UM MÉTODO HISTÓRICO & UMA PRÁTICA PSICOTERÁPICA

Psicoterapia / Teoria e Prática

José Luiz Belas

Niterói

1995

Graduado em Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ

Pós-graduado (lato sensu) – Especialização em Teorias e Práticas Psicológicas em Instituições Públicas Área II – Ambulatorial, na Universidade Federal Fluminense – UFF

 

SUMÁRIO
RESUMO………………………………………………………………. 1
INTRODUÇÃO……………………………………………………….. 1
A NOVA HISTÓRIA…………………………………………………. 1
UMA PROPOSTA PSICOTERÁPICA E ALGUMAS IDÉIAS
DE UM HISTORIADOR DA “NOVA HISTÓRIA”…………….4
UMA PRÁTICA CLÍNICO-HISTÓRICA………………………..18
ESQUEMA BASICO DE UMA SESSÃO DE RPHP…………. 34
CONCLUSÃO………………………………………………………… 59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………… 61
OUTRAS OBRAS CONSULTADAS E SUGERIDAS……….. 62

RESUMO

A partir de uma vivência clínica de mais de 12 anos, utilizando um método terapêutico baseado na recapitulação sistematizada da história do cliente, o autor apresenta, no presente trabalho, uma comparação desta metodologia clínica com o método histórico, que alguns historiadores, e, em particular Paul Veyne, utilizam. Com isso, tenta mostrar uma possível correlação entre esses dois saberes.

I- INTRODUÇÃO

Na prática clínica, a história do cliente é fundamental para que o profissional atue. Seria quase impossível, para a maioria das abordagens terapêuticas, um estudo de caso, um tratamento psicoterápico sem se fazer um “histórico”.

Por outro lado, a maneira de se fazer o levantamento dessa história costuma seguir a mesma metodologia que norteia o que se poderia chamar de história tradicional e é baseada no acúmulo de fatos, de fragmentos de vivências daquela pessoa.

O objetivo desse “inventário”, quase sempre, é se obterem muitas informações, para, no fim, se chegar a um diagnóstico, a uma explicação, a uma causa que poderia justificar o comportamento inadequado do paciente.

No meu trabalho clínico, tenho tentado, desde 1984, utilizar essa história de modo diferente e, quando tive aulas sobre metodologia, no curso de pós-graduação da UFF, em 1994, e sobre estratégias clínicas em instituições públicas, surpreendi-me ao perceber que venho desenvolvendo um método de trabalho que utiliza a história do cliente, de modo muito parecido com o que se denomina, atualmente, de Nova História. Uma novidade para mim.

É sobre essa história e sobre o meu método que pretendo falar no presente trabalho.

II – A NOVA HISTÓRIA

Inicialmente, falarei um pouco sobre essa “Nova História”. Ela é:

(…) a história associada à chamada École des Annales, agrupada em torno da revista Annales: économies, societés, civilisations (Burke, 1992, p. 9).

Uma de suas características é o interesse por todas as atividades humanas.

Como disse Haldane (BURKE, 1992, p. 11):

Tudo tem uma história, tudo tem um passado, que pode, em princípio, ser construído e relacionado ao restante do passado.

Nas últimas décadas, vimos surgir uma ideia que considera que a realidade é social ou culturalmente constituída, e o que, até então, era considerado imutável, passa a ser visto como sujeito a variações, tanto no tempo quanto no espaço, daí se poder falar sobre várias histórias, tais como a da infância, a da loucura, a dos gestos, a dos odores, a do corpo…

Como acentua Burke (1992):

A base filosófica da nova história é a ideia de que a realidade é social ou culturalmente constituída.

Uma outra característica dos novos historiadores, e chamamos atenção aqui para esse ponto, que nos interessa de modo especial, devido à própria ideia que tentamos apresentar nesta monografia, é que, se eles estão mais preocupados que os antigos historiadores com uma gama mais vasta de atividades humanas, como decorrência disso, passam também a examinar com mais cuidado uma maior variedade de evidências: visuais, orais, estatísticas…

Em relação aos dados estatísticos quantitativos, os novos historiadores passaram a utilizar uma metodologia em que a medida passa a ser um aspecto de grande relevância para a compreensão dos fatos históricos, e, em 1987, chegou a ser fundada uma associação, na Grã-Bretanha, que teve o nome de “Associação para a História e Computação”.

A Nova História está mais preocupada com a análise das estruturas do que com uma narrativa dos acontecimentos.

O que importa são as mudanças de longo prazo (la longue durée) (Conf. Braudel, apud Burke, 1992).

Enquanto a história tradicional se centrava nos grandes fatos dos grandes personagens, a Nova História e os novos historiadores se preocupam com as opiniões das pessoas comuns e com sua experiência da mudança social, com a história das mentalidades coletivas ou dos discursos e das “linguagens”.

A história tradicional se baseava exclusivamente em documentos. Hoje, questiona-se a limitação que essa posição trouxe ao conhecimento de uma grande variedade de atividades humanas, que poderiam ser examinadas através de evidências visuais, orais e estatísticas, sobre o que nos referimos linhas atrás.

Na Nova História, observa-se uma preocupação tanto com os movimentos coletivos, quanto com as ações individuais, tanto com as tendências, quanto com os acontecimentos.

Também se questiona o posicionamento tradicional de que a História é objetiva, e deve apresentar aos leitores os fatos como eles realmente aconteceram. Esse ideal é considerado, pela Nova História, como irrealista, pois,

(…) não podemos evitar olhar o passado de um ponto de vista particular. E mais, ‘nossas mentes não refletem diretamente a realidade. Só percebemos o mundo através de uma estrutura de convenções, esquemas e estereótipos, um entrelaçamento que varia de uma cultura para outra’ (Burke, p. 15).

Essa tendência, que ficou mais evidenciada nos anos 70 e 80, como uma reação ao paradigma tradicional da história, atingindo historiadores de vários países, na realidade tem uma origem bem mais antiga e, para muitos, associa-se a figuras  tais como Lucien Febvre e Marc Bloch, fundadores dos Annales, em 1929 e, mais tarde, Fernand Braudel.

Nessa mesma época, na Grã-Bretanha, L. Namier e R. H. Tawney apresentaram ideias que se aproximavam da proposta da Nova História.

Em 1900, Karl Lamprecht expressa seu desafio ao paradigma tradicional. Em 1912, James Harvey Robinson publica um livro com o título A Nova História, e, em relação ao método, este autor diz:

A nova história vai servir-se de todas aquelas descobertas que estão sendo feitas sobre a humanidade pelos antropólogos, economistas, psicólogos e sociólogos (Confira Burke, A Escrita da História,1992, p. 17).

Se caminharmos um pouco mais para trás no tempo, encontraremos sociólogos como Comte, Spencer e Marx, que eram interessados nas estruturas das histórias, mais do que nos acontecimentos. E, ainda mais para trás, o movimento internacional para a escrita de uma história

(…) relacionada às leis, ao comércio, à ‘manière de penser’ de uma determinada sociedade, com seus hábitos e costumes, com o espírito da época (Burke, p. 18-19).

Como nos mostra P. Burke,

(…) o novo paradigma também tem seus problemas: problemas de definição, problemas de fontes, problemas de método, problemas de explicação (p. 20).

Esse mesmo autor ressalta, ainda mais, que:

(…) os maiores problemas para os novos historiadores, no entanto, são certamente aqueles das fontes e dos métodos (Burke, p. 25).

No presente documento, vou apresentar um método que tenta trabalhar sobre as fontes históricas do sujeito. Um método que procura estudar uma pessoa através de sua história, utilizando, para isso, diversos recursos que viabilizam um contato mais confiável do cliente com vivências que foram significativas e, de certo modo, determinantes para a estruturação e a construção de seu modo de ser na atualidade.

Tal método se aproxima, em suas bases e premissas, do histórico, como é pensado, hoje, pelos “novos historiadores”. Ele se preocupa com a possibilidade de se chegar a compreender como uma personalidade[1] vai sendo estruturada ao longo do tempo, como tal compreensão pode favorecer o surgimento de sua reestruturação, e, através disso, surgirem novas formas de ações que provoquem mudanças na relação entre a pessoa e o mundo que a cerca, de modo mais construtivo para si, escapando de formas tradicionais e fixas de comportamento, as quais lhe foram impostas, na maior parte das vezes, de maneira sutil, pelo ambiente no qual foi criada.

Como nos diz L. Febvre,

(…) o indivíduo é sempre o que permitem que ele seja tanto a sua época quanto o seu meio social (apud MOTA, 1992, p. 112).

Na página seguinte, o mesmo autor nos fala:

Se, em todo indivíduo, deve-se distinguir inicialmente uma certa pessoa caracterizada, de modo mais ou menos nítido, por um conjunto de traços que lhe pertencem propriamente, e cuja reunião se faz segundo uma fórmula e com uma dosagem particular; se,  em seguida, deve-se apreender nesse mesmo indivíduo um representante da espécie humana portador das mesmas características distintivas que os membros de um certo grupo dessa espécie – e, principalmente, um participante de uma sociedade bem determinada e datada: de um lado atenua-se singularmente o contraste entre o indivíduo e a sociedade, já que não se trata mais de opor esquematicamente um ao outro; de outro lado, o método de investigação, quando se trata do indivíduo, começa a se delinear de modo nítido.

Tentarei deixar mais clara a relação entre minha proposta “metodológica” e o modo como a Nova História aborda seu campo de estudo. Para isso, talvez fosse pertinente citar C. Blondel, quando, na sua Introduction à la psychologie collective, explica o que poderíamos identificar como um dos objetivos perseguidos tanto pelos novos historiadores, quanto pelo meu método:

(…) descrever os sistemas mentais próprios de cada um, e analisá-los, tanto quanto possível, procurando-se apreender o mecanismo de sua elaboração, o jogo de seu desenvolvimento e a natureza das relações que ligam entre si seus elementos (Cf. BLONDEL, apud MOTA, 1992, p. 114).

III- UMA PROPOSTA PSICOTERÁPICA E ALGUMAS IDEIAS DE UM      HISTORIADOR DA “NOVA HISTÓRIA”

Depois de pensar um pouco em como fundamentar o meu trabalho do ponto de vista da metodologia, cheguei à conclusão de que nada melhor para isso do que focalizar o trabalho de Paul Veyne, refletir sobre o que esse autor nos fala sobre a história, e tentar fazer um certo paralelo entre o que ele apresenta como característico da Nova História e o que considero como característico do meu trabalho terapêutico, quando utilizo o método de Recapitulação Progressiva da História Pessoal (RPHP).

Para que a leitura fique menos cansativa, já que serão muitas as citações que farei, proponho que todas, as que vierem entre aspas, neste item, sejam entendidas como palavras de Paul Veyne, no seu livro Como se Escreve a História.

Como tentarei deixar claro em outra parte deste trabalho, a psicoterapia, em resumo, é um debruçar-se, tanto do cliente quanto do terapeuta, sobre a história do cliente, sobre a história do terapeuta, sobre a história da relação entre eles.

Considero que a maneira de se fazer história, mais recentemente, se assemelha ao modo como algumas escolas psicológicas tentam fazer psicoterapia. Nesse sentido, por exemplo, o conceito de evento é um dos principais que marca o modo novo de se abordarem os dados históricos.

Como nos diz aquele autor:

“A história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso” (p. 11).

Diria eu:

A psicoterapia é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso.

O conceito de evento, entretanto, traz consigo uma questão interessante que é o modo como o entendemos na atuação terapêutica. Há uma defasagem entre a experiência vivida (o evento propriamente dito) e a reflexão sobre ela.

Só apreendemos um evento através de documentos, de indícios, o que cria possibilidade de múltiplas interpretações de um mesmo fato histórico.

“Por essência, a história é conhecimento mediante documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em fotomontagem e não mostra o passado ao ‘vivo‘, como se você estivesse lá” (p. 12).

Surge, aí, um outro paralelo: quando uso o RPHP, lanço mão de vários tipos de documentos e , através deles, procuro ir além desses dados estáticos em busca de algo que tais indícios nos apontam. Assim, a proposta de caminhar através do tempo, em busca de dados significativos, que nossa memória reserva no mais recôndito de si, é, como costumo dizer, um ‘catar pedras’, é um caminhar sem direção prévia, ir, abandonar-se.

Também quando peço aos clientes que peguem seus álbuns de fotografia, objetos antigos que a família ainda guarda, e que pertenceram a eles, estamos tentando resgatar documentos concretos do passado. Entretanto, o que pretendo com isso é ter somente pontos de partida, pontos de desencadeamento de lembranças, uma maneira de dar concretude a sentimentos, emoções, vivências, que foram experimentadas.

Sei que não teremos condições de ‘viver’ novamente o passado, e até acredito que, mesmo se isso pudesse acontecer, tal ‘revivência’, de pouca coisa nos serviria (a mim e ao cliente). O que me importa, realmente, é tornar o passado o mais claro possível, o mais compreensível possível, de modo que o presente receba igual clareza, beneficie-se com a novidade que surge a partir de uma “re-visão” dos documentos, que são resgatados naquele retrocesso.

O cliente que, até então, ao olhar para seu passado, só conseguia vê-lo de modo estático, cristalizado, no momento em que conseguimos explorá-lo de maneira a permitir outras visões dos fatos acontecidos, outras composições desses mesmos fatos conhecidos, muitas vezes dados simples que compõem o seu cotidiano, começa a ficar diante de um quadro novo, que lhe permite perceber-se, com surpresa e curiosidade, de modo também novo.

Em relação ao que disse no parágrafo acima, o autor que estamos focalizando nos diz:

“Um evento destaca-se sobre um fundo de uniformidade; é uma diferença, algo que não poderíamos conhecer a priori: a história é filha da memória” (p. 12).

E, mais adiante:

“(…) a banalidade do passado é feita de pequenas particularidades insignificantes, que, ao se multiplicarem, acabam por compor um quadro bem inesperado” (p. 13).

O recapitular a história de uma pessoa não significa repetir acontecimentos, mas, sim, tentar criar condições, para que, ao retomar um momento de sua vida, ela se possa dar conta de uma dinâmica envolvida na estrutura de seu comportamento, quando colocado em situações semelhantes. Ela não vive, de novo, o passado. Ela sabe que o que experimentou, na segunda vez, é uma nova experiência. Só ela pode reviver, repetir sua história, mas, mesmo assim, por mais fiel que possa ser a reprodução de um passado, o segundo momento, a recapitulação, será sempre um “outro” momento.

“(…) que dois acontecimentos se repitam, ainda que se repitam exatamente da mesma forma, é uma coisa; que continuem sendo dois é outra, e é o que conta para o historiador” (p. 14). “(…) a história nunca se repetiria, mesmo que vivesse a contar a mesma coisa” (p. 14).

Acho importante chamar atenção para essa maneira de encarar a história, pois, comumente, as pessoas pensam no RPHP como uma forma de regressão, de revivência do passado. Nada mais distante para mim do que a ideia de estarmos trabalhando com regressão, no sentido em que essa técnica é conhecida vulgarmente.

Acredito que o importante não é voltar no tempo, mas nos situarmos no tempo. É importante entendermos que estamos falando de dois momentos distintos, o hoje e o ontem. Por isso, o choro que estamos vivendo hoje não tem nada a ver com o de ontem, ainda que esteja nele implicado um fato semelhante: uma lembrança de uma situação triste, que provocou muita emoção.

O evento, a lembrança de tal situação, os elementos que estão a ela ligados, todo o contexto no qual ocorreu aquela vivência de tristeza produzem, novamente, a manifestação daquela emoção, no caso, o choro.

Compreender o choro, entendo que seja sempre compreender aquele choro, daquele momento, daquela pessoa que está chorando, pelas razões que são somente dela.

Uma outra questão com a qual me deparo, e que sempre suscita perguntas e dúvidas a quem lê o que escrevo, é a seguinte: se, numa recapitulação de uma história pessoal, não é possível relembrar tudo o que se viveu, como, então, se poderá pensar em recapitular, se há espaços entre as lembranças? Esses espaços não fazem parte da história? Que importância há nesses intervalos? O que é realmente significativo a ser lembrado? Que critério se usará para se considerar importante ou não um fato rememorado?

Bem, vamos por partes.

Veyne nos fala da “natureza lacunar da história” (p. 18), e, através dele, talvez seja mais fácil responder a algumas perguntas que me fazem.

Diz aquele autor:

“(…) constatamos, simplesmente, que o caráter heterogêneo das lacunas não nos impede de escrever algo a que se dá, ainda assim, o nome de história (…)” (p. 18).

E, mais à frente um pouquinho:

“Mas, o mais curioso é que as lacunas da história fecham-se espontaneamente a nossos olhos e que só as discernimos com esforço, tanto são vagas as nossas ideias sobre o que devemos, a priori, esperar encontrar na história, de tal modo a abordamos desprovidos de um questionário elaborado. Um século é um branco nas nossas fontes, e o leitor mal sente a lacuna. O historiador pode dedicar dez páginas a um só dia e comprimir dez anos em duas linhas: o leitor confiará nele, como um bom, e julgará que esses dez anos são vazios de eventos.”

Esse ponto é muito significativo para a RPHP, já que, ao pretendermos trabalhar com a história da pessoa, esbarraremos com espaços “vazios” durante todo o processo terapêutico, durante toda a recapitulação.

Não me preocupo com a sucessão dos fatos. As lacunas existem e o fato de existirem não atrapalha o processo. Considero que, ao se lembrar de fatos assados, o sujeito “seleciona” as lembranças, mas isso não impede o surgimento de um sentido maior, mais abrangente, que liga os “pedaços lembrados” e traz uma dimensão que nos interessa particularmente, que é a compreensão de um “modo de agir” que acabou sendo construído no sujeito, por meio de uma combinação especial de acontecimentos ligados à sua vida.

“Os fatos não tem dimensões absolutas “(p. 20).

Na realidade, um fato que, ao ser contado pelo cliente, possa parecer ao terapeuta como insignificante, pobre, ao contrário dessa sua maneira de perceber, poderá ser de extrema importância no desencadeamento de maneiras de agir do cliente. Por isso, cada fato apresentado, lembrado, trazido para fora para ser apreciado, visto, pensado, é igualmente significativo, tem o “mesmo peso”, o mesmo valor.

“No entanto permanece a impressão de que a guerra de 1914 é, ainda assim, um acontecimento mais importante do que o incêndio do Bazar de Caridade ou do que o caso Landru; a guerra é história, o resto é notícia de jornal. Isso não passa de ilusão (…)” (p. 20).

É! Ainda muitos de nós, terapeutas, não conseguem dar os mesmos pesos e medidas aos fatos. Ainda hierarquizamos, sem nos darmos conta de que o que associa um fato ao outro é dificilmente detectável, avaliável…

“Quando muito, pode-se pensar que certos fatos são mais importantes que outros, mas mesmo essa importância depende, totalmente, dos critérios escolhidos por cada historiador e não tem uma grandeza absoluta” (p. 20).

A minha tentativa de procurar, com o cliente, fatos que nos possam nortear na compreensão de como ele chegou a ser o que é (uma grande pretensão minha, sei disso), encontra ressonância também em Veyne, quando ele nos diz:

“Ora, quanto mais se alarga, a nossos olhos, o horizonte factual, mais ele parece indefinido: tudo o que compõe a vida quotidiana de todos os homens, inclusive o que só um virtuose do diário íntimo discernira nela, tudo isso constitui, de direito, caça para o historiador, pois, em que outra região do ser que não na vida quotidiana, dia após dia, poderia refletir-se a historicidade?”

E o autor explica, mais adiante, o significado disso:

“(…) significa que um acontecimento só é conhecido mediante indícios e que qualquer fato da vida de todos os dias é indício de algum evento (quer esteja catalogado, quer durma, ainda, na floresta do não-factual)” (p. 21).

Quando disse, logo acima, que tenho consciência de que é muito difícil a compreensão dos fatos, por eles carregarem elementos que escapam à nossa capacidade de penetração na realidade de cada pessoa, a qual nos traz um material tão particular, que diz respeito somente a ela, como diz Veyne: “linhas tão idiossincrásicas” (p. 22), não estou abandonando essa proposta nem considerando que, por ser um caminho difícil, não seja um caminho promissor.

Embora escutar o que o cliente nos relata, tentar ver cada fato narrado como um universo imenso, procurar entender cada fato a partir de uma ideia que nos ajude a percebê-lo como um elemento que compõe algo maior, saber que cada relato de acontecimentos expressa uma forma particular de vivenciar uma realidade, que também é profundamente particular, enfim, ter isso tudo sempre muito presente e claro para nós, que estamos vivendo aquele momento de encontro com o cliente, possibilita um “chegar perto”, o mais possível, do universo do outro.

Nunca poderemos viver o universo do outro, mas, quanto mais perto pudermos estar dele, maior a nossa compreensão de suas narrativas.

“Um acontecimento só tem sentido dentro de uma série, e o número de séries é indefinido, elas não se ordenam hierarquicamente e veremos que também não convergem para um geometral de todas as perspectivas. A ideia de história é um limite inacessível, ou antes, uma ideia transcendental” (p. 23/24).

Que interesse tem isso tudo para nós? Na realidade, quando me estou propondo usar um método histórico, não me posso iludir com a ideia de que vamos juntar fatos (documentos, indícios) sobre a vida do cliente, e, a partir daí, explicar como ele acabou sendo “construído”. O recolhimento de fatos, de uma série deles, jamais nos dará condição de afirmar nada sobre o cliente, sobre os porquês de seu modo de ser. Entretanto, quando podemos ter uma visão de uma sucessão de fatos que foram ocorrendo ao longo de um período extenso da vida do cliente, e que tais fatos sugerem um entrelaçamento entre eles, isso passa a iluminar nossa compreensão sobre a dinâmica mais característica de seu modo de agir, de funcionar, de existir… aí, então, estamos diante de algo novo, relativamente ao que aflige o cliente. É como se pudéssemos chegar mais próximo de um movimento, de algo que é fluido, que escapa das mãos, mas não do “sentir”.  Isso, que denomino aqui de movimento, talvez possa ser chamado de “devir”.

“A todo momento, dão-se acontecimentos de toda espécie e o nosso mundo é o do vir a ser” (p. 25).

O que faz com que esse mundo do vir a ser se transforme para algumas pessoas num “pesadelo que virá a ser”?

O que acontece quando uma pessoa procura uma ajuda psicológica para se “livrar do pesadelo”?

Acredito que os fatos têm uma organização. Penso que, por vários motivos, os fatos de nossa vida sofrem, muitas vezes, um processo de desorganização, o que acarreta um sentimento de desconforto interno, de “desequilíbrio”, o que provoca a sensação de que algo não vai bem, que não conseguimos compreender o que vai mal, mas não temos dúvidas de que, indiscutivelmente, há algo “errado” no nosso modo de ser, de existir… A vida nos parece estranha, desagradável, insatisfatória… Nesse momento, estamos vulneráveis à ajuda. Sentimos que precisamos “arrumar a casa”.

Sei que estou, ao dizer isso, partindo de um ponto de vista profundamente discutível e aparentemente simplista.

Algumas pessoas poderão replicar: essa atitude de busca de ajuda é algo que caracteriza uma classe social, um grupo minoritário, um grupo “psicologizado”… Creio que não! Mesmo em grupos culturalmente diferentes das classes médias e acima da média, em grupos que vivem uma realidade social e econômica bastante distante daquela dos nossos clientes de consultórios particulares, podemos perceber a “busca” de ajuda. Ela se dá, isso sim, de formas diferentes.

Em meu trabalho em ambulatório público, tenho percebido que pessoas bastante diferentes dos clientes de consultório particular, que vivem uma realidade social e econômica bem baixa, também falam de seus sentimentos de “desequilíbrio” de suas “desorganizações internas”. Seus discursos são diferentes, mas seus pedidos, semelhantes.

Veyne nos diz:

“Os fatos têm uma organização natural, que o historiador encontra pronta, uma vez escolhido o assunto que é inesgotável; o esforço do trabalho histórico consiste, justamente, em reencontrar essa organização” (p. 27).

Poderíamos pegar a frase acima, fazer nela algumas alterações, e também dizer:

Os fatos narrados pelo cliente têm uma organização natural, que o terapeuta encontra pronta, uma vez abordado um tema, que é inesgotável; o esforço do trabalho terapêutico consiste, justamente, em reencontrar essa organização.

Em outras palavras, poderíamos dizer que o papel do terapeuta, tal como o do historiador, deveria ser o de reencontrar a trama que envolve os fatos que são relatados.

“Os fatos não existem isoladamente, nesse sentido de que o tecido da história é o que chamamos de uma trama, de uma mistura muito humana e muito pouco ‘científica’ de causas materiais, de fins e de acasos (…) o fato nada é sem sua trama” (p. 28).

“Os historiadores narram tramas, que são tantas, quantos forem os itinerários traçados livremente por eles, através do campo factual bem objetivo (o qual é divisível até o infinito e não é composto de partículas factuais); nenhum historiador descreve a totalidade desse campo, pois um caminho deve ser escolhido e não pode passar por toda parte; nenhum desses caminhos é o verdadeiro ou é a História” (p. 30).

Esta frase acima é muito propícia para localizar um pouco a minha trajetória terapêutica. Ela nos ajuda a perceber que uma perspectiva de terapia dentro de uma metodologia histórica corresponde, tão somente, a uma maneira de traçar um itinerário através de um campo factual (o universo do cliente).

A noção de acontecimento leva-nos a pensar na impossibilidade de se esgotar o conhecimento sobre alguma coisa, qualquer que seja ela. Desmistifica as ideias da busca de um conhecimento pleno sobre algo.

Em meu método, tenho consciência da limitação do conhecimento e, por isso, mesmo que pretenda conhecer, compreender a história do sujeito, será esse um processo profundamente limitado. A maneira como Veyne fala sobre acontecimentos esclarece bem o que penso também a respeito:

“Os acontecimentos não são coisas, objetos consistentes, substâncias; eles são um corte que realizamos livremente na realidade, um aglomerado de procedimentos em que agem e sofrem substâncias em interação, homens e coisas” (p. 30).

A seguir, acrescenta:

“Os acontecimentos não existem, com a consistência de um objeto concreto. É necessário acrescentar que, não importa o que se diga, não existem também como um ‘geometral’; prefere-se afirmar que eles têm existência em si mesmos como um cubo ou uma pirâmide: nunca percebemos todas as faces de um cubo, ao mesmo tempo, só temos um ponto de vista parcial; em contraposição, podemos multiplicar esses pontos de vista. Assim se passa com os acontecimentos; sua inacessível verdade integraria os inumeráveis pontos de vista tomados e teriam todos sua verdade parcial” (p. 31).

Essas duas últimas citações acima ajudam-me a esclarecer, também, um posicionamento meu em relação ao material que é recolhido nas sessões: tudo o que é trazido pelo cliente é somente uma parte, um pedaço de uma realidade segundo a visão dele. É essa visão que parece estar truncada ou limitando sua mobilidade no seu mundo.

Relatar o que lembra, entender o que lembra, perceber o que sente ao lembrar, entender que essa é uma forma de ver sua realidade, descobrir que pode também vê-la por outros ângulos, compreendê-la através de outros referenciais, etc., provavelmente crie alternativas de vinculação com o real, com a realidade do cliente.

Quando uma pessoa fala sobre suas dificuldades (sejam elas de que ordem forem), temos a impressão de que relata um acontecimento que começa e termina nela mesma. O máximo que pode acontecer é buscar, num passado imediato, algumas causas para seu sofrimento (ou não sofrimento). A consciência de passado é muito relativa e poder-se-ia dizer que, quase sempre, ela não costuma correlacionar o que ocorre hoje com seu passado remoto, a não ser quando se trata de um cliente “psicologizado”.

Veyne nos fala sobre a questão de a consciência ignorar a história. Isso me chamou a atenção e me ajudou a compreender um pouco o que era tão comum vivenciarmos nas sessões.

“A consciência espontânea não possui noção de história, que exige uma elaboração intelectual” (p. 43).

Na realidade, ao propor o RPHP ao cliente, estou convidando-o para participar de uma atividade intelectual.

“O conhecimento do passado não é um dado imediato, a história é um domínio onde não pode haver intuição, mas somente reconstrução, e onde a certeza racional dá lugar a um saber real cuja fonte é estranha à consciência” (p. 43).

O capítulo 6 do livro Como se Escreve a História traz um tema profundamente importante para mim: a compreensão.

Poderia mesmo afirmar que, possivelmente, este tema é o mais central dos que compõem o método RPHP.

Em linhas anteriores, disse que meu objetivo era compreender a trama, mas é provável que não tenha deixado isso suficientemente claro.

Nossa formação acadêmica, desde os primeiros anos de escola, nos ensina que o mundo é explicável, que para tudo há uma causa. Somos levados, desde cedo, a ver a realidade dessa maneira e inquietamo-nos diante de todos os fatos que não se tornam compreensíveis para nós.

Explicar o porquê das coisas também é um objetivo, quando se fala em história. Ela não se contenta em ser apenas uma narração, e acha que deve explicar. Todavia, a explicação histórica

“(…) não é mais que a maneira de a narração se organizar em uma trama compreensível” (p. 51).

Também na RPHP, meu objetivo não é “explicar”, no sentido que é dado a esse termo nas ciências físicas, mas, sim, compreender as tramas, através da organização das narrativas do cliente.

Meus clientes, às vezes, quando começam a utilizar o RPHP, perguntam se, através desse método, chegarão a saber quais são as causas que provocam seu mal-estar psíquico. Quando tento esclarecer que não tenho como meta descobrir as causas de seu problema, mas sim procurar compreender como é a dinâmica do surgimento e do desaparecimento do seu sofrimento, ele, quase sempre, se decepciona. Só vai valorizar essa proposta mais para o meio do processo, quando começa a ver como a coisa acontece na prática.

Como escreve Veyne (p. 85),

“(…) a história aparece como uma simples descrição do que se passou; explica como as coisas aconteceram, faz compreender”.

Esse meu objetivo, ainda que suscite uma série de questionamentos quanto à sua eficácia, tem-me mostrado que, quando uma pessoa, através da exploração de sua história pessoal, começa a perceber seu modo de funcionamento, ainda que não chegue a saber por que funciona daquele jeito, adquire uma potência para mudar alguns hábitos formados, e, com isso, inicia um processo de mudança construtiva, que acarreta reformas interessantes no seu antigo modo de viver e entender a vida.

Há pouco, num de nossos encontros no grupo de estudos sobre o RPHP, uma psicóloga, colega nossa, levantou uma hipótese sobre a mudança que ocorre a partir do nosso método, como decorrente, além da reorganização dos fatos vividos, do trabalho expressivo, que utilizamos entre as técnicas aplicadas durante as sessões de recapitulação.

Acredita ela que, possivelmente, pelo fato de utilizarmos a produção gráfica, a imaginação, a criatividade, etc., o paciente tenha a oportunidade de integrar os “dois cérebros” que possuímos. Dessa forma, uma integração do racional com o intuitivo se formaria e, com ela, uma compreensão do self bastante diferente daquela que ele possuía antes de vivenciar aquele método.

Ainda não posso, com muita segurança, afirmar sobre o como isso acontece na estrutura do sujeito, mas tenho constatado, na maioria, que ele sai do círculo vicioso no qual se encontrava. Costumo chamar esse círculo vicioso de “rigidez móvel”, sintoma único a todos os clientes que nos procuram.

Acredito que a descoberta, pelo cliente, da existência do que Veyne chama de “histórias compossíveis” (p. 60) possa também estar na base do que dispara nele a possibilidade de “mudar de curso”:

“A história é cheia de possibilidades frustradas, de acontecimentos que não se realizaram; ninguém será historiador se não perceber, em torno da história que se produz realmente, uma multidão indefinida de histórias compossíveis, de ‘coisas que podiam ser de outra maneira’”.

Uma outra colocação desse autor é por mim aceita, em função do que vejo acontecer no dia a dia da clínica. Refere-se ao medo da mudança.

Algumas pessoas não conseguem entender por que alguém que está sofrendo psicologicamente não consegue mudar seu padrão de comportamento. Consideram que uma sugestão dada a uma pessoa que precisa de “orientação”, desde que seja um conselho bem arrazoado, inteligente, pertinente… pode ser o bastante para que o sujeito abrace aquela ideia e mude a direção de seu caminho. Claro que a coisa não é tão simples assim, e que, mesmo que o cliente saiba que uma determinada sugestão pode ser excelente, isso pode não ter força bastante para que ele resolva mudar.

A pessoa, nessas circunstâncias, pode “ver” com a razão, mas temer o que ele desconhece, ou, em outras palavras, o que ele teme é o que surgirá após sua decisão de mudança de caminho.

“Existe o desconhecido quando se ignora até mesmo quais são as eventualidades e qual tipo de acidente pode acontecer: assim quando se coloca, pela primeira vez , o pé no solo de um planeta que não se conhece” (p. 75).

Na mesma página, acrescenta:

“(…) o homo historicus tem horror ao desconhecido”.

Entretanto, quando conseguimos, gradativamente, dominar um pouco da história do cliente, quando, com ele, começamos a compreender o quê e como se passaram os fatos nos quais esteve mergulhado durante sua vida, mesmo que se possa dizer que, na percepção desses fatos, existam muitos atravessamentos políticos, sociais, familiares, econômicos… mesmo que se possa dizer, também, que o cliente, esse sujeito que ele é, é somente uma abstração, um locus, em que as ressonâncias do que foi vivido se manifestam, mesmo assim, esse compreender provoca uma sensação de coragem, de segurança para desafiar seu próprio mundo, antes tão rotineiro.

A retomada cronológica da história do cliente tem-se mostrado útil para ele, e tudo indica que poder “começar do princípio”, e ir percebendo as lacunas, e ir tentando preenchê-las com hipóteses, funciona como uma forma de retomada de sentido, de revisão de caminhos, de encontrar uma consistência, algo que provoque uma sensação mais de síntese do que de análise.

Veyne, ao falar de retrodicção e de síntese, ajuda-nos a pensar o que experimento junto aos clientes, quando utilizo o RPHP. Diz ele:

“Ora, a história de uma época determinada se reconstitui por colocações em série, por idas e vindas entre os documentos e a retrodicção, e os `fatos` históricos que são, aparentemente, mais consistentes, são, na realidade, conclusões que compreendem uma proporção considerável de retrodicção” (p. 77).

É na página 78 da obra à qual nos estamos reportando, que o autor coloca, de maneira mais explícita, o tema de minha monografia. Refiro-me à ligação entre o método RPHP e o método histórico.

Acredito que, para maior clareza, se torna importante citar um recorte de um longo trecho daquele autor:

“O curso dos fatos não pode, pois, se reconstituir como um mosaico; por mais numerosos que sejam, os documentos são necessariamente indiretos e incompletos; deve-se projetá-los sobre um plano escolhido e ligá-los entre si.

Pouco a pouco, documentos menos lacunares permitem que seja representado o contexto de uma época (nós nos ‘familiarizamos com seu período`), e essa representação permite retificar a interpretação de outros documentos mais lacunares. Não existe aí nenhum ‘círculo vicioso da síntese histórica’; as inferências tropeçam nos dados dos documentos. Mas, se as inferências não vão até o infinito, elas vão, pelo menos, muito longe. Até tecer na cabeça de cada historiador uma pequena filosofia da história pessoal. (…) É essa experiência (no sentido que se dá a de um clínico ou a de um confessor) que se toma para o famoso `método` da história.

O `método` é uma experiência clínica.

Da mesma maneira que o menor fato implica uma enorme quantidade de retrodicções, ele envolve também retrodicções de alcance mais geral que compõem uma concepção da história do homem.

(…) A experiência histórica é, pois, composta de tudo o que um historiador pode aprender aqui e ali em sua vida, em suas leituras e em sua convivência com outrem (…).

(…) a história é essa mistura de dados e de experiência… ela se reconstrói pelo mesmo vaivém de inferências, por meio do qual uma criança constrói pouco a pouco sua visão do mundo que a envolve (…)” (p. 78/79).

Comentários sobre a citação acima

1- A tentativa de reconstituição de um fato passado não se dá por acúmulo de informações sobre ele, tal como um somatório, um mosaico, mas, sim, a partir de uma hipótese que está presente naquele que busca realizar tal reconstituição. Essa hipótese é baseada na sua experiência, no seu contato progressivo com uma série de fatos paralelos, que lhe vão dando condições de “intuir” (mais que deduzir) sobre como aquele passado aconteceu.

2- Tanto os historiadores quanto os clínicos são pessoas que, por estarem em contato continuado, progressivo, com fatos cada vez mais interligados e semelhantes, podem criar uma hipótese compreensiva sobre “como as coisas aconteceram”.

3- O passado é sempre construído pelo historiador-clínico e não redescoberto por ele. O passado é, pois, sintetizado a partir da narrativa histórica, e, portanto, não analisado através dela.

Em alguns trechos do livro de Veyne, mais precisamente nas páginas 80 e 81, esse autor nos traz argumentos interessantes que demonstram que, quando ele diz que a história não tem método, parece pretender afirmar que isso ocorre por ela não se enquadrar no conceito de ciência, tal como é concebido pelo empirismo lógico. Daí, se nesse sentido ela não pode ser considerada uma ciência, também não comporta em si a existência de um método, tal como a ciência oficial o concebe.

Da página 82 até a 88, Veyne nos apresenta uma magistral argumentação, em que situa, muito bem, qual o lugar da história relativamente às ciências, e nessa argumentação, podemos também situar muitos dos nossos objetivos, quando tentamos aplicar alguns conceitos da história em nossa atividade clínica e, especificamente, quando utilizamos o que denominamos de método de recapitulação da história pessoal. Como exemplo do que estamos falando, citaria:

“A explicação histórica não é nomológica, é causal; como causal contém algo de geral: o que não é coincidência fortuita tem vocação para se reproduzir; mas não podemos dizer exatamente nem o que se reproduzirá, nem em que condições. Em face da explicação, que é própria das ciências físicas ou humanas, a história aparece como uma simples descrição do que se passou; explica como as coisas aconteceram, faz compreender” (p. 85).

Uma outra parte interessante do livro de Veyne, que também vem mostrar o quanto se assemelham o pensamento de um historiador da Nova História e o de um psicólogo que se utiliza do método que venho desenvolvendo, é o capítulo 9, cujo título é “A consciência não está na raiz da ação”.

Esse capítulo é interessante, principalmente por iluminar, de modo muito preciso, alguns conceitos, tais como causalidade, compreensão, introspecção, reviver, reviver o passado, conhecer o “outro”, julgamento de valor…

Diz aquele autor:

“No estudo da causalidade que acabamos de ver, não fizemos nenhuma diferença entre a causalidade material (…) e a causalidade humana (…); pois, se considerarmos somente os efeitos, esta diferença não é muito útil: o homem é tão sólido como as forças naturais, e, inversamente, as forças naturais são tão irregulares e caprichosas quanto ele; existem almas de bronze, existem também homens e mulheres cujos caprichos se movimentam como as ondas do mar” (p. 89).

“Não nos podemos colocar no lugar de nossos semelhantes, entrar na sua pele, `reviver` seu passado (…) A compreensão psicológica não permite nem adivinhar, nem criticar; (…) A ideia de que o homem compreende o homem quer dizer somente que dele estamos prontos a crer tudo, como da natureza. A compreensão é uma ilusão retrospectiva” (p. 91).

“A única virtude da compreensão é, pois, nos mostrar o ângulo, segundo o qual toda conduta nos parecerá explicável e banal; mas ela não nos permite dizer, entre várias explicações mais ou menos banais, qual é a boa.”

“De fato, se deixarmos de atribuir à palavra `compreender` o valor de termo técnico que lhe dá Dilthey, e se retomamos o sentido que tem na vida quotidiana, constataremos que compreender é o explicar uma ação a partir do que se sabe dos valores alheios; ou, então, compreender é informar-se sobre os fins de outrem, seja por retrodicção e reconstrução: compreendo sua mentalidade” (p. 92-93) não em julgar, (…) se o que se passou é bem ou mal. “

“(…) a história se ocupa do que foi e não do que deveria ter sido. Os julgamentos de valor em história (…) são julgamentos de valor no discurso indireto: O historiador não pode passar sem julgamentos de valor; (…) mas esses valores são os de seus heróis (…) é o julgamento de valor do discurso indireto. O historiador se limitará a constatar que as pessoas da época julgavam dessa ou daquela maneira; ele pode acrescentar que nós julgamos diferente” (p. 93-94).

“Registrar uma diferença entre valores e os nossos não é julgá-los” (p. 94).

“A evolução atual dos estudos históricos, em todos os países ocidentais, é um esforço para passar dessa história factual a uma história dita estrutural. Essa evolução pode ser esquematizada da seguinte maneira: numa história factual se colocará a pergunta: quais foram os favoritos de Luís XIII?; uma história estrutural pensará, antes de mais nada, em perguntar-se o que era um favorito? Como analisar esse tipo político das monarquias do Antigo Regime, e por que existiram favoritos?” (p. 110-111).

As citações feitas acima praticamente servirão de base para quase tudo o que falarei no item que se segue.

Nele, falarei sobre a prática clínica e, como poderão perceber, ela está completamente mergulhada nessas ideias, de tal modo que é quase impossível se diferenciar o que é proposto pelo clínico e pelo historiador, segundo o enfoque que estamos estudando.

Entretanto, talvez fosse interessante destacar, agora, alguns aspectos principais das ideias do historiador, que têm repercussão no trabalho clínico.

1- Que tipo de ciência o clínico faz? O que ele pode garantir, predizer, em relação ao comportamento de seu cliente? Sua postura deverá ser de acompanhar um processo, ver para onde o rio corre, como corre. Contrariamente ao cientista que se orgulha de saber o que ocorrerá no momento seguinte, após sua ação, o clínico sabe que não há previsibilidade no seu campo de atuação.

2- Há um não sentido em qualquer tipo de julgamento sobre os valores das outras pessoas, principalmente quando tentamos compreender sua “mentalidade”. Um clínico historiador deve-se preocupar em ser fiel ao que se passou, e não em julgar. Isso significa que ele, embora sabendo de seu envolvimento, sua “implicação” no relacionamento com o cliente, saberá que seu julgamento sobre fatos do outro são ilusões no mínimo inúteis. O que ele pode fazer é a constatação da diferença entre seus valores e o do cliente. Registrar diferenças não é julgar.

3- O que se deverá buscar numa relação terapêutica, voltada para a compreensão da história do cliente, não é uma análise dos fatos, mas uma síntese. Não é a explicação de um acontecimento, mas a compreensão de um contexto no qual ele ocorreu e as repercussões dele na estruturação de um modo de organização subjetiva da pessoa que vivenciou tal acontecimento.

IV – UMA PRÁTICA CLÍNICO-HISTÓRICA

Nos itens II e III, apresentei, respectivamente, uma breve exposição sobre a Nova História, sobre o posicionamento de Paul Veyne e a semelhança de sua proposta com o método psicoterápico, que venho desenvolvendo.

Agora, talvez seja interessante apresentar, de modo mais detalhado, o que denomino de RPHP.

Na prática clínico-terapêutica, a história do cliente é a matéria-prima com a qual edificamos nossas teorias.

Entretanto, uma questão quase sempre nos escapa: para que, realmente, serve essa história, a história do cliente? De que modo nos aproximamos dela e com quais teares tecemos nossas conclusões, a partir de seus “fios”?

O que mais se costuma ver é o uso da história do cliente como um meio para se explicar seu problema. Essa história é traduzida, a partir de uma teoria que acredita conhecer as correlações entre aqueles fatos históricos da vida dele.

Tais correlações garantem a explicação do que está acontecendo com aquele indivíduo. A partir daí, chega-se a um diagnóstico, a um conhecimento da realidade do outro, às vezes, a uma sugestão, uma orientação, uma proposta terapêutica… dependendo do enfoque teórico do terapeuta.

Quase sempre, as conclusões a que chegam são baseadas em fragmentos insignificantes de uma realidade infinitamente grande, a realidade na qual aquela pessoa, cuja história se está recolhendo, vive.

Mais ainda, impressiona-nos o modo como muitos profissionais agem diante dos fatos, como se a teoria que eles usam para explicá-los fosse confiável a ponto de fazerem afirmativas que se assemelham a verdades acabadas, definitivas.

Tem-se pouco o hábito de se colocarem em dúvida as afirmações feitas sobre as “causas” que determinam certos comportamentos. Comumente, não há uma postura que poderíamos chamar de “humilde”, diante da grandiosidade dos fatos simples. Não há uma paciência e um olhar ingênuo diante de uma narração que lhe é confidenciada por um paciente. Não há uma confiança no seu discurso: parece que sempre o que ele diz não é exatamente o que queria dizer. Pouco se vê uma intenção de compreender o que se escuta, mas, sim, de explicar o que é narrado.

Quem é essa pessoa diante de você? Essa pessoa que se sente infeliz, que está insatisfeita com a vida que está levando? Ou essa outra que “tem tudo para ser feliz”, mas não consegue realizar sua felicidade? O que significa “ter tudo para ser feliz”? O que é felicidade para o terapeuta? O que é felicidade para o paciente?

Em outras palavras, quais os referenciais, os valores, as crenças, as experiências do paciente? Onde viveu sua infância? Em que época? Em que momento histórico de seu país, de sua família, de seu ambiente em geral? Que tipo de informações recebeu do ponto de vista da religião, da ética, da moral? Como ele foi sendo, aos poucos, construído?

A partir do meu contato com as pessoas que atendo, tenho-me perguntado: o que posso saber e entender sobre essa pessoa que está diante de mim? Quais os determinantes sociais, políticos, econômicos, psicológicos que atuaram na construção dela? Portanto, quem é ela? Quem ela acredita ser? O que tem conseguido fazer com o que ela percebe e reconhece como sendo ela própria?

Quando ela atua num determinado momento, pode considerar-se que está agindo por si mesma ou em função de expectativas que foram criadas em relação à sua pessoa? Ela é dona de si? Se é, por que não consegue modificar um tipo de ação inadequada que repete sempre, como se lhe escapasse o poder de mudar?

Que implicações isto tudo tem para a clínica? Onde o estudo da história de cada pessoa contribui para que o paciente possa organizar seu futuro a seu modo?

Como operacionalizar um método histórico, que tenha como objetivo uma recapitulação da história da pessoa?

Para que uma recapitulação da história da pessoa? O que se espera a partir disso?

Que tipo de benefício um cliente pode obter com tal reconstrução?

As psicoterapias mais conhecidas não se preocupam em organizar a história do cliente por várias razões: umas, de ordem prática, outras, de ordem filosófica, outras, ainda, de ordem epistemológica.

Meu posicionamento, muito pessoal, diga-se de passagem, é que a clínica é soberana, ou seja, a prática clínica nos coloca diante de uma realidade que desafia as teorias conhecidas. E, talvez por isso, existam “muitas clínicas”, reflexo de uma procura de explicação para as realidades dos clientes que nos procuram.

Poderíamos dizer que há uma clínica nietzscheana, uma lacaniana, uma freudiana, uma kantiana, uma heiddegeriana, etc., etc. Em cada uma delas, destacamos um ponto de vista filosófico, ou seja, um modo diferente de explicar a realidade e, por isso, é compreensível a existência de “choques de verdades”, pois, como a realidade se mostra para cada um de nós de forma diferente, ela também nos dá a possibilidade de interpretá-la de várias maneiras.

Em um artigo escrito por mim em 1978, que circulou entre meus estagiários do HEPQ em 1980, tentei levantar essa questão, dizendo o seguinte:

(…) cada cliente diante de nós se mostra como uma grande e nova teoria. Cabe a nós estarmos abertos ao contato com aquele novo universo – único – e nos ‘arriscarmos’ a ficar diante de uma experiência também nova para nós, que poderá até anular todas as outras que já vivenciamos com outras pessoas.

A grande teoria que se nos apresenta diariamente é a história do nosso cliente. O grande desafio que se nos apresenta, no nosso dia a dia, é a compreensão dessa história. Ninguém nunca escreveu sobre aquela pessoa que está diante de nós. Nenhuma teoria a explica inteiramente.

Algumas conseguem explicar aspectos muito gerais do seu comportamento, que são semelhantes em muitas pessoas. Mas de que nos serve isso? De que nos serve saber que as pessoas, em sua maioria, reagem de tal ou qual forma em tais ou quais situações? O nosso cliente está entre aquelas pessoas que reagem daquele jeito? E, se em caso afirmativo, a que nos levaria isso, se considerarmos a totalidade do seu existir?

Na tentativa de encontrar um meio de compreender o cliente, sua história, venho desenvolvendo um método de trabalho que denomino de RPHP (Recapitulação Progressiva da História da Pessoa). Ele vem ganhando forma em meu trabalho clínico, nos últimos anos. Nas linhas a seguir, passarei a descrever algumas de suas características. Considero que alguns aspectos seus estão muito próximos do modo mais atual de se fazer história, ou seja, em consonância com o que hoje se costuma denominar de “Nova História”.

Talvez os historiadores possam discordar desse meu ponto de vista, e, por isso, seria interessante para mim receber um feedback a esse respeito, já que essa área do conhecimento está sendo explorada por mim há pouco tempo.

Parti dos seguintes pressupostos:

1- Uma história do presente pode ser mais bem entendida, mais compreendida, se soubermos um pouco mais sobre o seu passado; tanto o presente nos ajuda a entender o passado, como o passado nos ajuda a compreender o presente.

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Lemos, em P. Veyne (p. 11), uma citação de Cournot:

(…) a curiosidade do homem não tem unicamente por objeto o estudo das leis e das forças da natureza; ela é, ainda, mais facilmente despertada pelo espetáculo do mundo, pelo desejo de conhecer sua estrutura e suas revoluções passadas (…).

Na realidade, essa vontade de conhecer o passado, a estrutura desse passado, o modo como as coisas aconteceram, como se foram modificando até o presente parece ser algo que fascina o homem. Ouvir histórias, saber por que a sua realidade é como é. Saber como termina uma história. Ouvir novelas, ver novelas, ler livros… Tudo isso parece brotar de uma força muito grande que possuímos, que nos fascina, que nos empurra na busca da compreensão do mundo e de nós nesse mundo.

Não vejo por que não comparar a História, que se ocupa com o estudo dos homens, de seu passado, de seu presente, dos movimentos das populações, dos povos, dos seus costumes, de suas culturas… com a história de uma única pessoa. Penso e vejo que os mesmos princípios, que norteiam os métodos da história, se assemelham a alguns que norteiam os de algumas terapias, principalmente as que acreditam que a compreensão da realidade é o melhor meio de lidar construtivamente com ela.

Fato curioso, entretanto, é que, para se entender melhor esse passado, não nos podemos somente lançar em sua direção e distanciarmo-nos do presente. Na realidade, as duas dimensões estão entrelaçadas de forma praticamente indivisível.

A compreensão de um fato do presente pode estar atrelada ao conhecimento de um fato passado. Mas, somente quando se consegue dar ao passado uma dimensão que se estende até o presente, é que ele ilumina o momento atual.

Uma citação de Febvre parece-me bem apropriada:

É preciso que a história deixe de vos parecer como uma necrópole adormecida, onde passam apenas sombras despojadas de substância… Penetreis no velho palácio silencioso onde ela dormita e que, abrindo as janelas de par em par, reacendendo as luzes e reanimando o barulho, acordeis com a vossa própria vida, com a vida quente e jovem, a vida enregelada da princesa adormecida (…) (apud MOTA, 1992, p. 7).

Também uma citação de Belas (1978), que será apresentada na íntegra, mais adiante, ilustra essa ponte passado/presente:

(…) e me leva (o cliente) a conhecer cada recanto de sua morada (seu mundo interior).

É como se eu (terapeuta) deixasse de existir, me perdesse no universo dele (…).

Ele dá um sorriso alegre – encontrou um velho e querido brinquedo esquecido pelo tempo que já longe vai (…).

Seu mundo vai-se tornando também meu.

Posso quase tremer de alegria ou chorar de tristeza, ao “lembrar” de nomes e ao “ver “objetos.

E eu não existo naquele momento (…).

Nas duas citações acima, passado e presente estão juntos.

O passado ganha um colorido que o torna “vivo”, que o presentifica, a ponto de transmitir forte emoção.

Considero esses trechos interessantes, pois retratam muito bem a participação do historiador diante de um fato passado. Como se pode notar, o fato não é estático, ele desperta no historiador o desejo de se situar no ontem, mas vivendo-o como se fosse o hoje, dando-lhe o colorido, o som, o movimento.

Ainda que tal posicionamento possa encontrar muitos opositores, já que pretendo, aparentemente, com ele, afirmar a crença numa possibilidade de reconstituir o passado, presentificá-lo, o que, na prática, é impossível, creio que essa questão vale a pena ser pensada, por ela se mostrar, na prática clínica, muito promissora.

Quando digo “reconstituir o passado”, não estou afirmando que se possa retornar ao passado. Como nos diz Veyne, o historiador tem um limite ao entrar em contato com um evento:

“(…) em nenhum caso, o que os historiadores chamam um evento é apreendido de uma maneira direta e completa, mas, sempre, incompleta e literalmente, por documentos ou testemunhos, ou seja… por indícios” (p. 12).

E, mais à frente:

“Por essência, a história é conhecimento mediante documentos. Desse modo, a narração histórica situa-se para além de todos os documentos, já que nenhum deles pode ser o próprio evento; ela não é um documentário em fotomontagem e não mostra o passado ao vivo ‘como se você estivesse lá’” (p. 12).

O que busco, através do RPHP, é, somente, retomar, recompor, através das memórias, um evento com uma gama bastante grande de elementos a ele associados, de tal maneira que se sinta uma distância mínima entre passado e presente, e na qual a imaginação preencha as lacunas, tanto as que existem dentro do que conta a história, como aquelas que existem dentro daquele que a escuta. Se isso acontecer, poder-se-á dizer que se “viveu” novamente o fato.

É claro que se trata de um “fato novo”, mas esse fato novo carrega em seu bojo, presentificado, o que de essencial existe tanto no passado, como no presente.

2- Uma pessoa tem uma história que começa muito antes de seu nascimento, antes de sua concepção, e, até mesmo, da de seus pais, avós.

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Quando inicio um processo terapêutico, utilizando a RPHP, costumo fazer uma “entrevista” antes da primeira sessão, ou seja, antes de começar, concretamente, a tentativa de recuperação de lembranças da vida do paciente. Nessa entrevista, quase sempre, deparo-me com uma pergunta que me chega com uma certa curiosidade, por parte do sujeito que quer submeter-se a tal método. A pergunta é: “Por onde vamos iniciar a minha história?”

Não me parece difícil perceber que o sujeito é construído pelas histórias que o cercam, histórias essas de “várias idades” e de “vários lugares”. As dimensões tempo e espaço se estendem por várias direções. Em outras palavras, a origem dos pais, o desejo de ter aquela filha, a época em que a criança nasceu, a situação financeira da família, as expectativas em relação ao bebê e ao seu futuro, o fato de ser o primeiro, o fato de ser o terceiro, o quarto… o fato de ser mulher ou homem, o que isso significa para os pais e para a família… enfim, seria impossível esgotar esta lista, já que isso implica num número infinito de possibilidades, de combinações, de valores, de desejos, etc.

Tudo isso determina um olhar que é lançado na direção daquele ser que chega ao mundo, o qual já vem carregando uma quantidade enorme de rótulos, de expectativas, de sonhos alheios.

É claro, também, que, muitas vezes, os pais não se dão conta da existência de tais expectativas e algumas delas só chegam à consciência, depois que eles começam efetivamente uma relação concreta com a criança. Ali, expressam suas frustrações ou suas alegrias diante da filha, seus desejos e planos para o filho, sua indignação por ela não ser como gostariam que fosse…

Uma criança recém-nascida, que de “história oficial” tem poucos minutos, horas, ou meses, já carrega em si uma imensa “história não oficial”, que é a dos seus pais, seus familiares, sua sociedade… pois é através delas que é avaliada, orientada, formada, construída.

Isso dito, podemos responder à interrogação inicial: “Quando começa a história do cliente? “

Ela começa antes de sua concepção.

A história de cada sujeito é herdeira de todas as histórias que a antecederam. Por isso, o ponto proposto para se começar o trabalho, embora fique estabelecido como sendo o momento da concepção, ficará sempre em aberto, já que informações anteriores a esse marco da vida do paciente podem ser profundamente importantes para a compreensão de seu modo de ser, de viver, de estar no mundo, de reagir, de existir, de sofrer, de se alegrar…

3- A compreensão da história de uma pessoa possibilita o surgimento de um “desamarrar-se” do passado, criando condições para que ela possa optar por novos caminhos a serem seguidos no presente.

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Que impede uma pessoa de resolver um problema que a aflige?

Esta é uma questão bastante complexa e talvez resida, aí, o ponto crucial de toda e qualquer terapia: o que significa o sucesso terapêutico, a eficácia do processo, sua potência como método de ajuda psicológica?

Colocando isso de outra maneira, o que é terapêutico na terapia? O que é o problema psicológico, responsável pela vinda do cliente ao gabinete de psicologia?  Ainda mais, num contexto diferente do da clínica particular, o que ocorre, quando estamos numa relação com um paciente de um ambulatório público, tentando ajudá-lo a solucionar suas dificuldades no plano psíquico?

Nossa vivência clínica, tanto com pacientes internados, ou não, em ambulatórios de instituições públicas, quanto com pacientes de consultório particular, leva-nos a acreditar que, neles todos, a possibilidade de compreensão de suas histórias se torna um fator importantíssimo para a superação de suas dificuldades.

Mas, diriam alguns, o paciente de ambulatório, não “psicologizado”, não traz no seu discurso, em sua demanda, uma história tal como é trazida pelo paciente da clínica particular, pois esse último, quase sempre, tem um nível cultural e social que já imprime nele uma forma de pensar que é histórica. Ele já ouviu falar sobre a importância da infância, da educação, do passado, etc., no desencadeamento de problemas psicológicos. As pessoas mais humildes, com pouca formação acadêmica, que chegam aos ambulatórios por estarem “doentes dos nervos”, não atribuem ao passado o peso que aquele outro atribui. Então, os pacientes não “psicologizados” estão mais ligados a situações atuais, do presente. A eles não interessaria o passado, que nem lhes acrescentaria nada.

Nisso tudo acredito que haja é uma grande confusão, um grande engano. O presente, o futuro e o passado são dimensões de uma história, de  um engendramento de modos de pensar e de sentir, que foram construídos em cada um de nós. Quando falo que a história do paciente do ambulatório deve ser compreendida, para que ele se desamarre do passado, não quero dizer que ele precise, fatalmente, lembrar-se de sua infância. Diria o mesmo em relação ao paciente do consultório particular, o “psicologizado”.

Como falei, linhas atrás, o presente contém o passado, e vice-versa, assim como o futuro contém o passado. Refiro-me, aqui, ao passado que pode corresponder a um minuto, uma hora, um dia, um mês, ou mais tempo.

Também não estou preocupado em definir ou descobrir relações causais entre fatos passados e os atuais, mas, sim, compreender a dinâmica que está presente na forma de agir daquele sujeito.

Por tudo isso, considero que compreender a história é uma condição para se potencializar uma mudança na forma de agir, na criação de alternativas de comportamento mais flexíveis, mais eficazes do ponto de vista das reais necessidades do sujeito.

Compreender significa algo muito distante de intelectualizar.

O compreender se dá a nível experiencial.

A compreensão ocorre quando o sujeito pode “viver” o que está sendo compreendido. Isso se passa numa dimensão visceral, total, onde o sujeito está, todo ele, mergulhado no que percebe.

4- Quando uma pessoa consegue, gradativamente, se dar conta de como sua história foi sendo construída, adquire maior capacidade para gerenciar sua vida, para dar a ela novos rumos que lhe sejam mais criativos e “saudáveis”.

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Qualquer profissional da psicoterapia, com um mínimo de experiência clínica, sabe que

não basta o cliente ser informado ou sugerido a mudar sua forma de agir. Não basta que se lhe deem sugestões para andar por “novos caminhos”. Só quando ele vai compreendendo como se engendra, nele, sua maneira de agir, através de sucessões de acontecimentos que ocorrem no seu dia a dia, é que começa a adquirir, de fato e de maneira duradoura, novas alternativas para suas ações e mudanças significativas no seu modo de ser.

Quando afirmo que o se dar conta de como sua história foi sendo construída é uma condição para que ele mude seus rumos, estou querendo chamar atenção para uma atitude muito comum em muitas orientações teóricas, que se caracteriza pela crença de que a mudança possa ocorrer por uma força que seja externa ao sujeito.

As mudanças que ocorrem nos clientes, que vivenciaram um processo terapêutico com êxito, se dão como movimentos que partem de dentro do sujeito. E o que seria esse mudar a partir de alterações internas, que não uma reorganização de seu modo de se perceber e perceber a sua realidade, a sua história?

Muitas situações, por mim vividas na prática clínica, sugerem que, no momento em que o sujeito começa a se dar conta de como sua história foi sendo construída, e as ligações existentes entre situações passadas, as atuais e suas projeções para o futuro, ele ganha uma potência, passa a ter uma atitude de maior segurança em relação às decisões a serem tomadas na sua vida, e começa a modificar seus rumos, aqueles que até então insistia em seguir, mesmo que já se tivessem mostrado não eficazes para a concretização de um modo de vida construtivo para si.

Em outras palavras, ele começa a sair da rigidez e inicia um movimento. No princípio, um movimento lento, cauteloso… Progressivamente, vai testando a nova hipótese e arriscando mudanças.

Quando começa a ver, com mais nitidez, o que se passa dentro de si, nas situações às quais fica exposto no cotidiano, aí, sim, assume “o leme do seu próprio barco”.

Essa caminhada é lenta. Lenta o suficiente, para, muitas vezes, se ter pouca condição de perceber que ela está acontecendo.

É lenta porque é um ir e vir constante. Um andar para frente e correr para trás.

Mudar é sempre muito difícil, pois implica em alterações profundas na visão de si mesmo e do próprio mundo, que cerca o sujeito em mudança.

O sujeito só muda quando consegue estabelecer um outro paradigma confiável, que garanta sua integridade psíquica. Para mim, esse novo paradigma é uma nova compreensão de sua própria história, incluindo-se, aí, obviamente, a maior parte possível do contexto no qual ele está inserido.

5-  Na recapitulação da história de uma pessoa, o terapeuta deve funcionar como um historiador, ajudando-a a perceber, de modo mais pleno possível, as tramas, mais que os fatos, que estiveram marcando sua vida.

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Imagino o quanto o leitor, que ainda não teve a oportunidade de vivenciar uma terapia calcada na metodologia que estou expondo neste documento, possa estar inquieto diante de tudo o que escrevi até aqui. Pode estar perguntando-se se o que tenho falado não é, no fundo, a mesma coisa que todos os terapeutas realizam: escutam a história do cliente e tentam, de algum modo, ajudá-lo a se entender através de intervenções, que, de certo modo, serão sempre novas visões, novas maneiras de perceber o seu mundo.

Os terapeutas não seriam, portanto, os profissionais que contribuiriam para que o cliente pudesse alcançar uma nova versão de sua realidade? E, através disso, contribuiriam, também, para que ele agisse de maneira nova na sua vida?

Talvez, a grosso modo, isso seja verdade.

Mas o que considero diferenciador, no que estou propondo, é o modo de se fazer isso, de se “compreender” para “construir” de novo.

Enquanto terapeuta, não me preocupo em exercer um papel “instituído” de terapeuta. Minha postura não pretende ser a de alguém que “sabe”, um técnico, um especialista…

Se tiver conseguido, até esse ponto em que escrevo esse trabalho, deixar claras minhas ideias principais sobre a possibilidade de se conhecer a realidade, será fácil entender quando digo que não pretendo ser alguém que “sabe”.

Considero esse ponto fundamental para a compreensão de minha proposta terapêutica.

Ainda que não esteja afirmando nada de novo, nada que seja absurdo para aqueles que vivem a prática clínica há algum tempo, essa postura de “olhar ingênuo”, ainda é muito contestada e pouco praticada por um grande número de profissionais “psi”.

Quando falo de “olhar ingênuo” sou comumente criticado, e o argumento que mais lançam contra essa minha ideia é que ela é ingênua, já que, para meus críticos, isso seria o mesmo que fechar os olhos e negar a existência de uma carga imensa de determinantes culturais, sociais, políticos… influenciando nosso “olhar”. Há, em nós, uma subjetividade que nos é imposta, e o nosso olhar será sempre comprometido, “impuro”, “naturalizado”…

Negar tais influências seria negar o óbvio. Somos traídos, a cada momento, por afirmações que contrariam nosso posicionamento filosófico, aquele que conseguimos exteriorizar, e que acreditamos ser, verdadeiramente, nosso.

O que quero dizer é que, ao falar num “olhar ingênuo”, ele não é tão ingênuo assim, como pensam.

Olhar ingenuamente é uma tentativa de não interferir, com idéias “pré-fabricadas”, na história que nos está sendo contada.

O que quero dizer com “ideias pré-fabricadas”? São aquelas que fazem parte da nossa história e não da historia do cliente. Impossível isso! (Dirão alguns.) Isso é o conceito de neutralidade disfarçado. (Completarão.)

E, aí, surge mais uma questão bastante polêmica: como não misturar a história do cliente com a do terapeuta? Neutralidade é ficção!

Não estou falando isso! Acredito que não há possibilidade de neutralidade nas relações humanas, mas acredito, também, que podemos focalizar uma história de um outro e ajudá-lo a “se ouvir a si próprio”. Talvez isso implique num certo treinamento por parte do terapeuta, talvez isso já seja uma característica de algumas pessoas que gostam de escutar pessoas…

A escuta atenta, a possibilidade de esperar com paciência até que alguns relatos façam sentido, um novo sentido, pode ser uma grande contribuição que uma pessoa possa dar a quem se aventura a contar sua própria história para uma outra.

A trama, mais que os fatos. Eis o que busca o historiador. Eis o que deveríamos estar tentando buscar como terapeutas.

Uma sucessão de fatos, uma série de documentos… tudo isso acontecendo num determinado contexto social, familiar, religioso, moral, político… que vai sendo delineado gradativamente, sem precipitações, aos poucos, mostrando um “movimento”, um sentido, algo que começa a poder ser entendido mais concretamente.

O terapeuta é um acompanhante, alguém que participa da remontagem de uma história, que acaba sendo um “quase personagem” dela. A compreensão da trama ocorre praticamente ao mesmo tempo, dentro do cliente e dentro do terapeuta.

Belas (1978) em seu “Eu queria poder dizer-lhes”, documento escrito para os estagiários de Psicologia do Hospital Estadual Psiquiátrico (Jurujuba – Niterói), tenta levantar essa questão, convidando os estudantes em supervisão a pensarem sobre o conceito de “neutralidade” do terapeuta na relação com seu cliente. Dizia ele:

Eu queria poder dizer-lhes, exatamente, o que sinto,

quando UM OUTRO de mim se aproxima

e, com olhar interrogante, se pergunta: onde estou? quem sou?

Queria poder transmitir-lhes minha vontade

de entrar na “casa dele”, habitar ali

e sentir, bem de perto, suas alegrias e pesares.

Seria maravilhoso poder descrever-lhes em tons fortes

minha inquietude na espera de ser convidado a ultrapassar

a porta que separa o seu mundo do meu.

Bom seria também, se vocês pudessem sentir

o sorriso que se abre dentro de mim,

quando abandono minha vida lá fora e

me entrego – todo – à vida dele.

Fico feliz quando ele me toma pela mão

e leva-me a conhecer cada recanto de sua morada.

É como se eu deixasse de existir, me perdesse no universo dele…

– E começa a procura…

Aqui e ali nos desencontramos,

pois a casa tem muitos cômodos e nós não a conhecemos bem.

Ele não tem também muita ideia de como é sua própria casa.

Somos dois exploradores de mãos dadas…

Os dias se passam e, muitas vezes, estamos “parados”,

no mesmo lugar…

Não sabemos por onde ir, o que fazer….

Ele dá um sorriso – alegre – encontrou um velho e querido

brinquedo, esquecido pelo tempo, que já longe vai…

É uma boneca de pano – velha – mas linda!

É um carrinho sem rodas que lhe faz brotar – lá do fundo – uma lágrima de dor.

É um nome – Pedrinho – que faz com que seu corpo todo

seja, de alegria, um tremor só: foi uma época inesquecível! É um olhar fugidio e um ar de tristeza – uma gaiola já enferrujada e vazia.

Seu mundo vai-se tornando também meu.

Posso quase tremer de alegria ou chorar de tristeza ao “lembrar” de nomes e ao “ver” objetos.

E eu “não existo” naquele momento…

Eu “sou’ o outro. Eu vivo muitas vidas além da minha.

Eu me sinto um velho. E eu me sinto uma criança.

Sinto-me eu. Sinto-me ele, fazendo-me as mesmas perguntas:

Onde estou? Quem sou?”

6- Uma pessoa consegue recapitular sua história com mais facilidade, se criarmos para ela condições especiais, que lhe favoreçam rememorar acontecimentos, nem sempre muito agradáveis, bem como compreender correlações entre fatos de sua vida…

COMENTÁRIOS

Desde o início da minha atuação na clínica, interessei-me pelos trabalhos experimentais que verificavam a correlação entre o funcionamento do SNA e os efeitos da psicoterapia.

No livro Psicoterapía y relaciones humanas: teoría y práctica de la terapía no dirigida, escrito por  Carl Ranson Rogers & Marian G. Kinget (Tradução de Mercedes Valcarce. Madrid: Ediciones  Alfaguara, 1967, p. 291/ 296), podemos encontrar os resultados dos estudos feitos por William N. Thetford e o de Bernard Chodorkoff.

No primeiro estudo, o de Thetford, era focalizado, basicamente, o nível fisiológico, e o segundo, o de Chodorkoff, o nível psicológico.

Em ambos, conclui-se que: se, como consequência da terapia, o sujeito se torna capaz de manejar melhor sua tensão emocional a nível psicológico, esse fenômeno terá sua expressão também a nível fisiológico.

Interessei-me, também, pelo conceito de tonus optimal, descrito no capítulo 5 do livro Sensibilidade e Relaxamento, escrito por Bernard Gunther. Esse autor diz:

Relaxamento é soltura: permitindo, deixando ir, deixando vir, fluir livremente, é entrega. O estado natural do organismo. Uma condição na qual os nervos e os músculos experimentam uma plena sensação; colocando-se em ‘eu-tonus’; sem esforço.

(…) estar atentamente relaxado é apenas o necessário despender de esforço muscular desejável para um funcionamento eficiente – o TONUS OPTIMAL.

Tonus Optimal é um conceito dinâmico no qual o organismo se adapta automaticamente à quantidade de tensão muscular necessária para cada atuação particular (Gunther, 1981, p. 82).

Até agora, a prática clínica tem-me mostrado que o cliente experimenta uma sensação de tensão muscular, quando explora sua história, principalmente quando “anda” por “terrenos perigosos”, para a manutenção de sua integridade psicológica, ou seja, mesmo sem se dar conta, o sujeito muda seu tônus muscular, quando lhe é proposto recapitular algum momento de sua vida, o qual (geralmente isso é verificado a posteriori) contém fatos que comprometem sua imagem pessoal. Isso se dá em função dos valores norteadores do grupo social ao qual pertence, tornando difícil a assimilação de atributos novos na percepção que ele tem de si mesmo. Esse fato é muito evidente e, provavelmente, cada um de nós já experimentou essa sensação várias vezes na vida. Há um paralelismo entre o estado emocional e o muscular. Isso não é nenhuma novidade para todos nós. Ocorre, entretanto, que, quando conseguimos ajudar uma pessoa a se relaxar, ela consegue, mais facilmente, “andar” por aqueles “terrenos perigosos”, aos quais me referi linhas acima.

Essa condição de tranquilidade, de relaxamento, uma vez conseguida, tem-se mostrado muito eficiente, pois diminui o grau de defesa, comum em situações terapêuticas, sem, contudo, deixar o sujeito demasiadamente desprotegido.

Tenho utilizado, em cada sessão nos processo de RPHP, o recurso do relaxar, e esse é complementado por minutos de meditação. Essas duas atividades, somadas, funcionam como preparação do sujeito para um entrar em contato com sua história de modo mais pleno.

O uso de tais recursos leva-me a acreditar que, através deles, não só fica mais fácil recapitular situações com conteúdos desagradáveis, traumáticos, de forte tensão, como também contribui para uma flexibilidade aumentada para perceber relações entre fatos vividos pelo cliente, sejam eles de que natureza forem.

Esse recurso também me tem ajudado a sentir, com certa antecipação, o quanto aquela fase da história do sujeito está carregada de tensão, de momentos difíceis, pois, nessas sessões, eles apresentam uma dificuldade muito acentuada para conseguir um nível de relaxamento bom, mesmo tendo experimentado esses estados favoráveis em sessões anteriores.

Casos extremos já foram registrados, em que o sujeito não consegue continuar o processo, mesmo tendo conseguido um bom nível na sessão experimental, e até nas que focalizavam os primeiros anos de vida.

A sensação que se tem é que o cliente “percebe” que não suportará o confronto com os fatos, que certamente virão à sua lembrança. O processo de defesa aí se instala fortemente, como um meio de autopreservação da integridade psíquica em que se encontra, nesses casos, quase sempre, muito fragilizada.

7- Ao longo da vida de uma pessoa, ela vai formando uma imagem de si que decorre de percepções, que adquire no contato com as pessoas com as quais convive, bem como das percepções que ela própria vai formando de si, através dos valores da sua sociedade, que lhe chegam de forma direta ou indireta, claramente ou de forma encoberta.

 COMENTÁRIOS

Há uma literatura bastante farta que nos fala sobre este tema, mas, talvez, fosse interessante se pudéssemos lembrar que, no nosso dia a dia, experimentamos, com muita clareza, o que disse no item 7, acima.

Assim, se perguntarmos a qualquer pessoa como ela é, como ela se define como sujeito, invariavelmente procurará adjetivos que foram ou são originários dos valores que caracterizam seu grupo social. Em outras palavras, os parâmetros que usa para fazer um conceito sobre si são sempre os mesmos, utilizados pela sua sociedade, ou pelo seu grupo de origem, principalmente pelo que sempre ouviu falarem a seu respeito.

Ainda que, num determinado momento de sua vida, ela passe a ser seu próprio juiz, se avalie, se classifique… nem por isso, deixa de utilizar, para seus julgamentos, os valores que são significativos para as pessoas da sua sociedade.

Em meu trabalho, utilizando o RPHP, isso fica profundamente constatado e é praticamente inexistente uma escuta da história de um cliente, que não venha carregada de afirmações relativas à sua pessoa, sempre associada à percepção que outros tiveram, ou que ainda têm dela.

8- O mundo ao seu redor passa a ser um determinante poderoso para a       formação de seu modo de se ver, de se julgar…

COMENTÁRIOS

Como comentei no item anterior, a percepção do sujeito é socialmente determinada, o mundo ao seu redor é um determinante poderoso no seu modo de julgamento dos outros e de si mesmo.

Poderíamos perguntar-nos, então: onde estaria a fronteira entre o indivíduo ele mesmo e o indivíduo construído pela sociedade?

Para mim, uma das grandes questões, enfrentada pelas pessoas que procuram a terapia, trata-se, exatamente, da coexistência desses “dois indivíduos”, desses “dois sujeitos”, que tentam coexistir dentro de um mesmo “corpo”.

Em relação a esse aspecto, poderia lembrar de J. Rajchman, em seu livro Foucault: a liberdade da filosofia (1987).

Diz ele:

Assim, os nossos próprios eus podem ser as grandes ilusões realistas do nosso tempo – as entidades interiores, totais, privadas, individuais, mentais, que frequentemente aceitamos como certo serem o que somos (p. 48).

Esses dois personagens vivem em guerra dentro de um território, que é sem corpo físico, e, nele, travam uma luta nem sempre suave.

9- Num determinado momento, fica difícil para uma pessoa poder definir se o que ela pensa de si é algo sinceramente seu, ou se seus comportamentos são apenas reflexos de expectativas que o mundo construiu para ela.

COMENTÁRIOS

É interessante observar-se que, numa ocasião definida algumas pessoas se dão conta da existência de uma contradição muito clara no seu modo de julgar, de se perceber. Ela se julga “burra”, quando “se sente inteligente”, diz ser uma desastrada”, quando “se sente cuidadosa”. Diz-se incapaz, quando pensa de si exatamente o contrário disso… Enfim, ela “sabe” que seu julgamento não é correto, mas tem uma dificuldade muito grande para admitir que, no fundo, o que pensa a seu respeito pode ser verdadeiro. Fica com uma avaliação insegura, não acredita mais nos seus critérios para fazer julgamentos sobre si mesma.

Nos casos mais extremos, sucumbe à avaliação externa e perde seu equilíbrio, aliena-se.

10- A pessoa passa a agir como se fosse ela própria e não se dá conta da quantidade de “forças” que agem sobre ela.

COMENTÁRIOS

Nesse “estágio”, o sujeito funciona acreditando que é exatamente como se autopercebe. Seu julgamento sobre si e sua realidade, ainda que bastante distorcido, guarda uma certa coerência. Ele não se dá conta da distância entre sua percepção da realidade externa e a percepção da sua realidade interna. Ambas são rígidas, limitadas e determinadas por fatores externos ao sujeito. Ele é o que dizem que é.

Talvez, esse fato esteja na base das terapias que se utilizam de sugestões a serem dadas aos clientes, provavelmente uma tentativa de, através delas, modificar a autoimagem e, consequentemente, o comportamento deles.

Pode ocorrer, entretanto, que, cada vez mais, essas discrepâncias fiquem progressivamente mais evidentes. Ela não encontra explicação para o que está sentindo, para o que se está passando dentro de si. Aos poucos, isso vai incomodando mais e mais.

Num certo nível, a pessoa se dá conta de um estado de desconforto, quando percebe um movimento interno que parece dirigi-la numa determinada direção, e um outro que a contraria, empurrando-a numa direção oposta. Ela não compreende o que acontece dentro de si. Nada faz muito sentido.

Tudo indica que o cerne da questão clínica é a busca da compreensão do como se estruturou a contradição na conduta do sujeito, em outras palavras, entender a contradição da história da subjetividade.

Compreendida sob este ângulo, a clínica passa a ter como meta terapêutica não a resolução dessa contradição, mas, sim, tornar o sujeito compatível com essa sua contradição temporal. Estar no tempo, ser histórico, é ser e não ser ao mesmo tempo.

11- A compreensão desse conflito ocorre quando as forças que o provocam ficam mais evidenciadas, através da percepção mais clara dos acontecimentos que foram vivenciados por aquela pessoa, em vários momentos de sua vida.

      Como decorrência disso, surge uma possibilidade de solução do conflito, da eliminação do desconforto ou, pelo menos, sua diminuição. O sujeito começa a encontrar alternativas de soluções para seus problemas, pois passa a compreender seu modo peculiar de ser, sua dinâmica pessoal. Isso significaria dizer que ele, antes paralisado pelo conflito, passa a ter melhores condições para funcionar, para sair do estado de rigidez em que se encontra.

COMENTÁRIOS

O objetivo da RPHP é exatamente este: criar condições bem definidas que ajudem o cliente a perceber, com mais clareza, a sua história, de que modo ela foi sendo organizada, algumas fontes de seus valores e como esses valores e essa história se articulam na estruturação e no funcionamento do seu modo de ser e viver.

Progressivamente, em paralelo às novas percepções que vai adquirindo de sua história e de seu mundo, o sujeito começa, também, a mudar seu modo de agir, já que, agora, consegue compreender muito melhor os conflitos que enfrenta, quando atua no seu dia a dia.

Mas como conseguir isso? Como seria uma sessão terapêutica, na qual se aplicasse tal método?

Tentarei, a seguir, descrever o esquema básico de uma sessão de RPHP.

Depois, procurarei detalhar, um pouco mais, cada item desse esquema.

V-  ESQUEMA BÁSICO DE UMA SESSÃO DE RPHP

Uma sessão dura aproximadamente 50 minutos.

Ela é dividida em quatro momentos principais.

Primeiro Momento

A – Criação de um estado de relaxamento físico do cliente. Cerca de 5 minutos.

B – Aquecendo a imaginação. Aproximadamente, 3 minutos.

C – Caminhada no tempo, para trás. Aproximadamente, 3 minutos.

D- Exploração de uma idade ou período de vida determinado. Aproximadamente,

9 minutos.

E – Retorno no tempo, até aqui e agora. Aproximadamente, 3 minutos.

F – Relaxamento físico. Aproximadamente, 5 minutos.

Segundo Momento

A – Expressão gráfica. Proposta: colocar, numa folha de papel, traços, rabiscos, qualquer expressão gráfica, que possa significar, para o cliente, o tom emocional e os momentos importantes da exploração da idade ou da fase de sua vida, que foi revista no primeiro momento dessa sessão.

B- Expressão corporal. Em alguns casos, quando é muito difícil a expressão gráfica, incentiva-se o cliente a se expressar corporalmente, de tal modo que seus movimentos físicos possam complementar, ou até substituir, o que experimentou, ao se expressar graficamente, ou ao tentar fazer isso, momentos atrás.

Terceiro Momento

Preenchimento de um questionário, do qual constam sete perguntas, que deverão ser respondidas de modo muito sucinto.

As perguntas são:

1- Como era seu mundo nesse período de sua vida?

2- Como as pessoas conceituavam você?

3- O que você sentia pelas pessoas com as quais convivia nessa época?

4-  Que conceito você fazia de você mesmo?

5 – Se fosse possível, o que você mudaria nessa parte de sua vida?

6- Que  relação você estabeleceu com “você” mesmo durante esse trabalho?

7- Agora, após responder a todas essas perguntas, como você está-se sentindo? O que esse período representou para você?

Quarto Momento

Gravação em Vídeo. Durante aproximadamente cinco minutos, momento no qual o cliente tem a oportunidade de registrar todo o tom emocional que vivenciou na sessão.

Um quinto momento é possível: O aprofundamento e a discussão de questões que surgiram nesse trabalho, nesse dia, nessa sessão.

Após dar essa visão bem geral de como é composta uma sessão, vejamos, passo a passo, como tudo acontece.

O primeiro momento

A-  CRIAÇÃO DE UM ESTADO DE RELAXAMENTO

Quase sempre, o cliente, quando chega ao consultório, mesmo aquele que se mostra tranquilo, calmo, encontra-se numa situação de ameaça. Ele “sabe” que, no espaço terapêutico, há uma possibilidade de entrar em contato com verdades sobre si mesmo, que seriam muito difíceis para ele admitir.

Uma sessão terapêutica coloca sempre o cliente em risco de ter que admitir aspectos de si muito pouco aceitáveis para ele mesmo, e, talvez, para os outros.

Este estado de ameaça provoca, a nível físico, uma tensão e ela atua como dificultadora de uma permeabilidade de percepção, agindo sobre a memória, sobre a compreensão da realidade, sobre a capacidade de contato com suas sensações, ou seja, uma pessoa, que está muscularmente tensa, não consegue identificar, com facilidade, as alterações que estão ocorrendo em si num momento dado, sejam elas de ordem muscular ou não, nem no mundo exterior a ela.

Considero, pelo que tenho podido vivenciar na prática, que iniciar uma sessão de RPHP (Recapitulação Progressiva da História Pessoal) com um relaxamento facilita em muito o trabalho, pois cria uma diminuição na tensão muscular, aumentando a possibilidade de o cliente “caminhar” com mais segurança e menos “defesa desnecessária”, e, com isso, avançar mais na compreensão da dinâmica da estruturação de seu modo de ser.

O relaxamento proposto, geralmente, é o que a maioria de nós conhece: um modo de tomar consciência do corpo, parte por parte, pés, pernas, quadris, tronco, braços e mãos, pescoço, cabeça.

Através desse exercício, que dura aproximadamente 5 (cinco) minutos, procuro ajudar o cliente a aumentar o grau de consciência de seu corpo, do estado de tensão dele, das partes que lhe parecem mais congestionadas, mais relaxadas… enfim, perceber-se corporalmente.

O relaxamento é dirigido por mim e sempre acompanhado de uma música, uma mesma música, à qual dei o nome de Música A. Isso provoca, progressivamente, sessão após sessão, uma associação entre música/relaxamento, o que ajuda o cliente, cada vez mais, a conseguir, a cada encontro, níveis mais profundos de descontração física.

O trabalhado, até então, situa-se, basicamente, no nível físico, nos músculos, nas vísceras…

B-  AQUECENDO A IMAGINAÇÃO

Complementando o relaxamento, proponho um outro exercício, que atua a nível da imaginação. Pretendo, com isso, além de provocar um relaxamento físico, provocar, também, um “aquecimento” da imaginação (outro elemento importante para o método), que será muito útil, quando o cliente estiver explorando sua história, ao mesmo tempo que o ajuda, também, a se desligar do seu “aqui e agora”.

Para isso, uso de uma imagem que é proposta para o cliente, e peço-lhe que a desenvolva, que mergulhe nela, que crie algo a partir dela e sobre ela.

Dou a ele cerca de 3 (três) minutos para isso, e, nesse momento, estou-lhe apresentando, simultaneamente, uma outra música, que  denominei de Música B.

Tendo relaxado e exercitado a imaginação, nosso cliente está em condições de iniciar a terceira etapa desse primeiro momento.

Qual o papel da imaginação em nosso método?

Na realidade, quando se pergunta a alguém sobre sua história, ela utiliza uma parcela considerável de lembranças reais, concretas, de fatos documentados, e uma outra, que é feita basicamente de fantasias, criadas por ela, por uma necessidade de preencher lacunas da memória.

Ao “aquecer” a imaginação do cliente, estou convidando-o a utilizar esse recurso de modo mais pleno, pois tenho certeza de que o que ele criar, imaginar sobre si e sua história, certamente conterá seu modo peculiar de ser, sua verdade sobre si mesmo e ela é que lhe dá condições de articular suas “lembranças reais”, em algo maior que é seu modo de ser no mundo.

A realidade dele é seu mundo fatual e seu mundo imaginário. Ambos são somente dele. Ambos são molas que impulsionam, dirigem e orientam seu modo de perceber o mundo, e, portanto, de interpretá-lo.

Imaginação e realidade de um mesmo sujeito são o sujeito e, portanto, portas de entrada para a compreensão de seu mundo.

C-  A CAMINHADA NO TEMPO

Nunca vi um encontro terapêutico que não contivesse uma história a ser contada. Sempre procuramos os fatos antigos, para que possam dar condições a quem nos ouve de entender o que se está querendo contar.

Na terapia, o cliente chega e se expressa de certo modo para o terapeuta. Essa expressão só terá sentido, só poderá ser compreendida, dentro de um contexto, de uma história.

Quando somos alunos do curso de graduação em psicologia, ouvimos, constantemente, a sugestão para que acompanhemos o fluir do discurso do cliente, para que não o atropelemos…

Ouvimos, também, sugestões que mostram como é importante a sequência, às vezes aparentemente desconexa, do discurso dele, pois isso, certamente, mostra os caminhos que ele precisa percorrer, para, finalmente, chegar às suas descobertas, seus insights.

Organizar uma história, colocar nela uma sequência cronológica, seria simplesmente um absurdo, algo que contrariaria profundamente o “flutuar com o cliente”.

Talvez, seja importante fazer uma ressalva aqui.

Não considero errado que se “flutue” com o cliente, que se deixe por conta dele a sequência que ele bem desejar.

Não creio que seja necessário, para se fazer uma terapia, para se compreender um cliente, que se organize, no tempo, os fatos de sua vida…

Tudo isso é profundamente pertinente, se não estivermos aplicando o RPHP.

E é, exatamente, de modo profundamente solto que atuamos com um grande número de clientes, os que não estão vivenciando o método de reconstrução da história pessoal.

Por uma questão puramente prática, é fácil perceber-se que é muito mais simples entender-se uma história, se você a começa pelo começo.

Uma situação A, que antecede a uma B, que, por sua vez, vem antes de C… É mais fácil compreender C, se conheço A e B. Nossa compreensão será mais ampla, mais segura.

Poderemos argumentar se é indispensável conhecer A e B, para se compreender C. Diria que não. Mas, certamente, poderemos afirmar que a compreensão de C se torna muito mais difícil e limitada, quando não conhecemos A e B.

Mas é crucial que falemos, antes que o leitor fique com uma ideia distorcida do que, de fato, ocorre na prática do RPHP, que, para nós, o fato C é também muito importante para a compreensão do A e do B. Em outras palavras, o presente ajuda a compreender o passado e vice-versa. Mais ainda, as fantasias projetadas para o futuro, sem dúvida, também interferem na configuração do que se percebe no presente do sujeito.

A história não é um fio descontínuo.

Um momento da história está fatalmente ligado, e até determinado, por todos os outros que o antecederam, numa sucessão retroinfinita, bem como com todos os outros que o sucederão.

Onde começa uma história? Impossível responder.

Onde terminará uma história? Igualmente impossível responder.

Se é impossível responder onde começa uma história, por outro lado, é possível  afirmar-se que, quanto mais longe, para trás, pudermos ir nela, mais o momento presente se tornará compreensível, adquirirá mais forma, mais inteligibilidade, mais próximos estaremos de sua “natureza”, e o mesmo se dirá em relação ao “futuro”.

Não nos podemos esquecer de que o futuro é, também, uma força poderosa, que dá sentido, energia e movimento ao presente.

A história de cada um de nós começa, a nível concreto, no ponto que conseguimos visualizá-la e ter sobre ela alguma informação ou algum entendimento, mesmo que sejam apenas suposições, fantasias.

Se não podemos saber, com certeza, como fomos gestados ou como foi o momento em que fomos concebidos, talvez nos seja possível ter dados sobre nossos pais, o momento em que eles viviam quando fomos gerados, a situação social e econômica, o momento político e social de nosso grupo de amigos, familiares… Onde morávamos, o que os nossos familiares realizavam na época… Enfim, podemos saber como era o mundo ao qual chegamos, mesmo que isso contenha uma infinidade de lacunas e fantasias.

Mas como se processa essa “caminhada no tempo”?

Na fase em que estou, ainda apresentando o método ao cliente, como uma alternativa possível de ser usada, caso ele se interesse, ajo do seguinte modo:

a – explico como é o método;

b – se ele se interessar pela experiência, realizo uma “sessão experimental”, em que ele passa pelo processo, focalizando uma época, ou uma data, ou uma experiência dele, da vida dele, que lhe pareça bem consciente, bem viva em sua memória.

Trata-se de uma vivência, para que ele experimente o relaxamento, o “aquecimento” da imaginação, a caminhada no tempo e a exploração de um momento de sua vida, mas que, segundo ele, não represente uma situação fora do comum.

c- uma vez que o cliente viu como será a dinâmica das demais sessões, então, decide se está ou não interessado em utilizar o recurso que lhe estou apresentando;

d- caso ele decida por começar o processo, passo a programar, com a ajuda dele, os espaços de tempo que serão focalizados, que serão explorados em cada sessão.

Do momento da concepção até aproximadamente oito anos de idade, costumo fazer uma exploração ano a ano. Depois dessa fase, eu e o cliente, com a indicação dele, organizamos os períodos de vida a serem focalizados. Por exemplo, uma programação para um adulto de 25 anos de idade comumente é assim:

1a sessão: pré-natal até nascimento;

2a sessão: nascimento até um ano;

3a sessão: de 1até 2 anos;

4a sessão: de 2 até 3 anos;

5a sessão: de 3 até 4 anos;

6a sessão: de 4 até 5 anos;

7a sessão: de 5 até 6 anos;

8a sessão: de 6 até 7 anos;

9a sessão: de 7 até 8 anos;

10a sessão: de 8 a 10 anos;

11a sessão: de 10 a 15  anos;

12a sessão: de 15 a 16 anos;

13a sessão: de 17 a 17 anos;

14a sessão: de 17 a 19 anos;

15a sessão: de 19 a 22 anos;

16a sessão: 23 anos;

17a sessão: 24 anos ;

18a sessão: 25 anos.

Quando o cliente escolhe, na décima sessão, explorar o período de 8 a 10 anos de idade, provavelmente, acreditou que dentro desse período há acontecimentos que julga significativos para a compreensão de sua história, ou por saber, de antemão, sobre tais acontecimentos, ou, pelo contrário, perceber que se trata de um período profundamente obscuro, sobre o qual não se lembra de absolutamente nada.

Quando optou por fazer a 13a sessão, explorando somente a idade de 17 anos, certamente acreditou que esta idade foi muito significativa, e que vale a pena explorar-se mais profundamente esta fase de sua vida.

Raciocínios semelhantes aos desenvolvidos nos dois últimos parágrafos podem ser encontrados nas demais escolhas feitas pelo cliente, para as explorações das idades após os oito anos.

Bem, mas como é, na prática, essa caminhada no tempo?

Uma vez já relaxado, e tendo estimulado a imaginação, o cliente recebe uma sugestão para que imagine algo que possa transportá-lo no tempo.

Feito isso, começo a solicitar ao cliente que tome consciência de si mesmo, como ele é naquele momento, a idade que tem, a sua aparência física, etc., e que, conseguido isso, então comece a caminhar no tempo para trás, de tal modo que, como um espectador, se possa ver no dia anterior, como estava na véspera…

Segundos depois disso, sugiro que o cliente “se veja” há uma semana atrás, logo após, há dois dias atrás, depois há um mês atrás… e, assim, sucessivamente, até chegarmos à época que estamos interessados em explorar.

Todavia, é importante que o cliente mantenha sempre presente a ideia de “estar-se vendo como ele era”, como se, durante toda a caminhada no tempo, ele fosse sempre um espectador de si. Assim, ele, que tem hoje 25 anos, “se verá” com 18, com 14… com um ano de idade, como um feto dentro da barriga de sua mãe…

Na primeira sessão, caminharemos no tempo, até o momento da concepção, ou antes, caso sinta necessidade de explorar o contexto, no qual os pais viviam na época em que ele foi concebido… ou uma breve história dos próprios pais, do namoro deles, das famílias deles, etc., etc.

Nessa primeira sessão, minha proposta é explorar o período da concepção até o momento do nascimento.

Na segunda sessão, caso a primeira nos tenha dado uma sensação de “é suficiente”, exploraremos o período que vai do nascimento até um ano de idade, e, assim, sucessivamente.

Não tenho nenhuma norma rígida em relação à permanência do cliente na exploração de determinada idade ou fase de vida. Em outras palavras, caso ele queira repetir uma, duas, três ou mais vezes, a exploração de uma mesma idade, a escolha é dele. Ele repetirá quantas vezes considerar necessárias. Via de regra, o que tem ocorrido, na prática, é uma repetição de, no máximo, 3 vezes. O mais comum é fazer-se, apenas, uma para cada idade ou período.

Essa caminhada cronológica para trás, tem como objetivo apenas ajudar o cliente a situar-se no tempo, numa época de sua vida.

Finalmente, é importante que se saiba que, aqui também, uso uma música, como fundo para esse momento. É a Música C.

Uma vez feito isso, passamos para o outro momento da sessão, que é a exploração daquela idade ou fase da vida.

D-  EXPLORANDO UMA IDADE OU UMA FASE

Uma vez tendo “caminhado no tempo”, mantendo a consciência da idade que ele possui no dia em que vivencia a sessão terapêutica, sendo um “espectador de si”, o cliente “chega” à idade a ser explorada.

Nesse momento, começa a ouvir uma outra música (Música D), e, então, sugiro ao cliente que observe a si mesmo naquela idade, que estamos focalizando, ou seja, se estamos tentando rever seus 3 anos de idade, seria interessante que ele pudesse “ver” como ele “era” aos 3 anos.

O terapeuta tenta ajudá-lo a prestar atenção aos seus sentidos:

Observe formas, cores, sons e ruídos, odores, sabores, sensações viscerais, sensações táteis, emoções…

Verifique como aquele menino(a) está-se sentindo!

Observe o mundo no qual ele(a) vive, as pessoas ao seu redor…

Observe a expressão no rosto das pessoas que convivem com essa criança…

Observe o que dizem em relação a ela, o conceito que fazem dela, o que parecem sentir por ela nessa época.

Observe o que sente pelas pessoas que convivem com você nesse período.

Procure identificar o que essa criança sente por ela própria, como parece sentir-se nas situações: segura? confiante? insegura? com medo? alegre? triste? Ela parece gostar de si mesma?

Se fosse possível, você, que tem agora 25 anos, o que gostaria de mudar nesse período de sua história? O que gostaria que tivesse sido diferente quando tinha 3 anos?

Se você desejar fazer algum comentário sobre o que está ‘vendo’, lembrando ou imaginando, faça-o, mas em voz baixa. Estou junto de você nessa exploração, caminhando também no tempo…

Uma vez dadas essas instruções, fico quieto e, durante cerca de mais 8 minutos, o cliente permanece “mergulhado” no “tempo passado”, deixando que lembranças antigas ou atuais ocorram.

Ele deverá, somente, observar e ir registrando mentalmente o que vai passando por “sua cabeça”.

Pedimos, sempre, que ele não se exija, que não se cobre um “lembrar”, mas que, pelo contrário, se permita ser um espectador do que vier a acontecer naquele momento.

E – RETORNO NO TEMPO

Findo esse tempo de exploração do “passado”, é hora de retornar.

Recomeça a Música B (3 minutos).

Sugiro ao cliente que “se despeça” daquela criança (nesse exemplo, que estamos dando, é ele, com 25 anos, “em contato” com ele aos 3 anos).

Inicia-se uma contagem crescente.

Ex: Desse ponto em que você está, aos 3 anos, agora, passaremos para 5 anos …para 10 anos…. para 15 anos…. para 20 anos… para 23 anos, para 24 anos, para o dia X (por exemplo, um mês atrás), para o dia Y (dois dias atrás), para o dia Z (dia anterior, ou manhã do dia em que estamos realizando a sessão), para o aqui e o agora, nesta sala, ouvindo os sons, os ruídos, sentindo o peso do seu corpo, o gosto da boca, o cheiro do ar, as cores, as formas… movimentando seu corpo aos poucos, e “acordando”, como se despertasse de um sono longo, sentindo-se bem física e psiquicamente.

F- RELAXAMENTO

Nesse momento, recomeça a Música A (do relaxamento inicial).

Sugere-se ao cliente que fique quieto, tentando rever e organizar um pouco tudo o que aconteceu, o que sentiu, o que “viu”…

Ele dispõe, caso queira, de 5 minutos para isso.

Em resumo, esse primeiro momento poderia ser descrito assim:

1- relaxamento – Música A – tempo = 5 minutos;

2- imaginação – Música B – tempo = 3 minutos;

3- caminhar no tempo – Música C – tempo = 3 minutos;

4- exploração – Música D –  tempo = 9 minutos;

5- caminhar no tempo – Música C – tempo = 3 minutos;

6- relaxamento – Música A – tempo = 5 minutos.

Total =28 minutos

Para facilitar a marcação do tempo e a dinâmica da sessão, essas músicas foram gravadas numa fita C-60, na sequência indicada acima. Assim, uma vez colocada a fita na aparelhagem de som, elas mesmas vão marcando a duração de cada etapa, liberando-me dessa tarefa.

O segundo momento

EXPRESSÃO GRÁFICA

Uma vez tendo caminhado no tempo e revisto um período de sua vida, o cliente, quase sempre, encontra-se mobilizado, ou, pelo menos, reflexivo sobre o que experimentou minutos atrás.

Essa experiência comumente é marcada por surpresas, questionamentos, novas formas de compreender “como as coisas aconteceram”…

Não é raro que a emoção se faça presente, e, junto a ela, “algo” que não fica bem definido, enquanto sensação.

Minha prática tem-me mostrado que a palavra não é suficiente para expressar todo o conteúdo de uma vivência, de uma experiência vivida.

Muitas vezes, o cliente percebe que esteve mergulhado numa lembrança de alguma situação e que “não há palavras para descrevê-la”. Nesse momento, outras formas de “expressar-se” mostram-se fundamentais. Por isso, solicito sempre que o cliente tente pôr numa folha de papel, utilizando lápis-cera, hidrocor, lápis de grafite ou outros materiais, algo que possa representar, para ele mesmo, um pouco do que sentiu.

Sugiro que deixe fluir, o mais espontaneamente possível, qualquer coisa que lhe ocorra, seja um rabisco, uma figura geométrica, uma forma disforme, uma cor…

A pessoa não se deverá preocupar com o convencional, por exemplo, desenhar de forma compreensível uma pessoa, um animal, uma flor… O que nos interessará será mais “o que saiu dele”, esse movimento de pôr para fora algo que está sendo sentido dentro de si, ainda que não compreensível, lógico…

Alguns clientes que têm mais facilidade para se expressar verbalmente, escrevem naquela folha, utilizando o mesmo critério usado para o desenho: “deixar fluir tudo o que quiser escrever, sem censura, sem convenções, nem mesmo as ortográficas.

O que pretendo é que se crie um fluxo de ideias, de pensamentos e de imagens, que possam estar associadas ao que foi “revivido”, no momento em que o cliente esteve “revendo” um período de sua vida.

EXPRESSÃO CORPORAL

Pode ocorrer o fato de o cliente ter dificuldade para se expressar gráfica (desenhar) ou verbalmente (escrevendo livremente). Isso não é comum, mas já tive alguns casos assim. Nessas circunstâncias, sugiro ao cliente que procure, então, expressar-se corporalmente.

Como seria isso?

Pedimos para que fique numa posição física que possa representar para ele o que está sentindo, ou que faça movimentos com o corpo ou com parte do corpo.

Quando acontece isso, sempre peço ao cliente para que preste atenção ao que ocorre dentro dele, que sensação experimenta ao fazer tais movimentos…

Essas propostas estão baseadas em princípios da Terapia Expressiva.

Terceiro Momento

QUESTIONÁRIO

O que ocorre com maior frequência é que, do primeiro momento até o final do segundo, o cliente passe por uma experiência muito viva do reencontro com sua história, podendo sentir os tons emocionais, afetivos, vivenciais, relacionais…  enfim, sentir sua história sendo algo muito mais vivo, com movimento.

É como se o cliente “visse” sua vida, e não somente olhasse para ela como algo estático, como uma sucessão de fatos, um acumular de informações.

Percebe que muitos fatos foram omitidos, não lembrados, esquecidos. Muitos ficaram claros, outros profundamente obscuros.

Tento tranquilizar o cliente, de modo que ele não se preocupe se muitos dados lhe escaparam, pois sabemos, muito bem, que é impossível recuperar todos os fatos, entender suas correlações…

Nosso objetivo não é esse.

Nosso objetivo é chegar o mais próximo possível da compreensão de como os fatos se foram interligando, a ponto de produzirem um tipo característico de percepção de si e do mundo que o cerca. Como, ao longo da história daquela pessoa, alguns fatos significativos foram-se organizando e construindo, no sujeito, seu modo peculiar de ser no mundo.

E como, quase sempre, o cliente nos procura por sentir que seu modo de ser não lhe está dando condições para produzir um tipo de vida que lhe seja a desejada, torna-se importante para ele entender como poderá desconstruí-lo, para, com isso, se liberar de muitas amarras que o limitam.

Cheguei à conclusão de que se poderia lançar mão de uma estratégia para conseguir maior eficácia na compreensão do que ocorria durante as sessões, ou seja, na compreensão das tramas daquela história, e, com isso, criei um questionário.

Ele tem como propósito organizar as vivências em dois eixos: um transversal e um longitudinal.

No eixo transversal, podemos ter uma visão das características da idade ou da fase que estivermos pesquisando numa sessão.

No eixo longitudinal, temos uma visão de como, ao longo da vida do cliente, uma determinada atitude foi sendo construída, modificada…

Tentarei explicar isso melhor.

Estou partindo de um pressuposto básico, que é: uma pessoa vive num mundo em relação com pessoas, instituições, objetos… enfim, uma pessoa vive no mundo em relação com tudo o que há nele. Parto, também, da ideia de que, nessa relação, ela vai formando um conceito de si mesma e do mundo, através de uma troca incessante de experiências e descrições da realidade interna e externa.

Esses conceitos, de si mesmo e do mundo, nem sempre correspondem ao que ela descreveria como sendo ela própria ou o mundo.

Tudo indica que as descrições que lhe chegam sobre o mundo e sobre ela própria, muitas vezes, são acompanhadas de pressões fortes, provenientes do meio em que ela vive, que lhe impõem uma forma de ver distorcida, tanto da realidade que a cerca, como de si mesma.

Com o passar do tempo, a pessoa passa a ser o que esperam que ela seja, e o mundo para ela passa a ser como lhe foi descrito durante toda a sua vida.

Carlos Castaneda, no livro Viagem a Ixtlan, faz uma afirmação que ilustra bem essa vivência dos homens:

(…) todos que entram em contato com uma criança são um mestre que lhe descrevem o mundo sem cessar, até o momento em que a criança é capaz de perceber o mundo conforme descrito… A partir daquele momento, porém, a criança é sócia. (…) é capaz de fazer todas as interpretações perceptíveis, adequadas que, conformando-se com aquela descrição, a revalidem (Castaneda, 1992, p. 9).

Não importa, aqui, discutir a natureza dessas forças, nem as razões que poderiam levar as pessoas a absorverem esses padrões de descrições do mundo e de si. O importante, na prática, é perceber-se que isso acarreta uma luta no interior daquelas, que, por alguma razão, chegam a sentir a existência dessa divisão interna. Tal divisão faz com que se sinta “falsa” com ela própria, não podendo ser o que sente que, de fato, é medo de arriscar novas formas de viver, prisioneira de ideias sobre si e sobre a realidade.

Muitos nem percebem tal divisão.

Apenas, agem incongruentemente.

Tentando amarrar esses dados, de modo mais objetivo, proponho ao cliente que registre, de modo bem sucinto, o seguinte:

1- Como era seu mundo nesse período de sua vida?

Ao responder a esta pergunta, o cliente reporta-se ao que experimentou quando estava revendo aquele período ou idade, nessa sessão, nesse dia.

Ele procurará fazer um registro do contexto no qual viveu aquela idade, a casa, a rua, a época, do ponto de vista social, econômico e escolar, os amigos, os valores, as crenças… Enfim, tentará contextualizar esse momento de sua vida.

Tentará observar como imagina, através de dados muito concretos para ele, o mundo no qual estava vivendo, suas características mais significativas, ou como dele se lembra.

2- Como as pessoas conceituavam você?

Nesse momento, ele procura verificar o que costumavam dizer a seu respeito. Como o viam, o qualificavam…

Quais os atributos mais descritos pelos outros como caracterizadores de seu modo de ser, de agir…

Quem era ele para seus pais, seus irmãos, amigos, conhecidos, professores…

3- O que você sentia pelas pessoas com as quais convivia naquela época?

Tenta-se, através dessa pergunta, perceber como o cliente reagia, que sentimentos experimentava e, talvez, que conflitos eram gerados nele, a partir do modo como os outros o julgavam.

Outro aspecto que surge com essa pergunta é o tom emocional e afetivo, que caracteriza a relação do cliente com as outras pessoas.

4- Que conceito você fazia de si mesmo?

O modo como o próprio cliente se avaliava.

Que juízo fazia de si.

Quais as características mais marcantes no seu modo de ser, de agir, de pensar…

Que tipo de relação ele estabelecia consigo mesmo?

Seu nível de autoaceitação, de valorização ou desvalorização de si…

Até esta questão número 4 (quatro), como se pode notar, estamos atentos a dois polos:

– a relação sujeito/mundo (o sujeito e o exterior dele);

– a relação sujeito/sujeito (o sujeito e o interior dele mesmo).

Passemos, agora, para a quinta pergunta do questionário.

5- Se fosse possível, o que você mudaria nessa parte de sua história, nessa fase de sua vida?

As pessoas costumam responder a essa pergunta, expressando suas fantasias, seus desejos, seus projetos, e, mais do que isso, denunciam o que realmente importante ocorreu nesse espaço de tempo, nessa fase de sua vida…  que está sendo focalizada naquela sessão.

Ela sabe que não poderá alterar o passado, mas, ao se lhe permitir fantasiar essa possibilidade de mudança, quase sempre aproveita para visualizar o que gostaria, ainda, se fosse possível, de criar como alternativa de saída construtiva para seu problema.

Seria bom que não nos esquecêssemos de que, nesse tipo de trabalho, essas questões são levantadas a cada sessão, em relação, portanto, a cada idade ou etapa de sua vida. Como decorrência disso, a sucessão de mudanças, idealizadas ao longo da história da pessoa, acaba por apontar numa direção bastante concreta, que nos pode dar uma pista sobre seu movimento de mudança interior, o que vale dizer: possibilidade de criar saídas alternativas e promissoras para os problemas que enfrenta.

6- Aproxime-se de “você mesmo”. Olhe bem como você é aos 5 anos (ou 7 ou 15 anos, dependendo da idade que se estiver revendo na sessão ).

Diga alguma coisa para “você”. Ouça o que “você” tem a dizer para você. Observe “sua” expressão do olhar, “sua” postura física, “seu” corpo, “sua” fala, “sua” voz…

Tente aproximar-se de você mais ainda, e, se possível, abrace “você”, coloque “você” no colo… Observe, nessa hora, o que você sente por “você”.

Finalmente, “despeça-se de você”.

Por meio dessas sugestões, tento estabelecer “um contato do cliente com ele mesmo”. Como consequência dessa “aproximação”, conseguimos chegar bem perto do sentimento dele para consigo mesmo: o quanto ele se aceitava/se aceita.

Tudo me leva a crer que o grau de autoaceitação se correlaciona com o grau de possibilidade de mudança, de solução de problemas do cliente, mas, ainda, não posso afirmar isso de modo categórico.

7- Após responder a todas as perguntas, como você está se sentindo AGORA? O que esse período de sua vida representou para você?

Depois de todas as etapas acima descritas, de um até seis, o cliente passa a ter uma percepção muito viva do que aquele período representou em sua vida, no seu modo de ser. Por isso, fazer-lhe esta sétima pergunta o ajuda a fazer uma verdadeira síntese daquele seu período de vida.

Quarto momento

 GRAVAÇÃO EM VIDEOTEIPE

Depois de respondida a sétima pergunta, muitas vezes proponho ao cliente que se gravem, em videoteipe, as impressões gerais experimentadas por ele naquela sessão.

Tenho sido indagado sobre a necessidade, sobre a eficácia, a pertinência do uso do vídeo…

Gostaria de esclarecer que, em minha maneira de ver, tudo o que dispusermos como recurso para ajudar nosso cliente a ampliar sua percepção de si e do mundo que o cerca deve ser colocado à sua disposição, para que ele o utilize como melhor achar.

O vídeo é um desses recursos e, por sinal, muito poderoso. Ele não fará mágica, não fará o tempo parar, não cristalizará nada. Ele “somente” atuará como um espelho, ou como mais um documento a ser compreendido.

Através do feedback que o VT oferece ao cliente, ele cria uma nova linguagem, que fala sobre o seu modo de ser, seu modo de dizer o que diz, de olhar, sua postura física, seus gestos, um retrato vivo dele mesmo.

Talvez seja interessante acrescentar, também, que, embora o vídeo seja um recurso que utilizo no consultório, em outras situações vivenciadas, nas quais apliquei o RPHP, ele não foi usado. Portanto, o vídeo não é um dispositivo essencial para a eficácia do método.

Quinto momento

O que ocorre numa sessão terapêutica varia imensamente. Há sessões em que, por terem sido revistas situações repletas de lembranças fortes, com muita carga emocional, o cliente chega ao seu final muito tenso, confuso, “desequilibrado”. Nesses casos, esse quinto momento é indicado.

Nele, dar-se-á oportunidade ao cliente para falar mais sobre aquelas lembranças. Com isso, cria-se oportunidade para que ele se “reorganize”, se reequilibre e, aí, sim, possa encerrar a sessão.

O mesmo pode ocorrer quando as lembranças são profundas e intensamente alegres. Também nessas situações, há um “desequilíbrio” e devem-se criar condições para que ele usufrua, o mais plenamente possível, do material surgido e possa integrá-lo à sua história, tornando-a cada vez mais compreensível.

Tristezas, choros, alegrias, sorrisos, tudo é a pessoa se manifestando, tudo é sua história, seu passado/presente/futuro.

Cada sessão tem a estrutura que tentei descrever nas linhas anteriores.

Em média, para se recapitular a história de uma pessoa, precisamos de 20 sessões de 50 minutos, sem se levar em conta o tempo que o cliente utiliza para as discussões de aprofundamento sobre elas.

Tenho notado que, sempre que falo sobre esse método (RPHP), os ouvintes ou leitores fazem-me perguntas semelhantes às que se seguem.

– E, no final disso tudo, o que acontecerá?

– Haverá alguma conclusão? Uma orientação ao cliente?

Explico, então, que, na fase preparatória para a implementação do RPHP, costumo conversar bastante com a pessoa que deseja utilizá-lo, e tento deixar, o mais claro possível, o seguinte:

Não haverá um “final”, uma “conclusão”, uma “orientação”. O que se espera é o desenvolvimento de um trabalho, que, durante seu próprio processo, propiciará o surgimento de uma nova compreensão sobre os fatos passados e os atuais.

2) Essas “novas percepções” tendem a criar “novas possibilidades”           de abertura de alguns caminhos, que nos poderão ajudar a           encontrar soluções mais criativas para os problemas que são           trazidos para a terapia.

ALGUMAS VIVÊNCIAS COM O RPHP

As teorias psicoterápicas sempre me pareceram muito pequenas, para dar conta de um universo tão grande, o mundo do cliente. Perco-me diante daquelas pessoas que procuram descrever os elementos que compõem seu universo, numa tentativa de se fazerem entender, de me fazerem compreender suas vivências, suas experiências.

Procuro ajudá-las, mas, dentro do possível, sempre me mantenho atento para não perder de vista que não sou capaz de “viver” a vida delas.

Tento, também, não esquecer que um meio para que se possa chegar o mais perto possível do entendimento do seu mundo é mergulhar nele, o mais fundo que a gente puder.

Mas como fazer este mergulho? Para quê? Quais as vantagens que isso poderá trazer na ajuda que quero dar ao meu cliente?

Para alguém que, pela primeira vez, entra em contato com essa metodologia, muito do que até agora foi apresentado pode parecer estranho, meio artificial.

Na realidade, embora esse método tenha surgido por acaso, ele foi-se desenvolvendo, experiência após experiência, até alcançar uma forma mais elaborada, mais segura, como a que temos hoje.

Nas linhas que se seguem mostrarei, de certo modo, cronologicamente, as atividades que propiciaram o surgimento do RPHP.

Um grupo de encontro com estagiários do HEPQ, Lumiar, RJ

O primeiro trabalho que realizei, utilizando esse método, foi com um grupo de estagiários do Hospital Estadual Psiquiátrico (Jurujuba), que estava em supervisão, no início da década de oitenta. Vendo o que se faz hoje, posso considerar que foi uma experiência profundamente rudimentar, muito distante do que se realiza atualmente. Foi a semente deste método.

Grupos de consultório com prazo pré-fixado

Num momento posterior, utilizei o RPHP em grupos de consultório, que tinham como característica principal o prévio estabelecimento de seu término. Nesse fase do trabalho, comecei a utilizar as fitas magnéticas gravadas. Nelas, as músicas se sucediam, tal como ocorre ainda hoje, liberando o terapeuta do controle do tempo de cada momento da sessão, e permitindo que se uniformizasse o procedimento em cada uma delas. Com isso, criei condições para comparar os diversos grupos que realizava.

Grupos em instituições escolares

Esse método foi utilizado numa instituição escolar, que atendia a uma população de alunos, cujas idades variavam de alguns meses, até a quarta série do ensino fundamental.

O primeiro dia de aula, frequentemente, provoca, em um grande número de crianças, e também de professores, um estado de insegurança, principalmente quando aquela escola é a sua primeira, ou um lugar que ela ainda não conhece bem.

Embora os professores procurem receber seus alunos com carinho num primeiro dia de aula, nem sempre estão realmente sensibilizados para o grau de ansiedade que muitas crianças vivenciam nesse momento.

Os dias de adaptação das crianças pequenas são acompanhados passo a passo pelos dos professores. Eles também estão-se adaptando às crianças.

Diante desse fato bastante conhecido por todos nós, pensei, então, em usar o RPHP num grupo de cerca de 50 professores, e, como era uma situação específica, propus que fizéssemos a caminhada no tempo, visando chegar à história escolar de cada professor.

Meu objetivo era que os professores revivessem seu primeiro dia de aula e “tudo” o que sentiram ao chegar pela primeira vez a uma escola. Queria que tivessem a sensação do espaço físico. Que sentissem a diferença de percepção de um adulto em comparação com a da criança, por exemplo, quando se aproximam de móveis, janelas, portas, salas… Para uma criança em idade pré-escolar, um gramado de 20 metros de comprimento pode parecer um campo de futebol do tamanho do Maracanã. Uma professora pode ter o dobro de sua altura e a mesa da mestra pode ser tão alta que a criança não consiga ver o que existe sobre ela.

Foi uma experiência muito interessante, pois, ao receberem, naquele ano, seus alunos, aqueles professores conseguiram um nível tão bom de relacionamento e compreensão dos sentimentos das crianças, que a “adaptação” ocorreu num clima totalmente diferente dos anos anteriores, tendo-se caracterizado por uma capacidade muitíssimo maior para: compreender as crianças, dar-lhes atenção. As crianças apresentaram menos demonstrações de medo (e acredito que também professores experimentaram e demonstraram este mesmo sentimento).

Ao reviverem suas experiências como crianças pequenas, como alunos, os professores puderam “ficar mais na pele” de seus alunos e encontrar maneiras mais eficazes de lidar com a insegurança deles e suas.

Passagem para o trabalho individual

Durante mais de cinco anos, o RPHP foi aplicado somente a grupos, mas, depois, passei a usá-lo também em casos individuais.

Num grupo, é mais fácil utilizá-lo, pois a troca de informações entre os participantes, relativamente às suas histórias pessoais, estimula aqueles que têm dificuldade “para fantasiar”, e estes conseguem, com maior facilidade, criar também suas próprias histórias.

Quando se trata de atendimento individual, nem todas conseguem atingir um grau que seria desejável para a reconstrução de sua história. Por isso, esse método não é utilizado em todos os casos, com todos os clientes.

Inicialmente, no caso individual, utilizava um tempo de uma hora e meia em cada sessão. Aos poucos, sistematizei o trabalho de forma tal, que ele (como é feito hoje) pode, perfeitamente, ser desenvolvido em uma hora.

A utilização do Vídeo e do computador

Em 1987, introduzi, nesse trabalho individual, o recurso do vídeo.

O interessante nisso tudo é que, ainda hoje, alguns clientes, que, por alguma razão, procuram retomar à terapia para discutir os acontecimentos mais recentes, e que foram filmados em teipe anos atrás, declaram que o fato de terem sido filmados, o fato de poderem rever, depois de tanto tempo, o que diziam, dá-lhes a sensação de terem estado “ontem” em meu consultório. Retomar a terapia na qual se utiliza o RPHP é muito mais fácil, se o cliente puder “re-ver”-se através do vídeo.

Associado ao vídeo, veio o computador. Ele também tem contribuído bastante para que se façam relatórios e gráficos, todos eles sempre visando dar ao cliente uma noção mais precisa da dinâmica de seu comportamento.

A utilização da RHP na terapia de casais

Tenho, ainda, poucos registros da utilização do RPHP com casais. Entretanto, nas vezes em que lancei mão desse recurso, o resultado foi muito promissor.

O que se tenta focalizar, basicamente, é a História da Relação. Do mesmo modo que acontece nas histórias pessoais, o casal vai tendo oportunidade para rever como se foi estruturando aquela relação, como se foi estratificando, se enrijecendo ou empobrecendo, e, a partir daí, formular alternativas de mudança no relacionamento.

A utilização da RPHP no Ambulatório de Saúde Mental

Em outubro de 97, apresentei o resultado de uma experiência realizada, no HPJ, Hospital Psiquiátrico de Jurujuba – Município de Niterói – RJ, com um grupo composto por pacientes egressos e clientes da comunidade.

As condições de trabalho foram bastante adversas, se compararmos com as que dispomos no consultório. Todavia, pelos resultados obtidos, tudo indica que o trabalho em si não ficou prejudicado, e que deixou bastante claro que o RPHP pode ser um instrumento muito útil no trabalho hospitalar, em grupo, mesmo com uma clientela tão heterogênea e de níveis de problemática psíquica bem elevados. Nesse grupo, havia pessoas com problemas orgânicos, psicóticos e neuróticos (severos e brandos).

Esse trabalho, que recebeu o título de “A História e a Clínica”, pode ser obtido na biblioteca do Hospital, ou via Internet, através da página www.jlbelas.psc.br, no item MeusTextos, ou através do belas@jlbelas.psc.br

A utilização da RPHP em situações especiais

Relacionarei, agora, apenas alguns casos que classificaria como “situações especiais”.

– Uma pessoa que queria somente rever a “história de seu nascimento”.

– Um homem adulto que desejava rever a história de fases de sua vida: a infância,

a adolescência, a juventude e a idade madura (adulta).

– Uma pessoa que desejava rever a “história da sua relação com a mãe”.

Em todas essas situações, o modo de trabalhar com o cliente conservou suas características básicas. A estrutura da sessão foi a mesma em todos os casos. O que variou foi, é claro, o objetivo a ser alcançado: a história a ser pesquisada.

Alguns esclarecimentos a mais sobre como o RPHP foi ganhando forma.

A CHEGADA DO CLIENTE

Invariavelmente, quando o cliente não tem dificuldade para se expressar, começa contando-nos uma sucessão de fatos, que esboçam uma história, a história de sua vida, de seu momento de vida, de sua queixa…

Aprendi que é importante ouvir o que a pessoa tem a me falar, e, mais ainda, que seria correto não interrompê-la desnecessariamente, pois poderia interferir na sua linha de pensamento, e, assim, cortar o rumo que ela elegera para enveredar por seu mundo interior. Teria que “flutuar” com ela. Acompanhar seu discurso e não nortear sua conversa.

Escutei durante muito tempo.

Falei muito pouco por muito tempo.

Essa escuta atenta e flutuante, realmente, ajudou-me a não criar caminhos que não fossem os do próprio cliente, e, com isso, “não perdia tempo”, andando pelos meus.

Até então, atuava de uma maneira que poderíamos chamar, hoje, de clássica, ou seja, dentro daquilo que a academia me ensinara.

Se, por um lado, sempre estive alerta a toda e qualquer teoria que se considerasse a melhor, a mais certa, enfim, que fosse dogmática, por outro estive, também, atento àquelas que se mostravam muito liberais, pois elas me davam a impressão de estar criando um outro tipo de dogmatismo, um dogmatismo às avessas.

A realidade que se coloca diante de nós, qualquer que seja ela, por mais “simples” que nos possa parecer, sempre será formada por um número infinito de “realidades”, de elementos que a constituem.

É sempre pretensioso pensar-se poder chegar ao íntimo de qualquer realidade, entendê-la plenamente.

Uma pessoa que se aproxime de nós, que se mostre para nós, seja lá por qual razão for, será, certamente, um universo profundamente complexo, que se colocará à nossa frente. Será um desafio enorme, uma incógnita a ser explorada, e, provavelmente, jamais decifrada no seu todo.

Seria ingênuo de nossa parte acreditar que uma história de meia hora sobre qualquer pessoa seja suficiente para se fazer qualquer tipo de julgamento sobre ela.

Ingenuidade, também, seria pensar que uma história de dez anos sobre alguém nos possibilite pretender dizer que a conhecemos.

A “construção” de uma pessoa é coisa muito complexa e escapa, a ela própria, o conhecimento sobre como foi sendo estruturada.

Esse cliente que chega é ingênuo em relação a si mesmo, em relação a quem ele é, de fato.

Tudo parece indicar que, por não se conhecer, por não saber como ele veio a se constituir como pessoa, por não entender o modo como ele “funciona”, o cliente acaba agindo como se fosse uma máquina programada à sua revelia, como alguém que vai sendo arrastado pela correnteza da vida, sem chance de mudar o rumo dela.

Há quase um imobilismo, um conformismo. Há como que um agente paralisante que atua sobre o sujeito, de tal modo que ele, ainda que desejando mudar, não consegue modificar seu comportamento, e acaba por atribuir seu sofrimento a causas que sempre são obscuras e mais fortes do que ele próprio. Ele não é mais senhor de si. Como nos diz o Millor:

Todo homem nasce original e morre plágio (FERNANDES, 1994, p. 263).

Não há muito o que se possa fazer por ele. Seu mundo é aquele, e pronto!

E ele começa a encontrar uma porção de explicações para o fato de estar amarrado numa vida meio amorfa, meio vazia, meio triste, meio desesperançada… Uma vida incompreensível, ilógica…

Será que se lhe déssemos uma chance para poder começar a compreender como ele foi sendo construído, mesmo que essa compreensão ocorra num nível mínimo, não conseguiria entender seu “modo de funcionamento”, e, a partir daí, teria mais condições de modificar sua trajetória de vida?

Será que se ele pudesse ter acesso a um número mais significativo de fatos, de situações, de informações sobre o “mundo que o criou”, que o construiu, isso não o ajudaria a se assenhorear mais de “seu destino”?

QUE MUDANÇA O CLIENTE DESEJA?

Arriscarei fazer uma afirmação que poderá parecer muito simplista:

O cliente parece, apenas, “desejar” uma coisa: sair de um estado de rigidez psíquica.

O que o incomoda é a sensação de estar preso, amarrado, rígido, com dificuldade para “sair do lugar”.

Costumo dizer que todos os clientes sofrem de uma mesma “doença”: rigidez.

Essa rigidez apresenta-se de várias formas e muitas delas nos confundem, pois costumamos não distinguir rigidez de paralisação.

Esquecemos de que “dar voltas em círculo” é algo profundamente rígido.

Nosso cliente, quase sempre, está nessa situação. Não se consegue libertar da dinâmica de seu modo de agir e pensar. As alternativas para seu comportamento inadequado não aparecem diante dele, ou, se aparecem, não as consegue colocar em ação.

Nesse estado de rigidez, é impossível criar saídas.

Poder-se-ia dizer: mas há clientes que “desejam continuar como estão”!

Não nos podemos esquecer de que existem muitos mecanismos que empurram o cliente para uma espécie de jogo, no qual o ficar curado é muito perigoso, por mais paradoxal que isso possa parecer para muita gente. Mecanismos inconscientes, culpas, sentimentos de várias ordens interferem no movimento e na direção da construção de comportamentos mais equilibrados, produtivos para o cliente.

Entretanto, com exceção daquelas pessoas que nos são encaminhadas à revelia delas – o que ocorre em número reduzidíssimo – as demais carregam, lado a lado com os mecanismos que dificultam a mudança verbalizada por elas, um movimento interior que aponta na direção de uma construção de seu modo de viver num sentido mais positivo, criativo, renovador, flexível…

É exatamente aí que o terapeuta é convidado a colaborar com o cliente na reorganização de si mesmo.

QUE MUDANÇA O TERAPEUTA PODE OFERECER AO CLIENTE?

Tudo indica que a única oferta possível é a tentativa de – junto com o cliente – buscar compreender, da melhor maneira possível, o universo dele, e, a partir disso, e simultaneamente a isso, criar condições que favoreçam o surgimento de alternativas novas que possibilitem a construção de novos caminhos, de novos espaços, de novas concepções de si e do mundo que o rodeia.

Em outras palavras, criar condições de flexibilidade, de movimento em sua estrutura, até então muito defendida, muito rígida.

Na minha prática clínica, verifiquei que uma das formas de se conseguir operacionalizar o tipo de oferta, acima referida, era através do RPHP, pois um dos objetivos dele é alcançar uma compreensão mais significativa da rigidez do cliente, por meio da exploração de sua história, e, como decorrência disso, buscar melhores condições para uma desmontagem dos esquemas que ele rigidamente utiliza na sua forma de viver.

QUEM SE TEM BENEFICIADO DE TAL MÉTODO?

Tenho, registrados, mais de sessenta casos de clientes que vivenciaram o RPHP, em atendimento individual.

Tenho, também, o registro de vários grupos – esses sem documentação em vídeo.

Tenho, como clientes, jovens adolescentes, adultos jovens e pessoas com idades acima dos cinquenta anos.

As pessoas que mais conseguiram mudanças construtivas e significativas foram aquelas com maior facilidade de trabalhar com imagens mentais, pessoas detalhistas, com facilidade de concentração.

Aquelas, muito fragilizadas, que se defendem em demasia e que “temem enlouquecer” – têm medo de ficar malucas – quase sempre nem chegam a aceitar a sugestão de se utilizar o RPHP. Às vezes, ficam sabendo da existência de tal recurso e pedem para que lhes explique como é aquele método, mas a maioria que o tentou utilizar não foi muito além da sessão experimental.

Pode parecer paradoxal, mas acho fácil compreender-se, mas as pessoas mais comprometidas, as chamadas doentes mentais, não colocam obstáculo para experimentar o RPHP.

As muito intelectualizadas, “cientistas”, começam, mas param e consideram um pouco “bobo” aquele “faz de conta” do método. Acabam por não embarcar na proposta. Quase sempre, são pessoas muito rígidas e muito inseguras.

Parece que, pela própria natureza do trabalho proposto, os clientes percebem que, fatalmente, entrarão em contato com uma série de lembranças que serão para eles muito ameaçadoras, talvez insuportáveis.

Por essa razão, esse método não é aplicado a todos. É aplicado somente àqueles que se sintam, nem que seja minimamente, seguros para utilizá-lo, após sessões experimentais, em que têm oportunidade de vivenciá-lo num nível superficial e inferir, a partir dali, o que ocorrerá durante o trabalho como um todo.

VI – CONCLUSÃO

A partir de uma prática clínica de vários anos, fui percebendo que o modo como estava fazendo terapia assemelhava-se ao de se fazer História, principalmente como ela é concebida atualmente por alguns autores.

A história da pessoa passou a ser meu objeto de estudo, mas de uma maneira sistematizada, através do que chamamos de método de recapitulação progressiva da história pessoal.

As características básicas desse método são:

1- Ele considera que o modo de ser de um indivíduo é construído a partir de sua história, e que os problemas que ele vivencia são, em grande parte, decorrentes de distorções que vai adquirindo ao longo de sua vida, através de informações que recebe do mundo exterior, bem como das inferências que ele próprio realiza ao entrar em contato com suas realidades interna e externa.

2- Mais do que simplesmente um somatório de fatos, a história de uma pessoa é algo dinâmico e construído, também, de forma dinâmica, em que cada fato está correlacionado com todos os que o antecederam, e com todos os que virão depois dele.

3- O que tenho observado diante de um cliente que chega até meu consultório com uma história para contar é que ele se encontra, no presente, bastante confuso, não conseguindo entender o seu passado e, portanto, com bastante dificuldade para se projetar para o futuro.

4- Minha proposta, junto ao cliente, é ajudá-lo a compreender o passado, não a explicá-lo. O compreender é dinâmico, o explicar é estático. Digo que é estático, por levar a pessoa a uma sensação de conclusão, de término… O explicar implica em se saber tudo, causas, efeitos, como uma máquina que se pode prever como funcionará, uma vez posta em movimento.

No caso do ser humano, essa previsão é impossível, exatamente pelo número infinito de variáveis que interferem em cada momento de sua vida, mudando seus cursos. O compreender implica na percepção de um movimento que está ocorrendo, sobre o qual se sabe pouco, ou quase nada, mas que guarda em si um sentido quase visível para nós. O compreender lança-nos numa dimensão nova do conhecimento, pois, nele, o que se apreende é a dinâmica dos fatos, o como, ao contrário da explicação, já que esta se preocupa com o porquê.

5- Na história de uma pessoa, nunca se consegue chegar ao “porquê” ela é do jeito que é, tem o problema que tem, ainda que muitos se iludam com afirmações desse gênero.

6- Quando alguém consegue, progressivamente, através da compreensão que vai adquirindo, ao entrar em contato com vários acontecimentos dos quais participou, perceber os movimentos que sempre faz diante de certas situações, mesmo que não entenda exatamente por que os faz, nesse momento, adquire uma potência que antes não havia experimentado e dá-se conta de que pode alterar o curso que vinha sempre seguindo, e que nem sempre lhe era o mais produtivo.

7- Rever sua história, sua vida, seus momentos difíceis, seus momentos bons, seus relacionamentos com pessoas próximas. Perceber as características de tais relacionamentos, os conceitos que lhe eram atribuídos, os valores que o cercavam, os modos como reagia às ideias que lhe eram impostas. Descobrir suas vontades não satisfeitas, seus medos encobertos, uma sucessão de momentos vividos desde o mais remoto tempo de sua história. Conseguir ir “costurando” tudo isso numa sequência, num suceder esclarecedor. Viver todas essas situações, tudo isso, tem-me parecido uma forma de entender a história daquela pessoa, e, por conseguinte, sua dinâmica de vida.

8- Empiricamente, fui percebendo que seria muito difícil para o cliente recordar sua história, se não o ajudasse a “organizar” o modo de recolher os dados de sua vida. Percebi, também, que, quando utilizava recursos do tipo relaxamento, ficava mais fácil “buscar” os fatos, principalmente para aquelas pessoas mais tensas, mais agitadas, com dificuldade de concentração. Por isso, passei a utilizar desse recurso sempre, pois percebi mais tarde que ele ajudava também aqueles menos tensos.

9- Como resultado da aplicação do RPHP, tenho concluído que a maioria dos que se submeteram a esse método se beneficiaram com ele, e o descreve como tendo ajudado a compreender melhor seu modo de ser, suas dificuldades, suas características pessoais, dando a sensação de um “assenhorear de si”, “ser mais dono do seu nariz”… Outros, ainda, o descrevem como uma ajuda para agir com mais segurança, pois, através dele, passaram a “saber melhor onde estão pisando”.

10- Esse método pode ser aplicado tanto em atendimentos individuais, como em grupos, inclusive grupos grandes, sempre que o terapeuta perceber que há uma certa dificuldade nas pessoas, no que se refere à compreensão da dinâmica de sua relação consigo mesmas ou com o mundo que as cerca, o que significa dizer que ele se aplica a um grande número de pessoas, que nos procuram para tratamento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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OUTRAS OBRAS CONSULTADAS E SUGERIDAS

FOUCAULT, M. Doença Mental e Psicologia.  Capítulo III – “A Doença e a História Individual”,  Capítulo IV –  ” A Doença e a Existência”.  Rio de Janeiro: Editora Tempo Brasileiro, 1991.

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WOOD, John. K. et. al.  Abordagem Centrada na Pessoa. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo – Editora Fundação  Ceciliano Abel de Almeida, UFES,1994.

[1] Conceituo a palavra “personalidade”, no presente texto, como: um conjunto organizado e mutável de percepções que se referem ao indivíduo, tais como as características, os atributos, as qualidades e os defeitos, as capacidades e os limites, os valores e as relações que ele reconhece como descritivos de si mesmo, e que percebe como dados de sua identidade.

  

 

 

 

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