CRÔNICAS E CASOS – Sob a proteção de São Miguel

 

                                       SOB A PROTEÇÃO DE “SÃO MIGUEL”

                                             JLBelas –  2006

Na verdade, o primeiro nome do “santo” era João. E… também, na verdade, ele estava longe de ser um santo.

Acontece, porém, que talvez o título de santo lhe caiba bem, não por suas ações em geral, mas por aquelas que EU valorizava nele.

Mas vamos entender esta história melhor. Vou tentar explicá-la a vocês!

Tinha eu meus 9 anos feitos. E, como escrevi em outra história que contei antes desta, morava numa rua sem saída. Ela era pequena, simpática e ideal para crianças viverem. O chão era saibro puro, cheio de pedrinhas que fazem das solas dos nossos pés verdadeiros cascos, os quais nem prego se atreve a furar.

Entre as brincadeiras preferidas por todos nós que morávamos lá, estava o jogo de futebol e, num determinado horário do dia, aquele lugar era perfeito para nos lançarmos, de corpo e alma, na busca dos gols, acompanhados de gritos da garotada ali reunida.

Você, talvez, esteja imaginando que minha rua era um pedaço do “céu”, que – por descuido do Criador – caíra aqui na Terra. Até certo ponto, era. Mas, onde há meninos de 9 a 14 anos, é difícil que só haja entre eles “anjos”. A crueldade, típica desse período da vida, também morava ali e vivia no coração de alguns meninos mais bem providos pela genética, que lhes brindara com ossos mais longos e músculos mais fortes.

Pois é. Eu estava fora desse grupo de “supermeninos”. Era pequeno e magro. Um prato cheio para ser degustado por aqueles “cruéis” colegas de futebol, e de outras brincadeiras, da minha rua.

De vez em quando, para piorar as coisas “pro” meu lado, outros meninos de ruas próximas, igualmente bafejados pela “sorte biológica”, talvez tentados pela alegria que reinava em nossas brincadeiras, se aproximavam e “invadiam” o nosso mundo. Para que eles pudessem participar, alguém tinha que ficar de fora. E, como era de se esperar, os mais fracos saíam para os mais fortes entrarem.

Nem preciso dizer que, nessas ocasiões, eu “dançava” e, quando protestava, tinha que enfrentar situações bem complicadas e doloridas, ou seja, brigas e pescoções daqueles brutamontes (era assim que eu os via). O inferno era, agora, ali.

Tudo costumava ir mal “pro” meu lado, quando o meu “anjo da guarda” estava de folga. Mas é interessante dizer-se, ele quase não descansava e, na maior parte das vezes, aparecia como meu grande salvador. Era ele o meu “São Miguel”.

Mas, quem era esse tal “santo” e por que insisto em chamá-lo desse modo, sempre entre aspas?

Negro, baixinho, cabeça raspada, mal-encarado na maior parte do tempo, mas com um sorriso (disponível somente para os amigos) fantasticamente radiante e iluminado. Um capetinha.

Meu “santo protetor” recebera no batismo o nome de João Miguel. O pai dele se chamava José, como eu. Um homem robusto, que disciplinava os filhos na base da “vara de goiabeira”.

Não sei se vocês sabem, mas o pé de goiaba tem uns galhos compridos e finos, resistentes e flexíveis. Quando se tira a casca deles, transformam-se em fantásticos chicotes. E era com eles que seu José amaciava (ou tentava amaciar) o gênio encapetado do filho, que, a cada dia, aprontava uma das boas.

João Miguel era um rebelde sem causa, um estudante que relutava em sair da alfabetização. Era um desafio para suas professoras das escolas públicas daquela época. Ninguém conseguia fazer com que aquele danado aprendesse um bê-á-bá na velha cartilha, em que se aprendia a ler: “vo-vó viu a u-va, etc., etc…”.

A coisa era tão complicada que, praticamente, ninguém mais se atrevia a enfrentar aquele desafio: fazer o João Miguel aprender a ler.

E foi aí que a “beatificação” dele teve início.

Dona Alcina, minha saudosa mãe, era uma pessoa educada, religiosa, simples e gentil. O dom de ensinar nascera com ela. Embora tivesse feito somente o antigo “curso primário completo”, isso entre os anos 1924 e 1929, aprendeu o suficiente para falar e escrever com bastante correção, o que foi capaz de fazer dela uma “professora” por vocação. Seus métodos eram muito eficazes e, por sua “sala de aula” (uma mesa tosca, colocada numa sombra vespertina, gostosa, dada pela parede lateral de nossa casa), passaram muitas crianças que eram consideradas “casos perdidos”. Entre elas estava o nosso João Miguel. Ela o ensinou a ler e a escrever!!! Milagre!!! Diziam os pais dele. Felizes pelo fato de o filho, finalmente, sair da lista dos “sem futuro”.

Hoje, revendo todos estes fatos, fico pensando se não teria sido por gratidão à minha mãe que ele, o meu “São Miguel”, me protegia.

Talvez ele tenha lançado, em 1949, o que hoje está muito em moda: profissão, Guarda-Costas de crianças.

Durante dois anos, vivi sob a proteção dessa pessoa profundamente controversa: amada por nós, mas temida por muitos. Seu temperamento oscilava entre a doçura e a acidez extrema. Entretanto, quem pode afirmar que todos os santos, de verdade, foram somente doces, não é?

                                      

 

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