UM TERAPEUTA NITEROIENSE
Síntese da palestra proferida em julho de 1996
INEF-Niterói-RJ
INTRODUÇÃO
“Um terapeuta niteroiense”
Quando resolvi estudar Psicologia, poucos cursos existiam no Rio de Janeiro e nenhum em Niterói. Por isso, fiz meus estudos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo terminado minha graduação em dezembro de 1970.
Por esta época, já me havia dedicado bastante ao trabalho clínico e vivenciado minha prática junto à clientela do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba e do CeJOP (Centro Juvenil de Orientação e Pesquisa).
Em janeiro de 71, comecei minha clínica particular, juntamente com mais dois amigos psicólogos. Criamos uma sociedade jurídica, uma firma, cujo razão social era “Centro de Orientação Psicológica Carl R. Rogers” (nossa homenagem ao querido mestre, que nem sabia que existíamos nessa pequena cidade, provinciana, de um país do terceiro mundo). Ali, começamos um grupo de estudos sobre a Terapia Centrada no Cliente e reunimos vários amigos e colegas de diversas áreas de atividade: um médico, uma orientadora educacional, um filósofo, um professor da UFF ligado à área da educação, uma psicanalista, uma psicóloga, dois psicólogos. Este grupo conseguiu reunir-se quase todo, semanalmente, durante cinco anos. Essa talvez tenha sido a experiência mais profunda que vivi, enquanto estudo da teoria rogeriana. Era um grupo de pessoas realmente interessadas naquele estudo e muito contribuíram para meus questionamentos sobre o que nosso inesquecível mestre havia escrito até então.
Mas, verdadeiramente, foi o próprio Rogers que me alertou para o trabalho que eu estava realizando, mostrando que ele era algo que se ia distanciando, de certa forma, do que ele próprio fazia, como ficará esclarecido no decorrer desta minha exposição.
Poderia dizer que as citações que virão a seguir ilustram o que, nas ideias iniciais de Rogers, me fascinava:
(…) parece já estar claro que estamos lidando com material de natureza nova e significativa, que exige uma exploração cuidadosa e mente aberta. Se nossas formulações estiverem corretas, então poderemos dizer que alguns elementos importantes já se sobressaem: certas atitudes e habilidades básicas podem criar uma atmosfera psicológica que libera, solta e utiliza poderes profundos do cliente; esses poderes e capacidades são mais sensíveis e resistentes do que antes se supunha; e são liberados num processo ordenado e previsível que pode ser provado como fato básico significativo em ciência social, tal como algumas das leis e processos previsíveis nas ciências físicas”. (Aspectos significativos da terapia centrada no cliente. Rogers, C. 1946/apud Wood, J. K. 1994)
Explicando melhor, minha formação, anterior à descoberta da Psicologia como possível profissão, chegou a passar pelo curso de Matemática e Física, UFF (1962), e isso ajuda a entender meu fascínio por um tipo de terapia que pudesse ir além de uma bela teoria, mas que permitisse um estudo mais fundamentado, mais científico da atividade clínica. A teoria rogeriana parecia-me, na ocasião, exatamente o que estava buscando: uma ligação entre o subjetivo e a objetividade. Ela nos trazia um belo desafio. O desafio de unir a vivência fluida do encontro terapêutico ao método científico e, assim, garantir um espaço de maior reconhecimento junto a outras ciências, aceitas como tal no nosso contexto social e cultural.
Naquele momento, a disputa profissional era grande entre os médicos e os novos profissionais que estavam sendo lançados no mercado: os psicólogos. Estes começavam a chegar em número cada vez maior e acabavam tirando dos médicos, por lei, uma parcela significativa de sua clientela.
Os argumentos mais fortes de que os médicos dispunham eram baseados na não cientificidade das teorias que se preocupavam com a dinâmica do comportamento humano. Escapava desse critério, e eu não entendia na época o porquê a Psicanálise era um monopólio da classe médica.
A teoria rogeriana, entre as que existiam na época de sua formulação oficial, era a que se mostrava mais próxima daquilo que se poderia chamar de científica. Parece que o próprio Rogers se orgulhava disso e, quase sempre, citava algumas palavras que demonstravam sua preocupação em deixar bastante claro que fazia “ciência”.
Acho que, por tudo isso, por minha insegurança de principiante, por temer ser questionado naquilo que fazia em minha atividade clínica, considerei que as ideias de Rogers eram as que mais me davam segurança e combinavam melhor com meu modo de ser.
Quando ainda tínhamos nosso grupo de estudo, no meu consultório, resolvemos escrever para o Centro de Estudos da Pessoa, em La Jolla, Califórnia.
Informamos a Rogers que existíamos, que líamos sobre suas ideias, e lhe solicitamos material, textos mais atualizados, para ampliarmos nossos conhecimentos sobre suas teorias. Ficamos imensamente felizes quando, algumas semanas após, recebemos um grande envelope contendo vários artigos, bibliografia e indicações de lugares e cursos que eram realizados na Califórnia.
Nessa ocasião, tínhamos um grupo de estagiários no “Setor de Psicologia do Hospital de Jurujuba” e organizamos uma publicação na qual os estagiários escreviam sobre suas vivências.
No segundo número dessa revista, havia um artigo que eu escrevera sobre o relacionamento terapêutico, tal como eu o concebia e praticava.
Pensei, equivocadamente, que tudo o que eu relatava ali poderia ser “definido” como exatamente aquilo que Rogers fazia na sua experiência como clínico. Poderíamos dizer que eu acreditava ser, naquele momento, um “discípulo” de Rogers, e que ele era meu guru.
Não tive dúvidas. Providenciei uma tradução do meu artigo para o inglês e tomei cuidado para que isso fosse feito por alguém muito especial, que pudesse passar para Rogers, o mais exatamente possível, meu pensamento, “espelho do pensamento dele”, claro, dentro de minhas fantasias.
Feito isso, mandei esse material para a Califórnia. Alguns dias depois, recebi sua resposta e, com ela, uma grande surpresa: ele havia lido meu artigo e feito um comentário que, na hora em que o li, provocou em mim uma tremenda decepção.
Disse ele: “Caro José Belas…
Gostei do seu artigo sobre seus métodos terapêuticos“.
01 de agosto de 1975
Equivocadamente, entendi essa observação do Rogers como uma “reprovação numa prova de exame final”. Foi como se ele me tivesse dito: Você não é um dos nossos!
A confusão na minha cabeça foi passando com o transcorrer dos dias, dos meses, dos anos…
Nosso grupo de estudo foi interrompido por volta de 1976, embora nunca seus membros tenham deixado, totalmente, de manter contatos e trocas de opiniões e de experiências.
Comecei, em 82, a trabalhar mais detidamente no conceito de self, fundamental para o método de “terapia complementar”, que acabei vindo a desenvolver e que tento aperfeiçoar cada vez mais.
Fui, aos poucos, descobrindo que, como Rogers havia falado em 75, estava criando os meus próprios métodos. Resolvi parar de falar sobre a teoria rogeriana, temendo não ter mais certeza se o que estaria a falar corresponderia, de fato, ao que ele pensava.
Preferi falar por mim mesmo, baseando-me sempre nas minhas vivências e observações.
Todavia, algumas ideias lançadas por Rogers em 47 ainda pareciam boas e atuais para dar início ao meu trabalho. Entre elas destacaria, por exemplo:
Se levarmos a sério a hipótese de que a integração e o ajustamento são condições internas relacionadas com o grau de aceitação ou não aceitação de todas as percepções, e o grau de organização destas percepções em um sistema consistente, isso afetaria decididamente nossos procedimentos clínicos… Isso significaria minimizar ou abandonar os procedimentos clínicos que utilizam a modificação das forças ambientais como método de tratamento. Isto se apoiaria no fato de que a pessoa internamente unificada tem maior probabilidade de enfrentar construtivamente os problemas ambientais, quer como indivíduo quer em cooperação com outros.
Enquanto a Psicologia, em estudos de personalidade, tem-se preocupado primeiramente com a medição de qualidades fixas do indivíduo, e com seu passado, a fim de explicar seu presente, as hipóteses aqui sugeridas pareceriam relacionar-se mais com o mundo pessoal do presente, como forma de compreender o futuro, e com a predição de que no futuro haveria maior preocupação com os princípios pelos quais a personalidade e o comportamento são transformados, assim como em que extensão estes permanecem fixos.
(…) a terapia centrada no cliente tem-nos guiado a tentar adotar o campo perceptual do cliente como base para uma compreensão genuína.
(…) o comportamento parece ser mais bem compreendido como reação a esta realidade – tal como é percebida pelo cliente.
Descobrimos dentro da pessoa, sob certas condições, certa capacidade para a reestruturação e a reorganização do self, e, consequentemente, para a reorganização do seu comportamento,(…) (Algumas observações sobre a organização da personalidade. Rogers, C., 1947/apud Wood, J. K. 1994.)
A HISTÓRIA DOS CLIENTES E A MINHA PRÓPRIA HISTÓRIA
Tenho a sensação e quase a certeza de que a herança maior que recebi dos meus pais está contida em vários álbuns de fotografias. Esses álbuns contam, de modo fantástico, a minha história, desde o meu nascimento até aproximadamente os meus 20 anos.
Colecionar fotografias parece ter sido um dos hábitos de meus pais. Fotos da família inteira: avós, tios, tias, primos… paternos… maternos. Retratos de amigos, vizinhos, lugares…
Sempre me fascinou folhear aqueles álbuns. Parecia que ouvia sempre as estórias que meus pais me contavam sobre cada foto, cada momento que elas cristalizaram.
Num determinado momento de minha vida profissional, senti que as histórias de meus clientes eram muito fragmentadas. Muitos deles diziam não se lembrar de grande parte de suas vidas. Às vezes, décadas eram sentidas por eles como um enorme vazio.
Inicialmente, não consegui perceber uma correlação entre essa sensação de espaço em branco em suas histórias e a sensação que eles tinham de não compreensão dos problemas que traziam para a terapia. Foi por acaso que me dei conta da existência de algo dessa natureza.
Comecei a trabalhar sobre algumas hipóteses. Entre elas, citarei as seguintes:
1- Uma pessoa, que nos procura para uma ajuda psicoterápica, invariavelmente apresenta uma única queixa: sente-se rígida. Em outras palavras, não consegue deixar de realizar determinadas ações. Mesmo desejando desfazer-se delas, não consegue mudar;
2- Essa dificuldade de mudança parece estar sempre associada a uma maneira de perceber tanto a sua realidade externa como a interna, ou seja, o modo como percebe a si mesmo e ao seu meio sempre é semelhante, e parece-lhe impossível promover qualquer tipo de alteração via razão, intelecto;
3- Paralelamente à rigidez, que acarreta a dificuldade de mudança de sua realidade, o cliente experimenta uma sensação de “não compreender o que o impede de caminhar na direção que lhe permitiria resolver seu problema”;
4- Tal impedimento nos parece ocorrer por falta de elementos históricos que lhe possam dar condições de preencher lacunas necessárias para a percepção mais nítida e precisa do como, ao longo do tempo, um tipo de atitude foi sendo construído nele. Tudo indica que isso contribuiria para se tornar identificado com o seu modo de ser, rígido, ou seja, na medida que fatos foram “arquivados e desviados durante a história do cliente e não estão mais disponíveis para ele”, o que ocorre? Surgem lacunas. Essas lacunas impedem a compreensão da dinâmica da estrutura do que se denomina de self 5- Se conseguirmos acrescentar, nem que seja minimamente, elementos novos a essas lacunas, de tal modo que a sequência histórica fique mais completa, ocorrerá uma ampliação na compreensão da dinâmica do comportamento do cliente e, além disso, contribuir-se-á para que ele comece a caminhar no sentido do “movimento”, da “não rigidez”;
6- Uma vez que comece a sair da rigidez, experimentará uma necessidade crescente de “movimento” e de “flexibilidade”, o que corresponde ao que comumente se chama de “cura”;
7- Para que esse processo de mudança ocorra, temos utilizado um método complementar de terapia que denominamos Recapitulação Progressiva da História Pessoal, até bem pouco tempo atrás chamado de RHP ou Recapitulação da História Pessoal;
8- Temos observado, nos 14 anos de utilização desse método, que, quando recapitulamos progressivamente a história de uma pessoa, ajudando-a a perceber, num estado alterado de consciência, detalhes referentes:
a- ao mundo em que ela viveu, com suas características, valores….
b- ao modo como as pessoas que conviviam com ela a percebiam, como a julgavam…
c- aos sentimentos experimentados dentro de si em relação às pessoas que habitavam seu mundo a cada ano de sua existência…
d- ao modo como o cliente percebia a si mesmo, como se julgava….
e- ao que, ainda hoje, sente como significativo naquele momento passado de sua vida e o modo como aceita ou não o que viveu…
f- a seus sentimentos em relação a si mesmo, quando se depara com uma imagem sua, antiga, que está sendo reencontrada pelo cliente durante a sessão de recapitulação…
g- ao se dar conta do significado que uma fase de sua vida tem, ainda hoje, para si…
Se o cliente entrar em contato com sua história de forma mais organizada, então ocorrerá nele um fenômeno muito interessante, ao qual se poderia chamar de processo terapêutico, assim caracterizado:
a- a pessoa, progressivamente, começa a ver sentido no seu modo de ser, a se compreender;
b- ela começa a se aceitar mais plenamente, e o mesmo ocorre em relação aos demais;
c- arrisca mudar o seu comportamento, torna-se mais fluido, mais seguro e mais criativo;
d- inicialmente passa a usar o passado como seu aliado e não como seu carcereiro e, no fim do processo, seu presente passa a ser mais confiável para a construção de seu futuro.
Para finalizar, gostaria de esclarecer que meu trabalho atual não se limita à aplicação da RPHP a todos os meus clientes. Um número relativamente pequeno de pessoas atendidas por mim está passando por esse processo no momento. Para ser mais preciso, exatamente oito. Todavia, já tenho cerca de oitenta casos registrados em atendimentos individuais através de produções gráficas expressivas, questionários respondidos, videoteipes…
Na minha atividade clínica, do consultório, neste mês, fiz o último registro de clientes, o qual recebeu número 1.053. Atualmente, a cliente mais jovem que atendo tem 6 anos (tenho contato somente com seus pais) e a de mais idade tem 86.
No Hospital de Jurujuba estou, no momento, trabalhando com dois grupos de terapia e em vários atendimentos individuais.
Os grupos coordenados por mim são compostos por pessoas com diferentes diagnósticos psiquiátricos. Neles, há também outras que costumam ser definidas como “normais”. As idades e os graus de instrução dos participantes são bastante variados.
Meu objetivo, nesse tipo de atividade grupal, é reunir pessoas, não me importando com o diagnóstico, o nível social ou cultural delas.
Nos atendimentos que poderíamos chamar de “tradicionais”, ou seja, o terapeuta sentado à frente do cliente, num contato humano, fluido, não programado, não estruturado… o processo de ajuda caminha para o mesmo fim daqueles que obtemos através da RPHP ou dos grupos. O resultado final tem-se mostrado muito semelhante, ou até igual.
Na verdade, embora seja um método muito eficaz para muitas pessoas, permanece sendo uma alternativa adequada a alguns clientes. Essas pessoas costumam ser as que apresentam um grau elevado de dificuldade para compreenderem a si mesmas, por vivenciarem um nível alto de “desorganização de sua história” e, por conseguinte, de dinâmicas elementares de seu comportamento.
Para concluir este meu texto, gostaria de descrever um pouco, através de um exemplo real, como sinto o que seja o processo terapêutico.
Usarei para isso um poema que uma jovem, minha cliente, adolescente, escreveu para mim, em junho de 96. Achei o modo como ela se expressou tão significativo, que lhe pedi autorização para citar suas palavras.
Sinto que o que ela expressou para mim é um rico material para nós, que trabalhamos em clínica, pois representa um belíssimo feedback de como o seu processo psicoterápico se deu, as implicações, e as sobreimplicações, a dinâmica da relação, as mudanças que ocorrem durante o encontro terapêutico, no cliente e em nós, terapeutas.
Identifico em qualquer encontro terapêutico uma relação amorosa, sincera, inteira, congruente… Uma relação onde o profissional e o cliente devem estar comprometidos numa mesma busca, a busca do “nível melhor, mais possível, mais evoluído, mais completo, mais coerente, mais real, mais compreensível de nós mesmos”.
Não há somente crescimento do cliente na relação: há crescimento da relação. E o terapeuta, obviamente, não poderá ficar fora disso.
QUE É UM PSICÓLOGO?
Não é lógico,
É mágico.
Pode ser a ilusão de uma paixão
Que não te faz ver, o mundo, com a mesma emoção…
Não há coração que aguente
Essa corrente de água ardente.
Que cantando sai te cortando
Por fora e por dentro.
Como se fosse um metrô
Que com lâminas, em vez de rodas,
Corta teu coração
Como ondas perigosas de uma depressão.
Por que não uma ajuda
De um amigo verdadeiro
Que, sem nenhum roteiro,
Te faz fazer uma viagem
Totalmente diferente de todas já vistas até hoje.
Uma viagem inesquecível…
Ela não tem paisagens com árvores e pássaros.
Apenas o teu próprio sorriso nos lábios…
É incrível:
Como há pouco atrás eu estava chorando,
E mal comecei a pôr o pé na estrada,
Já estou sorrindo.
Essa viagem tem o sentido para a consciência.
E que me ensinou a ver com outros olhos a convivência
com um mundo hostil e de dúvidas que todos nós,
Com essa idade, costumamos viver.
Obrigada.