressentimento,  e  sobre os dois aspectos de cada um deles.

“A definição do primeiro aspecto da má consciência era :

a multiplicação  da  dor  por  interiorização  da  força.

A definição do segundo aspecto é:

interiorização da dor por mudança de direção do ressentimento.”

“….é necessário insistir  também  no paralelismo da má consciência e do ressentimento.  Não só cada uma destas variedades possui dois  momentos,  topológico  e  tipológico, mas também a passagem de um momento  para  outro  faz  intervir  o personagem do sacerdote. E o sacerdote sempre age por ficção.

Nas linhas anteriores vimos a ficção  na  qual  repousa a inversão dos valores  no  ressentimento.  Fica,  entretanto,  por  resolver  : sobre  que ficção repousa a interiorização da dor,  a  mudança  de direção do ressentimento na má consciência ?   Este  problema  põe em pauta um outro: o conjunto de fenômenos chamado CULTURA.

A CULTURA ENCARADA DO PONTO DE VISTA PRÉ-HISTÓRICO

Nietzsche nos  diz  que  o  movimento da cultura, que  ele chama  de   “moralidade  dos  costumes”,  não  está  separado das torturas, dos meios atrozes  que  servem  para  adestrar  o  homem.  Entretanto ele distingue aí dois elementos:

1- Aquilo a que se obedece, num povo, numa raça ou  uma classe, é sempre  histórico,  arbitrário,  grotesco,   estúpido  e limitado ( as piores forças reativas );

2- Nesse obedecer cego, aparece  um  princípio  que  vai além dos povos, raças, classes, a lei de  obedecer às leis,  algo genérico, “pré-histórico”.

Assim, Nietzsche denomina de “pré-histórico” esse  dado genérico.

Afirma que a cultura é  a  atividade  pré-histórica  do homem, que fornece a ele hábitos, que o leva a obedecer à leis, que o adestra.

Isso significa que dá  ao homem condições de agir  suas forças reativas, reforçar sua consciência que deixa de ser fluida, fugidia, de se apoiar na  faculdade  de  esquecimento.

Em  outras palavras, a cultura dá ao homem condições de  “não  esquecimento”, dota-o de uma MEMÓRIA, diferente daquela , das marcas.   Essa  não  se liga ao passado mas  sim  ao  futuro.  ” Não é  uma  memória  da sensibilidade, mas uma MEMÓRIA DA VONTADE”,  das  falas.

“É  A FACULDADE DE PROMETER, COMPROMETIMENTO DO FUTURO,  RECORDAÇÕES  DO PRÓPRIO  FUTURO.”  As  promessas  devem  ser  mantidas  para determinado momento futuro.

Como nos diz Deleuze:

” É esse  precisamente o objetivo seletivo da cultura: formar um homem capaz de  prometer,  portanto de dispor do futuro, um homem livre e poderoso.”

Para atingir seu objetivo, a cultura impõe ao homem  uma série de suplícios para conseguir adestrar as forças  reativas,  e obrigá-las a serem agidas.  Ela fez da DOR um meio de  troca,  uma moeda, um equivalente exato ao esquecimento, de um dano causado, UMA PROMESSA NAO CUMPRIDA.

Justiça, castigo…   Dano causado = dor  sofrida…

A relação  do homem com homem é a equação do castigo.

A relação humana  ,  por  essa  equação,  se  estabelece seguindo o seguinte o esquema de uma relação de um credor  com  um devedor:

” a justiça torna o homem responsável por uma divida “.

Dai, se percebe que o homem paga , com sua dor,  o  dano que causa, por ser responsável pelas suas forcas reativas.

Neste tema, surge a questão:

” não se compreenderá nunca a cruel equação dano causado = dor sofrida, se não se introduzir um terceiro termo, o prazer que se sente ao infligir uma  dor  ou  ao contemplá-la.”

Tal prazer não está vinculado  à  vingança,  ou a uma reação, mas às forças ativas adestradas pela justiça. Ela adestra as forças reativas para torná-las aptas a serem agidas.  Assim:  ” o homem  ativo,  agressivo,  mesmo  violentamente  agressivo,  está cem vezes mais perto da justiça do que o homem reativo”.

A CULTURA ENCARADA SOB O PONTO DE VISTA HISTÓRICO

“Toda a violência  da  cultura nos é apresentada  pela história como a propriedade legítima dos povos, dos Estados e  das Igrejas, como manifestação da SUA força”.

“A cultura não se separa na história do movimento que a desnatura e a coloca ao serviço das forças reativas; mas a cultura não se separa também da própria historia.”

“A história aparece, portanto, como o ato pelo qual  as forças reativas se  apoderam  da  cultura  ou  a  desviam  em  seu proveito. O triunfo das forças reativas  não  é  um  acidente  na história, mas o princípio e o sentido da “historia universal”.

“Em vez do indivíduo soberano como produto da  cultura, a  história  apresenta-nos  o  seu  próprio  produto,  o  homem domesticado, no qual encontra o famoso sentido da  historia: ‘ o aborto sublime’, ‘o animal gregário, ser dócil, doentio, medíocre,  “O Europeu de hoje”.

O que se viu anteriormente sobre o ressentimento e a  má consciência do ponto de vista individual, agora e repassado para o nível coletivo através de associações de forcas reativas. Elas  se apoderam  e se misturam na atividade genérica e a desviam  do  seu sentido. Em outras palavras : a dor e a dívida  que antes  eram pessoais, agora passam para o plano geral.

” Do ponto de vista  da atividade genérica, o homem era tido como  responsável  pelas  suas forças  reativas;  as  suas  próprias  forças  reativas  eram consideradas como  responsáveis perante  um  tribunal ativo( intrapessoal).

Agora, as forças reativas  aproveitam, com  o  seu  adestramento, para formar uma associação complexa com outras forças reativas: sentem-se  responsáveis  perante  essas  outras  forças, essas outras forças sentem-se juizes e senhores  das  primeiras.

A dívida, que até então era individual, torna-se para com a “divindade”,  para com ” a sociedade”, para  com  “o  Estado”,  para  com  as instâncias reativas.

Tudo se passa entre forças  reativas:  sob a sua nova forma, é inesgotável, impagável.
”  Agora  a  dor apenas paga  os  juros  da  dívida;  a  dor  é interiorizada,  a responsabilidade-dívida torna-se responsabilidade-culpabilidade. De maneira que o próprio credor tome a dívida  a  sua  conta,  que tome sobre si o corpo da divida.  O  próprio  Deus  oferece-se  em sacrifício para pagar as dividas  do homem, Deus  paga-se  a  si próprio, Deus torna-se o único a libertar  o  homem  daquilo  que, para o próprio homem, se tornou irremissível.”

Embora a influencia do sacerdote seja visível  na  nossa cultura, parece que há pessoas que se tornaram , por alguma razão, não muito clara para muitos de nós, “imunes” a tais influências ( se isso é possível acontecer).

“Pessoas refratárias à cultura ?”  “Personalidades patológicas ?” “Distúrbios do Caráter ?” “Personalidades psicopáticas?”  Pessoas  que  embora  ressentidas  não conseguem experimentar  a culpa  e  continuam  apenas ignorando a si mesmo e atribuindo suas limitações a tudo que  esta fora de  si.  Não  há  débito com  ninguém,  há  , sim,  um  credito impagável.

Nada a satisfaz, pois ela considera que tem direito a muito mais do que  alguém poderia lhe pagar.   São infelizes, insatisfeitas. Todos devem  se sacrificar por elas.   São “deuses”, que não  se sacrificam, que não querem libertar ninguém, que só querem dominar tudo e todos. Essas pessoas se fazem dominantes, criam suas  próprias leis e querem que todos a obedeçam.  São “reis”, “senhores”…

É claro que Nietzsche não se propõe nesse  seu  trabalho, sobre o ressentimento e a má consciência, explorar todos  os  tipos de personalidades que chegam aos consultórios  dos  terapeutas. Ele, realmente, nem está preocupado com isso.  Todavia, essas idéias  que ele aponta em relação essas questões, são interessantíssimas  para nós que trabalhamos nessa área.

Há uma série de questões apontadas por Nietzsche  que  poderiam ser discutidas pelos profissionais da psicoterapia em geral e isso levaria certamente a uma reflexão e até, quem sabe, uma reformulação, no que diz respeito  ao  papel  do terapeuta e sua relação  com  o  seu  cliente,  principalmente  se levarmos em consideração  que  ele atribui, de uma certa maneira, ao  profissional  uma função semelhante aquela que outrora coube ao “sacerdote”, o “confessor”,  de alguns tempos atrás ( quem sabe até dos dias de hoje ).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura desse texto, pode ser muito útil para  os profissionais Psi.

Ele nos leva a pensar muitas coisas sobre a prática clínica,  sobre  alguns clientes, suas características e dificuldades.

Ele nos leva a sentir um aspecto da dinâmica  da “construção, de uma pessoa”.

Leva-nos a perceber a inter-relação do  Ativo/Reativo,  o quanto um não existe sem o outro, o quanto um não vale mais do que o outro, o  quanto  ,  naturalmente  sem  as  distorções  que  são impostas  ao  homem,   seria  possível vivermos  essa complementaridade saudável dentro de nós.

Leva-nos também a pensar como poderíamos  contribuir para  que o cliente pudesse inverter  essa distorção, ou percebê-la   melhor e, a partir disso, ter mais elementos para arriscar  sair  da paralisação, do niilismo, da má consciência e do ressentimento e reencontrar, dentro de si, sua força e o seu poder para tornar-se um humano mais pleno.

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OBRAS CONSULTADAS:

1-  Deleuze, G. – Nietzsche e a Filosofia – RÉS-Editora Lda.Porto. Portugal
2-  Deleuze, G. – Nietzsche – Edições 70, Lda.  Lisboa . Portugal-1990
3-  F. Nietzsche-Obras Incompletas-AbrilCultural-Os Pensadores/VolXXXII/1974