J.L.Belas – fevereiro de 1975
Quando ainda era estudante, cursando os primeiros anos de Psicologia, tive um professor que não costumava cumprimentar nem conversar com seus alunos. Acreditava que, caso um dia um deles precisasse de seus serviços profissionais, o fato deles terem estabelecido um relacionamento pessoal mais próximo poderia impossibilitar sua admissão como cliente.
Essa atitude sempre me pareceu estranha. Não conseguia entender o que poderia haver de tão prejudicial caso se tornassem mais afetivamente próximos. Afinal de contas, pensava eu, se eu precisar da ajuda de algum terapeuta, gostaria que ele me tratasse como um grande amigo. Gostaria também de senti-lo dessa forma, pois isso me deixaria mais à vontade para discutir minhas questões mais particulares, jamais divididas por mim com outra pessoa.
Quando comecei a supervisionar estagiários de Psicologia no Hospital Estadual Psiquiátrico de Jurujuba (HEPQ), esbarrei com essa questão, logo de início. Os estagiários, praticamente todos, pensavam de modo muito semelhante ao do meu querido professor da faculdade.
Lembro-me bem de uma brilhante estagiária que, em pânico, me pediu orientação por haver recebido, “por descuido”, uma bonita rosa dada por uma suas pacientes, atendida por ela no nosso Serviço de Psicologia. Para aquela estagiária, esse fato teria destruído o trabalho que realizara, até então, com aquela paciente.
Na condição de supervisor, responsável pela formação daqueles jovens profissionais, senti que seria importante colocá-los para pensar, principalmente sobre temas controversos, como o que lhes vou apresentar mais abaixo.
Para provocar um debate, escrevi, naquele ano, um texto cujo título era “O TERAPEUTA, um amigo REAL”. Minha intenção era levar aquela estagiária e seus colegas a refletirem sobre aquela situação trazida por ela para a supervisão.
Abaixo, transcrevo aquele documento , escrito em 1975, com pequenas alterações que visam dar-lhe mais frescor e atualização, sem contudo perder seu sentido mais profundo.
“O PSICOTERAPEUTA: um amigo REAL”
Inicialmente tentarei tecer algumas considerações sobre a atmosfera que, quase sempre, envolve o cliente ao chegar até nós em busca de ajuda.
Quase sempre carregam consigo muitos conflitos e, em decorrência deles, muita tensão. Parecem imersos em um mar tempestuoso e lutam desesperadamente para transformá-los em lagos serenos, sem muito sucesso. Desejam que nesse mar em calmaria, ventos amigos consigam acelerar sua viagem, para que possam alcançar, logo, terra firme e se sentirem seguros.
Confusos, desorganizados, choram, riem, geralmente sem conseguir entender o que os leva a vivenciar tamanho sofrimento. Vê-se neles uma inconsistência entre o conflito que explicitam e os motivos que tentam buscar para suas dificuldades presentes.
Os que não estão acostumados a lidar com tais situações poderão pensar que aquela pessoa, que chora e ri, quase ao mesmo tempo, só poderá estar exagerando, fazendo de um pequeno problema um grande drama. Talvez diga, ou pense: o problema deste cliente não é tão grave assim.
Aqueles que trabalham nesse tipo de ajuda, por mais tempo, sabem que não é bem isso o que acontece. Ele sofre e geralmente nos fala, logo que inicia seu tratamento, algo do tipo: “Ninguém me entende e às vezes nem eu mesmo consigo me entender. Tudo que sinto é tão confuso! Gostaria que você me ajudasse a me livrar disto”.
O terapeuta iniciante – e mesmo muitos que já somam alguns anos de experiência – ficam angustiados com o que o cliente lhes relata e tentam buscar soluções rápidas e eficazes para minorar seu sofrimento. Acreditam que compreenderam plena e rapidamente o problema em foco, e sugerem formas para equacioná-lo e resolvê-lo. Buscam significados encobertos em tudo aquilo que a pessoa diz e, o que pode ser desastroso, procuram levar ao cliente essas “traduções”, esses significados, na esperança que ele consiga chegar mais perto do real sentido do seu sofrimento e, com isso superar o problema.
Essas atitudes costumam provocar um “atropelamento” da autodescoberta e, pior, acabam por assustar aquela pessoa que já se sente bastante insegura e com medo, retardando, mais ainda, o bom andamento do processo terapêutico.
Pensemos o seguinte: geralmente quando uma pessoa nos procura como profissionais espera que a ajudemos a compreender o que acontece com ela ( seus medos, suas angústias, suas inseguranças, seus sentimentos de infelicidade, de não realização pessoal, etc., etc.). Tende a nos ver como aquela pessoa capaz de explicar o que a atormenta e a impede de viver equilibradamente.
No início espera que sejamos um “expert”, um técnico , um conhecedor profundo da mente humana. Deseja respostas e soluções e chega quase a nos ver como uma máquina de solucionar problemas.
Com o passar do tempo, essa relação que começou puramente profissional, vai se transformando em humana, ou seja, o terapeuta progressivamente passa a ser percebido como uma pessoa, de carne e osso, REAL. Quando isso acontece, considero que o processo foi realmente iniciado.
A cada ano vivido em meu de trabalho clínico fico mais convencido da elevada correlação que existe entre a qualidade da relação entre cliente e terapeuta e o sucesso da terapia.
Isso não significa que essa qualidade, que mencionei acima, se caracterize por um encontro afetivo forçosamente “amistoso”. Nem sempre o contato entre duas pessoas ocorre entre “beijos e abraços”, mas ele será de “boa qualidade” sempre que for construtivo e, portanto, contribuir para o crescimento do processo no qual terapeuta e cliente estão envolvidos.
Entre alguns sentimentos experimentados pelos participantes daquela relação, há um que naturalmente se desenvolve ao longo do trabalho terapêutico e que se torna fundamental, quase como um pilar principal da terapia: a confiança no outro e a amizade que ela desperta.
Aquele o profissional que inicialmente é identificado pelo cliente como uma pessoa que, tendo uma formação técnica, “vende” seus conhecimentos e experiências ao cliente, ao se tornar confiável, passa a ser percebido como uma pessoa especial, um “amigo”.
Nem sempre é fácil explicar, principalmente para os profissionais da ajuda psicológica, provavelmente pelo tipo de formação mais comum que recebem, o que significa ser amigo de um cliente. Mas, tentarei explicar um pouco mais o que penso a respeito.
Quando um terapeuta consegue entender em profundidade o que se passa com uma pessoa, precisa ter condições para se colocar no lugar do outro, sensivelmente, e experimentar, como uma pessoa, subjetivamente a dor, a alegria, os medos, os sentimentos de quem está diante dele. Para isso, é desejável que o terapeuta seja, além de um “ser humano”, um ser REAL, de carne e osso, tal qual o seu cliente é.
É importante que se destaque um fato frequente no encontro terapeuta-cliente. Este último costuma chegar à terapia num certo grau de fragilidade e espera encontrar no seu terapeuta o oposto. No imaginário da pessoa que busca ajuda o terapeuta é forte e sábio. Por ser assim, poderá ajudá-lo também a tornar-se forte e sábio.
Essa fantasia inicial que povoa a cabeça do cliente torna-se necessária para ele. já que precisa se amparar num profissional que saiba o que faz. e que é pago para resolver suas dificuldades.
Por mais que a relação comece em um nível bom, afetivamente falando, o terapeuta por algum tempo ainda será visto pelo cliente do mesmo modo que ele vê um mecânico quando procura aquele profissional para consertar seu carro: uma pessoa que sabe tudo sobre as engrenagens da mente humana e capaz de penetrar no seu mundo, mesmo que ele – o cliente, não lhe dê permissão.
Enquanto o cliente precisa mistificar seu terapeuta, transformá-lo em um sábio ou semideus, a terapia, mesmo estando em marcha, ainda estará muito longe do seus objetivos.
Com o passar do tempo essa visão mágica do processo terapêutico e do terapeuta vai dando lugar a outra, mais real, mais humana, e o terapeuta já pode ser percebido como uma PESSOA.
Acontece que alguns terapeutas não conseguem (por características pessoais) ou não se permitem (por convicções teóricas) deixar que o cliente abandone esta imagem onipotente que faz dele. Quando agem assim, a relação estabelecida entre eles pode ser denominada de “vertical”: acima o terapeuta, abaixo o cliente.
Para mim, a relação vertical não tem sentido num relacionamento psicoterapêutico através do qual se busque criar condições para que o cliente se torne independente, criativo, liberto. A relação vertical, mesmo que apenas implícita, contribuirá para o surgimento de “discípulos”, súditos, ou coisa semelhante, o que é diametralmente oposto ao que se busca: o crescimento autônomo.
Por tudo o que foi mencionado linha acima, podemos imaginar a relação de ajuda, à qual damos o nome de psicoterapia, como sendo um tipo de relação na qual o terapeuta possa se sentir mergulhado num contato de pessoa para pessoa. Uma dessas pessoas, por prática, formação ou dotes, estaria em condições para dar início a um processo no qual a outra encontre, por si própria, os caminhos mais válidos para sua autodescoberta e para solução de suas dificuldades pessoais.
A desmistificação do papel do terapeuta, o abandono de postura técnicas programadas, são algumas das conquistas básicas a serem perseguidas pelos psicoterapeutas. Uma vez conseguido isso, vemos que o cliente passa a se sentir não mais situado em um plano “abaixo” do terapeuta, mas no mesmo nível humano do profissional que o ajuda.
Ser um terapeuta REAL, faz com que o cliente também se sinta desta forma. Isso significa que ambos, como seres humanos, podem falar a mesma língua, sentir as mesmas emoções, acertar, falhar, duvidar, ter convicções…
Quando o profissional passa a ser percebido por seu cliente como UMA PESSOA REAL, acontece algo muito novo nessa relação: o cliente se sente muito mais seguro e mais relaxado.
Ao longo do processo, a relação, que começa basicamente técnica e profissional, vai se transformando numa relação de amizade na qual até o fato de pagar pela hora da consulta deixa de ser um incômodo e passa a ter um outro significado, uma troca, um gesto de reconhecimento pelo afeto que vem junto com a escuta amiga, com o interesse genuíno pelo outro.
Com o passar do tempo vejo-me cada vez mais voltado para a seguinte crença: “só quando o cliente conseguir ver seu terapeuta como um AMIGO REAL é que ele poderá começar a se encontrar com sigo mesmo, libertar-se, compreender-se. Nesse ponto o cliente estará chegando próximo do momento em que não necessitará mais vir às consultas.
A meta da ajuda psicológica, segundo penso, é, sem preocupação com o tempo e com as técnicas, criar condições para que o cliente se certifique de que é capaz de ter, realmente, um AMIGO. Esse amigo será tão mais importante quanto mais real ele for, quanto menos terapeuta for (no sentido tradicional do termo, um técnico) quanto menos estiver preocupado em ser isso ou aquilo, quando conseguir ser alguém capaz de admitir que erra, acerta, duvida, tem medos e tudo o mais que caracteriza um SER HUMANO.
Tenho certeza que muitos profissionais “psi” contestarão o que escrevi neste pequeno artigo, mas pretendo, em outros, dar segmento e aprofundar algumas ideias aqui contidas. Terapia é um processo relacional. Quando bem sucedida, nela duas pessoas se encontram verdadeiramente como pessoas humanas. Descobrem-se, ampliam-se, humanizam-se, caminham juntas numa jornada que as transformam em verdadeiros amigos, AMIGOS REAIS.
Sugestões de Leituras:
1- http://jlbelas.psc.br/2008/09/26/psicoterapia-eu-queria-poder-dizer-lhes/
2- http://jlbelas.psc.br/1975/04/09/ainda-sobre-o-relacionamento-terapeutico/
3- http://jlbelas.psc.br/2016/01/15/uma-questao-incrivelmente-sutil-formacao-de-terapeutas-na-acp/
4 – http://jlbelas.psc.br/2020/08/19/carl-r-rogers-e-hiroshi-ito/