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Pessoais/Crônicas
JLBelas- 2016
Eu tinha uns doze anos.
Todos os nossos amigos, conhecidos, vizinhos, acreditavam que eu , quando crescesse, seria um médico. Essa ideia se estendeu por mais uns sete anos.
Hoje, posso entender que essa expectativa provavelmente nascia do sonho de ascensão social, alimentado nas cabeças das pessoas da classe média baixa à qual pertencíamos.
Eu até tinha algum interesse nessa profissão. Mas ainda era muito jovem e, nesta fase da vida, sonhos são como fumaça. Mudam a cada momento.
Mas, o que tem a ver licor de jenipapo e sonho de ser médico? Nada! Ou quase nada, no meu caso.
Um vizinho meu, sobre o qual já falei em uma de minhas crônicas, Sr.Theodoro, era muito habilidoso e não havia nada que ele não construísse. Por isso, ao ver minha habilidade como aplicador de injeções, construiu um estojo de madeira para mim. Nele, eu poderia colocar todo o material necessário para aplicar uma injeção numa pessoa.
Naquela época, meus vizinhos, ou iam à farmácia para tomar uma injeção, ou me chamavam. Isso mesmo!! Eu era o aplicador oficial de injeções daquelas bandas. Por este motivo, nada mais natural que eu tivesse um equipamento ( a tal caixa que o Theodoro fez para mim) que fizesse jus à minha “fama” de pré-médico.
Tudo era feito com todos os cuidados necessários para uma segura e eficiente aplicação de injeção. Para chegar a este grau de aperfeiçoamento, fiz um breve estágio com o farmacêutico que trabalhava perto de minha casa. Ele me ensinou tudo.
Alguém precisava tomar injeções? Lá ia eu com minha caixinha e, nela, a seringa, as agulhas, a bandeja pequena para por o álcool, sobre a qual, apoiada em um pequeno pedestal, se colocava uma outra, mais funda, que continha água. Aceso o fogo na bandeja pequena, em pouco tempo a água começava a ferver dentro da bandeja maior e a seringa e as agulhas, postas ali dentro, ficavam esterilizadas, prontas para o uso.
Diferentemente de hoje, as seringas e as agulhas não eram descartáveis e nós as utilizávamos para aplicar injeção em várias pessoas. A cada procedimento, tínhamos que esterilizar tudo novamente.
Até aqui tentei mostrar o “pré-médico” e sua faina nos anos mil novecentos e cinquenta.
Mas, e o jenipapo??? Dirá você já meio impaciente e curioso para saber o que deu origem ao título desse meu escrito. Vamos lá!
Havia uma senhora que morava perto de minha casa com sua filha de criação. Ambas, “minhas clientes”, solicitavam sempre os meus serviços. Esta senhora, num certo dia, inesperadamente, mostrou-se muito gentil, agradecida por eu lhe ter acompanhado em suas aplicações diárias de injeção de penicilina.
Já terminando a série de injeções, e ela se sentindo muito melhor, quase totalmente boa, ofereceu-me um cálice de uma bebida que ela mantinha à sete chaves na sua bela cristaleira. Tratava-se de um licor aconchegado numa linda licoreira, antiga, de cristal todo lapidado.
O interior dessa peça rara continha um liquido não menos raro. Um licor de jenipapo que ela conservava com carinho há muitos anos.
Dar um cálice daquela preciosidade a mim era um gesto de reconhecimento e gratidão, por tudo que havia feito por ela.
O momento era solene, quase pomposo.
Um lindo cálice que fazia parte do conjunto da licoreira. O licor, dentro daquela pequeno vaso transparente e brilhante, mais parecia um néctar de uma fruta do paraíso.
Meus olhos brilharam, talvez mais intensamente do que os reflexos que explodiam nas arestas das delicadas figuras que se aninhavam na licoreira e nos cálices que bailavam em nossas mãos.
Brindávamos à saúde, reencontrada com a ajuda das doloridas, mas eficazes, injeções aplicadas com tanto carinho e atenção.
Saúde!!!
Cálice nos lábio. Licor na boca. O grande momento havia chegado. Conhecer o sabor dessa bebida especial. A emoção era grande.
Papilas à postos esperando por serem surpreendidas e maravilharem-se com aquele inconfundível e generoso sabor.
Eis que, uma tragédia não anunciada aconteceu:
Licor na boca, e minhas papilas, antes de “braços abertos”, fecharam-se, ainda que tardiamente, tal como caramujos ameaçados por um predador.
Como nunca havia bebido esse licor, pensei : jenipapo é isso? Horríiiiiveeeeellllll !
O licor estaria estragado? Velho? Vencido? Podre?…
Olhei firme para a gentil senhora, a dona do licor, conhecedora do mesmo.
Seu olhar era firme. Seu semblante sereno, como se nada de estranho estivesse acontecendo naquele momento.
Concluí: Licor de Jenipapo é uma MERDA!!!!
Durante muitos e muitos anos , quando me ofereciam esse tipo de licor, me lembrava daquele dia , na casa daquela generosa e simpática senhora. E, novamente, minhas papilas gritavam:
LICOR DE JENIPAPO? NÃÃÃÃOOO!!!!!