FRAGILIDADES DOS SERES HUMANOS
Palestra realizada na M.E.C.A.
Araruama, 22 de agosto de 2009
Palestrante: Psicólogo José Luiz Belas
Caros amigos,
É com alegria que venho aqui, hoje, dividir com vocês algumas reflexões que fiz, durante as últimas semanas, sobre o tema sugerido pelos responsáveis por este encontro.
Ter sido convidado a falar para esta comunidade gerou em mim dois sentimentos:
O primeiro deles foi de preocupação, pois, como diz um escritor que admiro muito, Rubem Alves, (…) só se deve falar quando a fala melhora o silêncio. [1] Portanto, terá sido válida a minha presença aqui, e também válida a minha fala, se, ao final deste nosso encontro, vocês sentirem que pude acrescentar alguma coisa à experiência e ao conhecimento de vocês.
O segundo foi também de preocupação, mas diferente do primeiro. Este parecia estar mais próximo do medo. Medo de quê? Simples responder a isso. Não sou evangélico. Aliás, eu nem “sou”. Estranho? Não. Respeito todas as convicções religiosas, o que não significa que lhes seja adepto. Gosto de conversar e trocar ideias sobre religiões e me sinto bem não estando ligado a nenhuma. Isso me tem dado a sensação de liberdade para entrar nelas sem preconceitos, ouvir o que seus seguidores me contam sobre suas crenças e como a vivem na prática, no dia a dia.
Costumo ser muito questionador. Acredito que todos nós deveríamos ser assim. Esta atitude contribui para que, ao abraçarmos uma determinada filosofia ou ideia, sobre nós não recaiam dúvidas e inquietações desnecessárias.
Dito isto, vamos mais diretamente ao tema proposto.
O que é ser frágil? O que é fragilidade?
O que significa “ser” humano?
Por que será que, como nos diz Alves, São sempre as crianças que fazem as melhores perguntas? [2].
A imagem que imediatamente surge, quando falamos a palavra criança, é de fragilidade. As crianças são seres humanos frágeis. Mas… São mesmo? Em qual sentido ela é frágil? Pensaremos nisto depois.
Sempre que me solicitam falar sobre um tema, meu primeiro movimento é buscar, nos dicionários, os significados principais das palavras nele envolvidas.
As duas principais palavras sobre as quais esta minha palestra gira são: fragilidade e humano.
Quando pensamos em fragilidade, imaginamos algo pequeno, fino, quebradiço, de material pouco resistente, e, ao imaginarmos fortaleza, pensamos, de imediato, em uma coisa grande, robusta, rígida, de material resistente.
Fraco tem, no seu oposto, forte. E é aí, exatamente neste ponto, que começa a surgir a complexidade do tema, a confusão gerada pela maneira como usamos as palavras e o que queremos dizer através delas.
Vejamos, a seguir, alguns significados que encontrei no dicionário [3], atribuídos à palavra Fragilidade, e ao seu contrário, Fortaleza.
Fragilidade pode ser entendida de várias maneiras, tais como:
1. delicadeza: debilidade, fraqueza.
2. transitoriedade: impermanência, perecibilidade, precariedade.
Contrapondo-se à delicadeza, encontramos: dureza, força, robustez, tenacidade.
Contrapondo-se à transitoriedade: durabilidade, eternidade, imanência, imperecibilidade, permanência.
Humano, “ser humano”, pode ser resumido com a palavra “homem”.
Etimologia da palavra humano ( do latim humanus,a,um), ‘próprio do homem, bondoso, erudito, instruído nas humanidades’.
Homem, gente: criatura, humano, indivíduo, pessoa, ser mortal.
Etimologia da palavra homem (do latim homo,hómìnis) ‘homem, indivíduo, ser humano’.
Já de início, vê-se que as palavras que usamos corriqueiramente prestam-se a criar em nós muitas formas diferentes de ideias, valores e compreensão do mundo.
Podemos perguntar-nos: será que as fraquezas humanas estão sempre ligadas à fragilidade, à falta de força?
Atitudes fracas ou frágeis podem ser consideradas, muitas vezes, fortes.
Será que, nas ações fortes, nunca há fraqueza? Atitudes de força, fortaleza, não poderiam, às vezes, representar fragilidade, fraqueza? Forte é forte, e não há dúvida? Ou será que, eventualmente, as ações fortes podem demonstrar apenas a fraqueza de quem age? Por exemplo, numa briga, um homem consegue matar o outro. Neste caso, sem dúvida, consideraríamos que ele foi forte? Em quais sentidos ele pode ser considerado forte, e em quais, fraco?
O ser humano nasce frágil ou forte? Uma criança que acaba de nascer é fraca ou forte?
Entre os inúmeros fatores que provavelmente geram fragilidade no ser humano, vamos falar sobre um deles.
Tenho aprendido, no meu dia a dia, trabalhando com pessoas que se sentem frágeis, que o DESCONHECIDO gera medo e este as impulsiona a se defenderem, a se protegerem da ameaça. Dependendo do quanto se sintam ameaçadas, reagem FORTEMENTE, por se sentirem FRACAS, ou seja, reagem por temerem que o inimigo seja mais poderoso que elas e as destrua.
Um grande número de ações humanas, nas quais identificamos comportamentos que poderíamos chamar de fragilidades, são antecedidas por um sentimento de medo do desconhecido.
Para se proteger dos perigos do mundo, o homem, há muitos séculos atrás, inventou deuses e punha neles poderes suficientes para destruir qualquer coisa que ameaçasse sua vida. Pedia a esses deuses a força que eles próprios, homens, achavam que não possuíam. Desse modo, o homem poderia continuar sendo fraco, pois aqueles deuses o protegeriam.
É claro que, naquela época, os seres humanos não conheciam as causas de muitas coisas que havia ao redor deles: doenças, fome, fenômenos naturais como as chuvas, os ventos, as tempestades, as marés, e tantos outros, que, quando se manifestavam, podiam trazer a morte consigo. O medo surgia e o homem precisava desses seus deuses, inventados pelo pensamento mágico, por suas fantasias, para se sentirem em segurança, e tentarem compreender como agiam seus “inimigos”.
Com o passar do tempo, o homem começou a compreender por que aconteciam aquelas coisas que colocavam suas vidas em risco. Compreendeu o que era o relâmpago e construiu o para-raios, descobriu como se formavam as chuvas e construiu casas fortes, descobriu o que era um terremoto e fez construções que não caíssem sobre eles, descobriu o que causava algumas doenças (vírus, bactérias, protozoários, etc.) e foram criados remédios para elas. O que significa que, com o passar do tempo, o homem conseguiu defender-se de muitos “inimigos” e, nesse momento, não precisou mais desse suporte mitológico em que outrora confiava. O homem ficou forte e poderoso e, com isso, pôde controlar seu medo e encontrar formas de se proteger, sem precisar das religiões primitivas, de seus ídolos e seus rituais mágicos.
De fato, se pudermos acompanhar a história do ser humano, veremos que quase tudo já foi chamado de deus: um boi, um raio, o sol, a lua, a chuva, uma serpente, um gato, a água milagrosa, a planta milagrosa que tem poder de cura…
Mas, como falamos antes, esses deuses eram inventados com uma finalidade: suprir a fraqueza do homem, suas fragilidades, suas limitações como seres humanos. Os deuses eram a fortaleza e o homem, a fragilidade.
O que desejo argumentar neste meu texto é o próprio conceito que o homem aprendeu sobre Deus e por que precisa dEle para protegê-lo. E, mais, quero indagar sobre o que o homem entende por Deus, que ideia ele faz a Seu respeito, o que, ainda hoje, busca neste Ser Divino?
Certa vez, um amigo me perguntou se eu acreditava em milagres. Respondi-lhe que não. Ele, por ser muito religioso, ficou decepcionado com minha resposta. Mal podia acreditar no que lhe afirmara. Tentei, então, explicar-lhe:
– O que é um milagre? Milagre é a ocorrência de um fato desejado, mas, fora do comum e não explicável pelas leis da natureza.
No dicionário: 1. ato ou acontecimento fora do comum, inexplicável pelas leis naturais [4] ,ou ainda, 2. indício dessa participação, que se revela esp. por uma alteração súbita e fora do comum das leis da natureza[5]. Por exemplo: uma pessoa encontra-se muito doente. Os médicos já não sabem mais o que fazer para salvá-la. Alguém pede um milagre. Aquela pessoa melhora e sobrevive. Um milagre!!
Do mesmo modo que acontecia com o homem primitivo, que não entendia o que era um raio, quando essa descarga elétrica caía sobre sua plantação e queimava tudo, ele achava que isso era um castigo de deus. A pessoa que pediu para que a doente sobrevivesse, e ela vingou, por não poder explicar o que houve, diz que aconteceu um milagre.
Não vou discutir, aqui, se isso foi, ou não, uma intervenção divina. Quero apenas pensar esse fato de outro modo, ver isso que aconteceu por outro ângulo.
Desde pequenos, aprendemos a usar nosso cérebro para explicar tudo que acontece conosco ou ao nosso redor. Essa explicação obedece a algumas regras, às quais damos o nome de lógica, uma maneira por que necessariamente se encadeiam os acontecimentos, as coisas ou os elementos de natureza efetiva. Por exemplo: o tempo esfriou, porque há uma frente fria que vem do sul e atingiu nossa cidade. Falei e ele não escutou, porque é surdo. Percebam que a lógica nos mostra por que as coisas acontecem. É uma explicação clara, direta, que não nos deixa em dúvida. É um “pensamento reto”, linear.
Quando nos encontramos diante de fatos para os quais não encontramos uma explicação, a lógica não se lhes aplica e, portanto, ficamos espantados, confusos, sem respostas. Nessas horas tendemos, insistentemente, a buscar uma justificativa, uma razão para o que aconteceu. Todavia, não a conseguindo, lutamos o quanto podemos na esperança de obter as respostas que aliviariam a angústia resultante das nossas dúvidas.
O milagre é um acontecimento para o qual a gente não tem explicação, não vemos nele nenhuma lógica. Ele exige um “pensamento em curva”, não linear.
A visão lógica e reta não nos permite compreender e ver o que existe “por detrás dos fatos”. Quando eles se tornam inexplicáveis, vivemos uma experiência que exige de nós um “pensamento curvo”, ou seja, um tipo de pensamentos para os quais não estamos preparados.
Um exemplo disso nos é dado por Voltaire:
Voltaire cita Epicuro em sua exortação a Lisboa, ao concluir que ou Deus quer impedir o mal e não pode, ou pode e não quer, ou nem quer e nem pode. Mas, se quer e não pode, não é Deus; se pode e não quer, não é bom, o que é contrário a Deus. ‘Se quer e pode, o que é a única coisa compatível com a divindade, qual é a origem de todos os males?’ [pergunta o pensador grego] [6]. Até aqui, tentei mostrar que somos profundamente frágeis como seres humanos. Não podemos compreender nada que escape à lógica do nosso pensamento. Esse tipo de capacidade, esse poder de “ver em curva” não pertence ao homem comum.
Sabemos muito pouco sobre a maioria das coisas que vivemos. Para grande parte do que acontece em nossas vidas, não temos explicações, digo explicações seguras, claras, diretas. Tentamos somente arranjar pequenas justificativas, que, nem sempre nos convencem, mas que nos ajudam a ficar menos ansiosos, como se tivéssemos encontrado o porquê delas. Isso nos dá segurança, força, afugenta nosso medo do desconhecido e das coisas sobre as quais não temos controle.
Provavelmente, grande parte do que constitui a fragilidade humana reside na convicção dos homens que acreditam ter explicação para tudo, que não têm dúvida sobre o que significa a palavra “verdadeiro”.
Quando acreditamos saber o que é a verdade, cremos saber o que é a inverdade, a mentira. Quando acreditamos saber o que é certo, temos certeza de que sabemos o que é errado.
Tanto uma coisa quanto a outra nos levam a ver a realidade de forma pequena, pois, concretamente, sabemos muito pouco sobre ela.
O que acabei de afirmar pode parecer estar sugerindo que acreditar não é bom. Não é sobre isso que estou falando. Estou querendo, apenas, dizer que crença é uma coisa, verdade é outra. Crer não basta, pois nem tudo em que posso crer é verdadeiro. A verdade está acima da crença e não se submete a ela.
Mas essas duas palavras costumam ser compreendidas como uma só.
Vejamos:
CRENÇA: ato ou efeito de crer; 1. estado, processo mental ou atitude de quem acredita em pessoa ou coisa; 2. fé, em termos religiosos; 3. convicção profunda; 4. opinião manifesta com fé e grande segurança; 5. aquilo ou aquele em que se crê; o objeto ou alvo de uma crença; 6. no ensinamento medieval, fé religiosa, convicção na doutrina e nos ensinamento sagrados, considerados compatíveis e coerentes com a reflexão racional;
7.no empirismo moderno, disposição subjetiva a considerar algo certo ou verdadeiro, por força do hábito ou das impressões sensíveis.
Nas religiões, o que mais comumente se cultiva é a crença, o credo. O que, em geral, se imagina é que se uma pessoa crê, tem fé. Se tem fé, aquilo no que acredita é a verdade.
Acontece que as pessoas se equivocam quando pensam que basta acreditar para se ter fé. Fé é algo muito maior do que crença, é “superior”, é “mais importante”.
Mas, que a fé não seja cega. Pois, se assim for, sua força será passageira, e só norteará o homem na hora do desespero.
Como nos diz o personagem “Mestre Benjamin”, do livro de Alves[7].
Perguntaram-me se acredito em Deus:
O ar é nossa vida e não precisamos pensar nele nem dizer o seu nome para que ele nos dê vida. Mas o homem que se afoga do fundo das águas só pensa no ar. Deus é assim. Não é preciso pensar nele e pronunciar seu nome. Ao contrário, quando se pensa nele o tempo todo é porque se está afogando (…).
É preciso, então, que o homem encontre uma razão, um sentido, naquilo em que ele crê. Aí, sim, sua fé se potencializará e fará dele um sólido rochedo.
Fé é a crença absoluta, onde não há lugar para dúvidas. No dicionário encontramos: fé – confiança absoluta (em alguém ou em algo); e, a seguir,essa palavra assume o significado, e se confunde com religião: fé –‘sistema de crenças religiosas; religião’ [8]. Alcançar a fé talvez seja a meta de todos aqueles que crêem.
A crença surge quando alguém, em quem confiamos, afirma: Deus existe.
A fé surge depois disso. Toma o homem num momento inesperado, converte-o, modifica seu olhar, fazendo com que, a partir deste instante, o mundo passe a ser visto e entendido de um modo completamente diferente.
A fé em Deus faz com que a pessoa se transforme num verdadeiro “filho de Deus”. Deixa de ser um simples homem e passa a ser imagem e semelhança do seu próprio criador. Adquire poder, deixa de ser frágil, mas, insisto, ele se transforma não pela crença, mas, sim, pela fé genuína.
Lê-se, em Hebreus, 11.1-3, o seguinte:
1 Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem.
2 Porque por ela os antigos alcançaram testemunho. Pela fé entendemos que os mundos pela palavra de Deus foram criados; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente.
Neste instante, retomo o início da minha fala.
Há quem imagine que o homem que tem fé, sendo forte, não poderia ser frágil. Demonstraria sempre sua força e lutaria com bravura para vencer todos os obstáculos que a vida viesse a lhe impor. Nada disso! Sua força caracteriza-se por sua capacidade de “abandonar-se”, não lutar cegamente, não se desesperar diante do inimigo.
O homem que possui a força da fé consigo é sereno. Usa “seu poder” (dado pela fé) de modo tranquilo, seguro, pois sabe que, para muitas coisas que acontecerão em sua vida, não terá resposta, nem saberá como enfrentá-las. Contudo, por ter fé, por ter certeza que possui os dons que recebeu do seu Criador, e que, entre eles, não está a onipotência nem a onisciência, aceita suas fragilidades.
Diante de suas fraquezas, o homem de fé passa a fazer delas armas para se tornar forte, pois, somente quando reconhece seus limites para andar por caminhos difíceis, é que tem chance de construir as melhores estradas para sua vida.
Somos limitados, imperfeitos, frágeis. Ter consciência disso, talvez seja nossa maior fortaleza. Principalmente se não virmos neste fato alguma coisa que nos faça menores, inferiores, mas simplesmente humanos.
Notas de fim de texto
[1] ALVES, Rubem. Perguntaram-me se acredito em Deus. São Paulo: Ed. Planeta, 2007, p.
79.
2 Ibidem.
3 HOUAISS. Antônio. Dicionário Houaiss de sinônimos e antônimos da língua portuguesa. Instituto Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
4 Ibidem.
5 Ibidem.
6 Disponível em http://www.rabisco.com.br/31/voltaire.htm
7 ALVES, Rubem. Perguntaram-me se acredito em Deus…
8 HOUAISS. Antônio. Dicionário Houaiss de sinônimos e antônimos da língua portuguesa