ESTUDOS: Psicoterapia nos transtornos mentais graves

 Nunca pare de estudar. Descanse. Durma. Mas, depois, continue.

 

ATENDIMENTO PSICOTERÁPICO A PACIENTES COM TRANSTORNOS MENTAIS GRAVES

UMA ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA

J.L.Belas

maio de 2007

A partir de um contato de um profissional de Psicologia, via e-mail, solicitando minhas opiniões sobre alguns aspectos peculiares ao atendimento a pacientes psicóticos e baseado nas minhas vivências com clientes com tais diagnósticos, surgiu o presente texto.

Em negrito, e antecedido de uma numeração, seguem-se as questões levantadas. Logo abaixo, minhas opiniões a respeito.

QUESTIONAMENTOS E COMENTÁRIOS – PRIMEIRO E-MAIL RECEBIDO

 

1-Tenho uma cliente de 59 anos…

 

Em termos absolutos, o fato de o cliente ser uma pessoa com 59 anos de idade não é importante para o desenvolvimento de um trabalho psicoterápico. Entretanto, em termos relativos, levando-se em consideração que, talvez, ela nunca se tenha beneficiado de um atendimento desse tipo, e, se o diagnóstico do transtorno que ela apresenta, de fato, for uma psicose, aí sim, o desafio se torna bem maior.

Durante muitos anos, não dei grande importância ao diagnóstico psiquiátrico de meus clientes. Eu “fazia a minha parte” e o psiquiatra fazia a dele. Hoje penso um pouco diferente, pois reconheço que, com o arsenal de medicamentos dos quais os colegas psiquiatras podem lançar mão, atualmente, a gente deve ficar um pouco mais atento às mudanças provocadas pelos remédios, usados pela pessoa em psicoterapia.

É claro que, em termos do processo psicoterápico em si mesmo, o diagnóstico não nos leva a adotar atitudes diferentes com cada cliente. Do ponto de vista da teoria que norteia o nosso trabalho, “centrada na pessoa do cliente”, até por coerência, mantemos nossas atitudes, tanto no atendimento de uma pessoa considerada “normal”, quanto no de uma pessoa diagnosticada como “psicótica”. Por outro lado, entender o que se passa com ele, inclui, também, entender o que os remédios estão fazendo nele e, mais ainda, se ele estiver sendo medicado adequadamente, entenderemos também e mais acertadamente, o significado das mudanças (para melhor ou pior) que ele venha a apresentar durante o tempo em que estiver em psicoterapia. Entende?

Algumas mudanças verificadas no comportamento do nosso cliente podem ocorrer, pura e simplesmente, como resultado do seu tratamento psiquiátrico, dos remédios que lhe são prescritos.

Acho que o que quero lhe dizer, ao escrever tudo isso, é que, no tratamento de pessoas portadoras de transtornos psiquiátricos severos, o trabalho conjunto, com outros profissionais é o mais indicado e o que, assim me parece, apresenta resultados mais positivos e consistentes.

Costumo discutir, com regularidade, a evolução do tratamento de meus clientes com os outros profissionais, que também tratam deles. Faço o mesmo, ainda que com uma regularidade geralmente menor, em relação à sua família. Esses contatos me ajudam muito a compreender o que está acontecendo com eles e me dão uma visão mais precisa do mundo em que vivem e como vivem nele.

 

2-Percebi que havia uma distorção do pensamento, não havia presença do objeto e ela insistia e insiste sempre na mesma estória.

 

Não sei bem o que você considera “distorção do pensamento”. Acredito que me esteja dizendo que ela parece falar uma “outra linguagem e, lógico, não pode ser considerada como igual às que utilizamos ao tentar descrever a nossa realidade”. Será isso?

Imaginemos que seja. E, se assim for, chegamos a um ponto interessante. O psicótico vive num mundo próprio, quase somente dele. Esse mundo, onde reside, é muito consistente. A lógica que impera é um paralogismo. Ele parte de premissas falsas e segue um raciocínio lógico, bem coerente. A partir daí, se não compreendermos bem o “seu vocabulário”, fica muito difícil estabelecer um contato com ele.

O importante é que, quando a gente se mostra interessado no discurso dele, no que ele nos tenta transmitir (fatos concretos ou subjetivos), surge nele uma necessidade de se comunicar. Tenho, às vezes, a sensação de ele estar me dizendo: até que encontrei uma pessoa que quer entrar no meu mundo… etc., etc…. Entende?

De certa forma, essa tentativa de se fazer compreendido também é possível de se identificar num paciente não tão comprometido mentalmente. Costumo dizer que “todos as pessoas atendidas por mim, até hoje, quase quatro mil, parecem sofrer de um único problema: rigidez.” Isso significa, para mim, que o que se vê habitualmente nos nossos consultórios, são pessoas que se queixam de uma “dificuldade para mudar”. É como se elas, muitas vezes, soubessem exatamente o que as atrapalha a viver mais plenamente, mas, ao mesmo tempo, temem modificar esse status quo. Têm medo de se aventurar numa realidade desconhecida para elas.

Estou colocando tudo isso para chegar à sua cliente que (como você escreveu): “insiste sempre na mesma estória”.

Quem sabe se, com essa insistência, ela está batendo à sua porta, querendo ser ouvida, se ouvir, expressar algo que ainda não conseguiu, ou, talvez, apenas se defendendo do que as outras estórias lhe poderiam causar????

Tudo bem, isso pode ser somente uma “viagem minha”, mas, muitas vezes, vivi isso e, quando tive paciência para ouvir, pela milionésima vez, uma mesma estória, consegui compreender alguma coisa que me estava sendo dita a cada repetição que me chegava aos ouvidos.

Vale a pena ficar atenta e esperar, esperar. Mas, sempre atenta, pois, quando menos a gente espera, surge com clareza o significado daquele discurso repetitivo, monótono, nada criativo, cansativo e aparentemente vazio. Mais à frente, talvez, retorne a este tema. OK?

 

3-Pensei em investigar as questões hormonais, já que a presença das alucinações coincidia com o início da menopausa, não tratada até hoje.

 

É uma boa observação a sua. De fato, há pessoas, como sua cliente, que vivem, nessa fase da vida, verdadeiros tormentos psicológicos, decorrentes de mudanças fisiológicas, principalmente em relação aos hormônios. O histórico pessoal é muito importante para que se possa fazer um diagnóstico diferencial nesses casos. Perguntaria: as alucinações chegaram primeiro? Quando? Temos conhecimento da história dela desde que data? Ela já apresentou surtos ou comportamentos estranhos antes? Quando?

A menopausa pode vir acompanhada de muitas alterações psicológicas, mas talvez não justifique o que ela apresenta. Isso precisa ser mais bem pesquisado mesmo. Concordo com você.

 

4-Estamos há quase um ano juntas.

Tenho a impressão de que vocês estão no começo do começo, embora juntas “há quase um ano”.

É interessante essa questão do tempo. Como já falei, anteriormente, esse tempo de que precisamos para chegar a começar, de fato, um processo terapêutico é indefinível. Um ano, em si mesmo, não significa nada. Não nos podemos esquecer de que “cada pessoa é única” e, por isso, o que vamos viver na relação com ela também é uma experiência única, onde o tempo necessário para que os fenômenos surjam vai ser determinado pela própria característica do relacionamento que a gente (o terapeuta e o cliente) conseguir criar.

 

5-Diagnóstico, ou melhor, a hipótese diagnóstica. Eu tenho pensado seriamente em lhe revelar.

 

Há clientes que chegam dizendo, de cara, o diagnóstico de sua doença.

Há outros que o desconhecem totalmente e só se queixam dos sintomas (quando se queixam).

Há aqueles que usam o seu diagnóstico para “lucrar” com isso. Disse, acima, que todos apresentam um sintoma único, lembra-se? Chamei isso de rigidez, não foi? Pois é! Há clientes que, por terem seus diagnósticos bem conscientes, fazem deles verdadeiras âncoras, que os impedem de “zarpar”, largar o porto seguro da própria doença.

Por tudo isso, dar o diagnóstico será sempre uma faca de dois gumes, principalmente se isso ocorrer antes de o cliente estabelecer com o terapeuta uma relação de muita confiança e segurança.

Quando a relação está consolidada, pode-se falar sobre a doença, o diagnóstico, as características do seu transtorno, etc.; isso poderá ser o começo de um enorme salto no trabalho que estamos realizando.

Acredito que, antes de alcançarmos tal nível de relacionamento, falar sobre o diagnóstico não nos levará a muita coisa.

 

6- Meu objetivo é o de ajudá-la a conviver o melhor possível com esse transtorno e “dando nome aos bois”, acredito que seja mais confortável para ela.

 

Pelo que lhe escrevi no item anterior, acho que deixei claro o que minha experiência me tem mostrado. Conviver com o transtorno vem antes de “dar nome aos bois”. Pelo menos é assim que ainda penso. Mas, quem sabe, com algumas pessoas isso funcione diferente, não é? O importante é estarmos, sempre, “centrados no cliente”. Só assim teremos a oportunidade de “sentir” o melhor momento para fazermos isso ou aquilo. Percebe o que quero lhe dizer?

 

7- A grande questão do paciente psiquiátrico é sua inserção social já que, um dos seus grandes sofrimentos é justamente essa inabilidade.

 

Realmente, alguns pacientes apresentam esta dificuldade. Outros não.

Os que não apresentam quase sempre têm uma estrutura familiar muito saudável, ajustada e verdadeiramente interessada no paciente. Costuma não isolá-lo do convívio social e familiar. Aceita sua enfermidade com naturalidade e compreensão.

Tive e, por sorte, ainda tenho, alguns pacientes nestas condições. Eles participam da vida familiar, saem, vão a lugares públicos (cinemas, restaurantes…), viajam… Vivem uma vida bem próxima da que a maioria de nós vive.

De fato, há limitações impostas pelo próprio problema que enfrentam, o que gera um certo sofrimento, principalmente quando são pessoas de bom nível nos aspectos social, intelectual e econômico.

Por esses motivos, o trabalho com a família torna-se importantíssimo. Para esses clientes, a possibilidade de integração social e de viver uma vida mais próxima do que se poderia chamar de “normal” dependerá do quanto pudermos ajudar as famílias a aceitarem e entenderem o que se passa com as pessoas portadoras de tais transtornos.

É importante conhecer bem a família do cliente, sua estrutura, os medos e as culpas que surgiram nela, a partir da doença de um de seus membros. Não raro, quando entramos em contato com a família, surpreendemo-nos com o nível de fantasias existentes nelas em relação à real possibilidade de cura, ou o medo oriundo de uma série de ideias preconceituosas em relação à doença e ao doente mental.

A família só poderá ajudar o cliente, se estiver bastante preparada para lutar conosco nesse desafio, que é o tratamento de pessoas com tais transtornos.

 

8- Meu supervisor me disse que devo cuidar dela, quem cuida da doença é o psiquiatra, enxergo perfeitamente isso, mas as sessões têm sido muito difíceis, porque ela não consegue vivenciar e experimentar outras coisas. Estamos cansadas.

 

Acho que entendo plenamente o que o seu supervisor lhe disse e acredito que entendo também o que você me diz.

Você se lembra do que escrevi láááá em cima? Pois é. É isso aí! PACIÊNCIA!!!

Muita paciência. Ela é essencial para que a gente não atropele o processo de ENCONTRO.

A repetição é uma fala que não está sendo ouvida, ou entendida, ou esclarecida suficientemente.

O cliente repete uma, duas, três, milhares de vezes. Parece que não sai do lugar, não é? E parece que a gente está perdendo tempo e não se está fazendo nada de concreto por e para ele. Não é assim?

Isso é terapia? Isso é perda de tempo: meu e dele! Quem já não teve esse pensamento passando pela cabeça? Não é mesmo?

Mas, veja bem, e se nesse “tempo perdido” pudermos estar ali, por inteiro, junto com o cliente? Se pudermos viver esse tempo e esse espaço como uma experiência de DUAS PESSOAS, provavelmente ocorrerão, ali, fenômenos pouco visíveis, mas profundamente interessantes. Eles serão os consolidadores da relação real, verdadeira, entre um, que se chama terapeuta, e o outro, que se chama cliente.

Uma vez, estava num workshop, em que havia profissionais de várias áreas, de vários países e de quase todos os estados brasileiros. Nessa época, eu trabalhava numa enfermaria do Hospital Estadual Psiquiátrico, em Jurujuba, Niterói, RJ.

No meio de uma reunião com toda essa comunidade, mais de duzentas pessoas, uma participante se dirigiu ao centro do círculo, onde todos nós estávamos sentados. Ficou de pé. Abriu os braços. Olhou para o alto e começou a murmurar algumas palavras pouco audíveis.

O grupo todo ficou surpreendentemente meio assustado. Estranho, pois a grande maioria dos presentes ali era da área de saúde. Depois, soube que poucos tinham experiência com pacientes psiquiátricos.

Depois de ela estar assim, no meio da roda, por mais de 5 minutos, resolvi ir até ela.

Saí de onde estava e me fui dirigindo para o centro, para perto dela.

Naquele momento, senti que não havia mais ninguém ao meu redor, embora todos estivessem lá, sentados, olhando e pensando no que eu iria fazer com a tal participante, que havia surtado.

Cheguei diante dela. Ela não olhou para mim. Permaneci ali, em pé, diante dela, ouvindo os seus murmúrios.

Ficamos, assim, mais uns cinco minutos.

Depois disso, ela olhou para mim, como se, naquele momento, se desse conta da minha presença à sua frente.

Ficamos olhando um para o outro.

Ela começou a olhar para o alto, falando baixo, abrindo os braços, como se estivesse crucificada.

Acompanhei os movimentos dela, como se fosse a imagem dela refletida num espelho.

Ela começou a fazer outros movimentos e eu os copiava integralmente.

Depois de mais uns dez minutos, ela parou, olhou firme dentro dos meus olhos e disse:

– “Eu enviei muitas cartas. Para o Brasil todo. Pro mundo todo. Só uma pessoa me respondeu.”

Então, disse para ela:

-“Estou muito feliz por você ter recebido minha carta, minha resposta”.

E acrescentei:

-“Gostaria de conversar um pouco com você, mas não aqui. Quer vir comigo até a sombra daquela árvore ali? Parece-me um lugar agradável para conversarmos.

Nisso, ela estendeu a mão, pegou a minha mão e fomos caminhando até a tal sombra. Ali ficamos por mais de duas horas, e, aos poucos, ela foi-me relatando o que estava acontecendo naquele instante: seu medo, sua insegurança, sua sensação de fragilidade e o seu receio de ficar louca.

Depois dessa nossa longa conversa, ela chegou a perceber que precisava continuar tomando os seus remédios (ela era uma paciente psiquiátrica em tratamento) e um dos psiquiatras, que estava participando do workshop, a medicou naquele dia.

No dia seguinte, ela optou por retornar à sua cidade natal, no nordeste do nosso país.

Este exemplo concreto, que acabo de lhe descrever, me parece dar uma ideia de como ocorre, em algumas situações, o relacionamento, entre nós e os clientes. O silêncio deles, as atitudes aparentemente sem sentido, os murmúrios, os gestos, as repetições sistemáticas de temas ou movimentos, tudo isso é, muitas vezes, a única forma que eles encontram para se comunicarem com o mundo externo. Essa moça, que mencionei na experiência acima, de alguma forma quis comunicar-se. Tentou falar sobre o seu medo e, para isso, mostrou-se diante daquela comunidade ali reunida, daquela forma. Aquela “comunicação”, ou aquela “mensagem”, ou aquela “carta” foi enviada para todos nós, pessoas de todos os cantos do mundo e do Brasil. E ela só obteve, concretamente, uma resposta, a minha. Quando se deu conta disso, ligou-se à realidade que estava diante dela, eu, e aceitou sairmos dali e conversarmos sobre o que estava precisando falar (o medo, a doença dela e tudo mais).

Percebe o que lhe quero dizer? Quando digo ficar atenta e ter paciência, quero somente insistir para o fato de que as coisas acontecem quando a gente menos espera e poder estar ligado nisso dá-nos uma chance de entrar no mundo deles e eles, no nosso. Com isso, uma relação EU-TU tem chance de acontecer.

Lembro-me de uma paciente minha, do Hospital de Jurujuba, que, depois de termos começado nossos contatos semanais e já se passarem mais de dois meses sem ela dizer nenhuma palavra para mim, falou pela primeira vez. Para surpresa minha, durante todo aquele tempo, ela me havia observado atentamente. Olhou para mim e disse: – “Eu ia lhe pedir um radinho de pilha. Tenho vontade de ter um. Mas sei que ‘desse mato não vai sair coelho’”.

Embora, naquela época, no nosso Hospital, muitas pessoas fossem lá, como voluntárias, ligadas a uma associação da comunidade e levassem presentes, roupas usadas, enfim, donativos e ajuda de várias naturezas aos nossos pacientes, ela pôde perceber, com clareza, que o meu papel ali não era “dar coisas” para ela, mas, sim, “estar ali com ela”.

A partir desse nosso primeiro momento, as nossas conversas começaram a fluir.

 

9- Cliente se beneficiar do delírio? O que vc acha disso? Se ela se beneficia dele, então não vai querer superá-lo?!

 

Em relação a esse ponto, acho que já escrevi um pouco acima. Mas, vamos lá!

Penso que o “delírio” de um paciente é a forma que ele encontrou para organizar uma experiência pessoal dentro de si. Uma linguagem pessoal, complexa, envolta em vários simbolismos, que nascem de sua história pessoal, ou seja, da vivência pessoal.

O cliente, ao longo de sua vida, vive sua realidade de forma única, diferente de todas as outras pessoas. Cada objeto, cada lugar, cada palavra, cada situação vivida têm um significado de propriedade exclusivamente dele.

A forma de pensar, de perceber, de sentir de cada indivíduo, embora se possa assemelhar a de outras pessoas, guarda em si uma identidade única.

A maneira singular de ver o mundo ao seu redor determina também o significado próprio de cada delírio expresso por cada cliente. Isso me parece óbvio. Mas qual é a importância disso para nós e nosso relacionamento com nosso cliente delirante?

Superar o delírio, ou seja, parar de delirar, pode ter duas consequências: uma delas seria a perda da possibilidade de se comunicar com o mundo externo; a outra seria de se perder (sua identidade e seu mundo interior).

Até hoje, nunca vi um paciente delirante que, mesmo usando medicação adequada, tenha deixado o seu delírio de lado. Ele pode até delirar menos e, com isso, ter mais facilidade no contato com a realidade do mundo, em que a maioria de nós vive. Mas toda a vez que ele se sente precisando aprofundar o que deseja expor para nós, relativamente aos sentimentos mais profundos que experimenta, sempre busca o “seu delírio”, a expressão mais acabada e profunda de seu mundo interno e do seu problema principal.

Alguns colegas, profissionais “psi”, poderão até achar o que escrevi acima como uma observação equivocada de minha parte. Mas, o que tento mostrar é somente o que tenho conseguido registrar ao longo de minha experiência com pessoas portadoras de transtornos psicológicos graves.

Concluindo a minha opinião sobre esta sua pergunta, considero que, de fato, o cliente “usa o delírio”, porque precisa dele para se organizar externa e internamente. Considero, também, que ele poderá “superá-lo”, quando o delírio não lhe for mais indispensável para se sentir seguro. Quando ele sentir que está sendo efetivamente compreendido por outra pessoa, poderá até usar a comunicação delirante, mas utilizará, também, a linguagem da comunicação social de seu universo, de forma alternada.

Um cliente meu mostra-me muito bem isso. Ele se refere, atualmente, ao delírio, que antes era presente em quase cem por cento do tempo da sessão, da seguinte maneira: “o outro universo, o outro mundo, o outro planeta”. Consegue perceber que as outras pessoas vivem num universo, ou num mundo, ou num planeta diferente daquele onde ele vive.

Durante muitos meses, no início do atendimento a esse cliente, que já está comigo há mais de 5 anos, cheguei a anotar palavras e termos, bem herméticos, do seu discurso e, aos poucos, fui construindo um “dicionário”. Esse instrumento me deu, gradativamente, condição de entender o que ele me queria dizer, ao usar certos termos e certas palavras. O interessante disso tudo foi o que surgiu a partir daí. Ao perceber que “entendia o que ele me falava” e que “as outras pessoas não o entendiam”, começou a se referir a mim como o “clone”. Ele me perguntava: “Dr., o Sr. é meu clone?”

O fato de poder entender, pelo menos em parte, o que ele queria dizer com sua forma delirante de se expressar, criou entre nós um vínculo muito especial. Deu a ele uma dimensão mais objetiva da existência de dois “universos”, o dele (do qual conseguira participar, ainda que pouco) e o das outras pessoas (que não conseguiam entender o que ele dizia).

Ele também diferenciou a relação estabelecida entre nós dois e a dele com o seu psiquiatra. “Conversava” com ele, o seu psiquiatra lhe “dava remédios”. O mais interessante é que ele percebe essa diferença e valoriza os dois profissionais igualmente, pois deixa claro que “nós” (eu e o psiquiatra) o estamos ajudando na sua melhora.

Hoje, quando ele não se sente entendido (por estar delirando), reconhece que sua linguagem é complicada para os outros entenderem e que, se quiser ser entendido, precisa falar a “outra linguagem”.

Reconhece, também, que o que acontece com ele é decorrente de uma “doença”. Admite, hoje, depois de 5 anos, que tem uma doença que se caracteriza basicamente pela percepção bastante particular do mundo onde outras pessoas também vivem, o que faz dele um ser “diferente” em relação aos demais. Contudo, isso não inviabiliza sua participação no “mundo da maioria”. Ele sabe disso e, a cada dia, amplia seu território, sua participação no “planeta das outras pessoas”.

No início, era muito limitado, inclusive geograficamente. Só saía acompanhado, não participava de quase nada, socialmente falando.

Hoje, faz suas caminhadas – sozinho – pela manhã, faz compras, vai ao jornaleiro, ao cinema, viaja com a família… Conseguiu construir algumas pontes entre “seu planeta” e o “planeta das outras pessoas”.

Embora ainda muito distante de ter uma vida como a maioria de nós (e das pessoas de sua idade, 26 anos), tenho a sensação de estarmos num caminho promissor.

 

10- Os trabalho de Garry Prouty

 

De fato, EVOLUÇÃO TEÓRICA NA TERAPIA EXPERIENCIAL CENTRADA NA PESSOA . Sua aplicação nas psicoses esquizofrênicas e de atraso mental – Portugal, Lisboa: Editora Encontro, 2001, é um livro interessante. Vale a pena lê-lo.

 

11- Tenho tentado levar material expressivo para minha cliente, entretanto ela se tem recusado a fazer uso do material.

 

Considero todos os meios de expressão muito interessantes, principalmente quando o cliente se expressa pouco (ou pouco claramente) através da fala.

Em 1967 tive a minha primeira experiência em relação a esse recurso terapêutico: arteterapia.

Naquela época, lá no Hospital, havia um setor de TO, equipado com materiais de pintura, argila e outros. Os pacientes eram levados para lá, pelo menos uma vez por semana, e, além disso, tinham, em alguns momentos, liberdade para utilizarem aquele espaço, para fazerem, muitas vezes, sem acompanhamento de um profissional, o que quisessem.

Nessa ocasião, atendia um rapaz cujo diagnóstico era esquizofrenia, com delírios de conteúdos persecutórios. Além disso, era epilético, já apresentando um quadro comicial (crises sucessivas num curto espaço de tempo).

O que mais preocupava a equipe de tratamento era o fato de ele não aceitar remédios e encontrar meios, os mais espetaculares, de se livrar dos comprimidos que lhe davam para conter os ataques e os surtos.

Ao longo de um ano, esse paciente esteve em contato comigo e, depois de algum tempo, aproximadamente dois meses, começou a comparecer às nossas sessões, trazendo consigo um desenho. Dizia para mim que isso era para me pagar, já que era estagiário e não recebia nenhum pagamento para estar ali com ele (eu era voluntário).

Como de hábito, fui arquivando aquele material que ele me dava.

Depois de alguns meses já possuía muitos desenhos dele.

Num certo dia, por acaso, peguei o envelope dele, em que colocava os seus desenhos. Eles estavam em ordem cronológica e se mostravam progressivamente mais complexos. Todavia, ao passá-los em revista, uma, duas, três vezes seguidas, comecei a achar que havia uma certa coerência, uma certa mensagem subjacente naqueles desenhos.

Na sessão seguinte a essa minha “descoberta”, ele, como sempre, me trouxe um desenho e ARRISQUEI:

– Tenho a impressão de que estou entendendo o que você quer me mostrar nesse seu desenho. (Ele me olhou atentamente.) E continuei:

– Esta barra colorida é o hospital, esta outra é você, a que vem a seguir sou eu e esta última é o seu médico. Não é isso?

Quando acabei de lhe dizer isso, olhou fixamente para mim e falou:

– Como é que você descobriu?

Então, pequei todos os desenhos anteriores e fui mostrando a ele a relação entre o desenho daquele dia e os anteriores.

 

O resultado dessa minha “descoberta” foi que ele se disse sentir seguro na relação comigo, mas que tinha muito medo do seu médico e justificou essa declaração através do seu discurso delirante, que, num resumo do resumo, era o seguinte: considerava que o médico, ao lhe dar os remédios, queria prejudicá-lo (era um agente que queria destruir o seu cérebro) e eu, por estar sempre com ele, conversando, não dando medicação, etc., era um aliado dele (amigo).

Depois de conversarmos sobre todas essas coisas, pude ponderar com ele a real necessidade de ele tomar os remédios, para evitar uma série de consequências prejudiciais a ele próprio (tinha o rosto, a língua, o corpo quase todo cheios de cicatrizes, decorrentes dos tombos, das convulsões e das reações altamente impulsivas e agressivas, que apresentava com frequência).

A partir dali, começou a aceitar a medicação e sua melhora clínica, como um todo, foi visível. Foi, nesse caso, através do material expressivo desse paciente, que se tornou possível para mim penetrar no seu mundo.

Por isso, acho altamente rico esse recurso no atendimento de todos os pacientes e, principalmente, com os que, por alguma razão, têm dificuldade de se expressar de outras formas.

Para concluir este item, acrescento, apenas, que nunca proponho para o meu cliente a utilização desses recursos. Deixo-os disponíveis, visíveis, acessíveis a eles e, quando eles se interessam, buscam-nos. Parece que isso tem dado melhor resultado, especialmente no trabalho psicoterapêutico individual, de consultório.

 

12- Pacientes psiquiátricos, eles me fascinam e me instigam ao mesmo tempo.

 

Sem dúvida! É um grande desafio e, não raro, uma enorme frustração, quando “a porta da casa do outro” está com tantas trancas, que a gente não consegue entrar nela. A gente tem que aceitar ficar de fora.

Tenho um minúsculo trabalho escrito, que está na minha página, cujo título é EU QUERO PODER DIZER-LHES. Nele, falo dessa “casa” e dessa “porta”.

Com o cliente não psicótico, às vezes, já é muito difícil entrar. No caso de psicótico, tem-me parecido ser um trabalho hercúleo. Mas vale a pena, principalmente, se aceitarmos nossos limites nesse tipo de relação.

 

13- O que me segura ao lado dela, sempre, são as três atitudes e minha crença em sua tendência atualizante.

 

Realmente, as três atitudes básicas e o conceito de tendência atualizante têm-me parecido bastante suficiente para o trabalho clínico em geral. No trabalho com clientes com transtornos psicológicos graves, principalmente com aqueles que apresentam severas dificuldades de comunicação, tenho aprendido que a minha “espontaneidade”, a minha “descontração”, a qualidade de relacionamento que eu conseguir criar com eles é importantíssimo. Com eles, geralmente, falo mais, brinco mais, fico “mais maluco”, e isso tem sido valorizado por eles. Sentem-se mais próximos, mais confiantes, mais interessados na MINHA realidade. Tudo indica que essa forma espontânea de ser com eles e, principalmente com eles, tem criado pontes entre os nossos mundos particulares. Se eles se sentiam, até então, deslocados, “fora do universo das outras pessoas”, a aceitação da diferença deles em relação a mim parece ajudá-los e entender um pouco mais o quanto eles também são diferentes e que isso não os impede de estabelecer contatos construtivos. Parafraseando você, quando me escreveu: “sempre volto no ponto de partida; tornar-se pessoa…”, diria: quando eu me torno uma pessoa para ele, arrisca-se a fazer o mesmo em relação a mim e às demais pessoas.