Psicoterapia/ Teoria e Prática
J. L. BELAS – FEV. 2002 – Revisado em abril de 2004
________________________________________
Nota Inicial: Comecei a trabalhar com psicóticos quando ainda estava no 2o ano do meu curso de Psicologia, na UFRJ. Isso foi em 1967. Desenvolvi essa atividade numa instituição psiquiátrica pública, no Hospital Estadual Psiquiátrico – Jurujuba –Niterói – RJ. Nessa época, ainda era estagiário. Depois que me formei, fui contratado pela mesma instituição. Permaneci nela até novembro de 1998, quando, então, me aposentei do serviço público. Hoje, no meu consultório particular, ainda continuo atendendo pessoas portadoras desse transtorno.
__________________________________________________________
O que basicamente caracteriza a psicose é uma desconexão com a realidade, com a lógica, com o “senso comum”, ou qualquer coisa deste tipo. Entende?
Nem sempre o que a gente percebe num psicótico parece distante do que se observa também numa pessoa “normal”. Esse fato pode trazer – algumas vezes – uma certa confusão: onde está o limite entre uma coisa e outra, o não psicótico e o psicótico?
Quando mantemos um contato mais demorado com psicóticos, mesmo com aqueles que apresentam uma estrutura mental bem preservada, eles acabam mostrando-nos uma série de sintomas que revelam o seu modo peculiar de perceber a realidade e interagir com ela.
As pessoas que não convivem diretamente com psicóticos costumam ter uma ideia pouco clara sobre como é o atendimento psicoterápico a esses clientes, ou seja, de que forma ele é atendido e o que se espera dessa ajuda.
Se considerarmos que o psicótico é uma Pessoa Humana, será fácil entender-se que, como tal, ele deverá ser atendido do mesmo modo que qualquer outra pessoa. Mas o que isso significa realmente? Significa que ele tem suas ideias, seus desejos, seu modo típico de ser, sua subjetividade… como todo mundo tem.
O seu mundo é diferente do mundo da maioria das pessoas que nos rodeiam, seu modo de focalizar sua realidade pode parecer estranho, mas é exatamente aí – nessa sua visão “ilógica” do que o cerca – que precisamos penetrar e tentar compreender seu significado. Essa tentativa de compreender esse mundo, essa busca que realizo com meu cliente, faz de nós dois “cúmplices de uma nova lógica”, que nos interliga, por meio de uma fala, que, para muitos, poderá parecer hermética, mas que faz todo o sentido para mim e para ele.
Para atender um psicótico, é preciso que o profissional também fique “psicótico”, mas mantenha a consciência da sua “psicose temporária”, que precisa ser vivenciada num encontro terapêutico.
O que você faz poderia ser considerado um método? Você me pergunta. E eu lhe respondo que sim. Uso um método. Esse método se fundamenta no que, teórica e filosoficamente, norteia a terapia centrada na pessoa.
O fundamental nesse enfoque teórico é a crença na capacidade da pessoa para organizar suas experiências, crescer, evoluir, etc., desde que o terapeuta, ou alguma pessoa que esteja atuando numa forma de ajuda efetiva, consiga estabelecer um tipo de relacionamento humano, no qual estejam presentes algumas condições, consideradas essenciais e básicas. Essas condições são: uma compreensão empática, uma aceitação incondicional do outro e uma atitude congruente por parte do terapeuta.
Falar em profundidade, aqui, sobre essas condições, e como elas operam dentro da estrutura do encontro terapêutico é difícil, por se tratar de um tema muitíssimo longo e complexo. Nenhum exemplo que eu possa dar, neste momento, tenho certeza, deixará claro o que de fato acontece, pois isso dependeria de um conhecimento amplo, de uma prática e de uma vivência significativas, por parte do leitor, nessa abordagem.
Mesmo assim, arriscarei escrever algo que possa transmitir para você um pouco do que faço, e de como faço. Espero que isso lhe permita compreender, pelo menos um pouco, o tipo de ajuda que tento dar ao meu cliente, portador de um transtorno psicótico.
Quando escuto, atentamente, meu cliente (psicótico ou não), sem me preocupar com diagnósticos, julgamentos morais, éticos, ou com outros de qualquer natureza; quando estou ali, com ele, o mais “presente” possível, sendo eu do modo como sou (sem me esconder atrás de máscaras profissionais), ocorre, então, um “fenômeno” muito significativo: o outro se mostra. E, nesse mostrar-se, há algo novo: a possibilidade de ele ir além da percepção que, até então, tinha de si. Em outras palavras, ele começa “realmente” a se conhecer e a se compreender e, possivelmente, em decorrência desses dois fatores – conhecimento e compreensão – inicie um processo de aceitação de si, de ampliação de sua imagem, de seu eu, de sua pessoa.
Essa ampliação gera mudanças no seu modo de ser, de se ver, de ver os demais, e de ver a própria realidade na qual ele vive, e que, muitas vezes, é distorcida pela visão equivocada e limitada que possuía antes.
Duas questões as pessoas sempre costumam trazer para mim, quando falo sobre psicoterapia com psicóticos. A primeira é sobre a transferência nesse tipo de tratamento, a segunda é sobre a cura na psicose.
Vamos começar pela questão da transferência.
O trabalho que desenvolvo não enfatiza a transferência como elemento central do processo terapêutico. Nesse método, não temos como elemento essencial do tratamento a representação, por parte do terapeuta, de figuras significativas, prototípicas, da infância do cliente. Os sentimentos afetivos que surgem, no contato do psicoterapeuta com o cliente, não serão interpretados, avaliados ou julgados como sendo representativos dos afetos infantis daquela pessoa, mas, sim, como qualquer outro sentimento que possa ser expresso num contato entre dois seres humanos, no aqui e no agora.
O que tenho vivido e aprendido, através desses relacionamentos, é que tais expressões afetivas, se surgirem, precisam ser aceitas e compreendidas a partir do contexto no qual o cliente vive/viveu.
Recuperar sentimentos de amor, de ódio, sejam eles originados do passado ou do presente do cliente, sempre é uma forma de crescimento, de ampliação de si. E, como falei anteriormente, quando uma pessoa consegue expressar emoções, sentimentos que até então não aceitava em si, ela toma contato com partes desconhecidas de sua pessoa. Aprende, desse modo, a se ver, se rever, se reconhecer, se ampliar, a ser mais o que ela, de fato, é.
Se tudo isso ocorrer num clima em que aquelas atitudes básicas, às quais me referi anteriormente, estiverem presentes na relação, aquela pessoa certamente terá a possibilidade de “crescer”, “mudar”, chegar mais próximo de sua verdadeira maneira de ser e de se aceitar como uma pessoa única.
Ocorrendo isso, atingindo-se esse nível no processo terapêutico, finda um impasse: o conflito entre ser verdadeiramente o que se é, ou ser o que se aprendeu sobre como deveria ser.
Agora, vamos à outra questão que é psicoterapia e cura na psicose.
Todas as pessoas são “terapáveis”!
Quando eu afirmava isso, nas reuniões do Hospital Psiquiátrico, inicialmente, alguns colegas meus riam de mim. Com o tempo, puderam entender o que eu dizia.
O que afirmo, quando digo que todas as pessoas são “terapáveis”, é que, se eu estiver disposto a realmente ouvir, entender, aceitar, me mostrar congruente no meu relacionamento com qualquer pessoa (não importa a idade, o sexo, o diagnóstico…), ela terá uma chance de ampliar a percepção que tem de si mesma. Com isso, mudará seu comportamento, mesmo que minimamente.
Assim, se a minha intenção – como terapeuta – não for a de transformar o meu cliente numa pessoa “certa”, ou “errada”, ou “boa”, ou “ruim”… mas, pelo contrário, a de tentar ajudá-la a ser mais ela própria, seja lá o que ela for, então todas as pessoas poderão ser ajudadas, “terapadas”. Entende?
É necessário, neste momento, que se esclareça o seguinte: numa abordagem centrada na pessoa, partimos de um ponto fundamental que é a crença na tendência natural, que há em todas as pessoas, para o crescimento e a melhoria de si. Essa tendência se manifesta sob certas condições, que podem ser encontradas nas relações interpessoais nas quais estejam presentes alguns aspectos essenciais. Essas relações interpessoais, com características bem específicas, eu as denomino de relações potencialmente terapêuticas.
Uma psicoterapia é um processo no qual, a cada sessão, uma relação potencialmente terapêutica ocorre. Nesse processo, é desejável que, a cada sessão, o cliente sinta: a) que o seu terapeuta o aceita incondicionalmente; b) que o seu terapeuta esteja, na maior parte do tempo, tentando compreender – o mais profundamente possível – o seu mundo interno; c) que seu terapeuta – pelo menos durante a sessão – se apresente como uma pessoa autêntica, verdadeira, congruente. Se isso acontecer na relação cliente-terapeuta, uma mudança ocorrerá, sempre no sentido construtivo, onde se observará um movimento de reorganização mais equilibrado do mundo interno e externo, tanto no terapeuta como no cliente. Os dois se beneficiam do encontro terapêutico, já que ambos viveram um processo de descoberta, de ampliação, de aprendizagem sobre o mundo, sobre as pessoas e sobre si mesmos.
Sobre a cura, tenho dizer o seguinte:
O que é ser curado? O que é ser normal?
O “ser” curado é o que deixou de ser doente e, agora, é o normal?
Cura e normalidade são ideais inatingíveis (felizmente).
Cura e normalidade são dois conceitos profundamente relativos. No seu interior, carregam tantas variáveis, que se torna impossível o estabelecimento de referenciais seguros para descrevê-los.
Nunca dei alta a nenhum cliente meu. Nem para os “normais”, nem para os “psicóticos”. Sempre desenvolvo o meu trabalho com eles, seguindo os referenciais deles. Por isso, são sempre eles mesmos que definem o momento em que querem interromper nossos atendimentos.
Estarão eles “curados”, quando resolvem interromper suas terapias?
Agora, estarão eles “normais”?
Não me cabe definir isso. Minha contribuição maior é auxiliá-los na exploração de seu mundo interno, ajudando-os a desenvolver, dentro deles, o mínimo de defesas desnecessárias, de modo que consigam chegar a perceber, e aceitar, o mais plenamente possível, suas próprias pessoas, como, de fato, elas são.
A partir disso, tenho observado que eles começam a viver de maneira mais plena, e com menos tensão em suas relações com o mundo que os cerca (coisas, pessoas…).
Agora, chegamos a uma questão bastante complexa, sempre alvo de perguntas, quando falo, ou escrevo, sobre o trabalho com pessoas portadoras de transtornos psicóticos: a prevenção. A pergunta comum: é possível o controle e a prevenção, parcial ou total, da psicose?
É sempre perigoso pensar-se em termos de “controle e prevenção”, principalmente se o que estiver em foco for o ser humano. Se não tomarmos cuidado, acabaremos achando “chifre em cabeça de burro”.
Falar em “controle” pressupõe, sempre, que se saiba,”cientificamente”, as causas e os efeitos dos fenômenos a serem controlados.
Acontece, entretanto, que o nosso conhecimento sobre a realidade ainda é profundamente modesto, e, quando a gente se arvora em ser um “profeta da vida”, acaba cometendo enganos gigantescos e, muitas vezes, também grotescos.
Considero que, se as pessoas pudessem viver sem medo de viver, tudo ficaria bem mais fácil. Para isso, bastaria que a gente deixasse de lado uma tonelada de preconceitos que são colocados em nós, desde quando a gente é bem pequenino. Isso seria um grande avanço na “profilaxia” de muitos males que vivemos, principalmente os mentais.
Parece simples, não é? Parece até ingênua essa minha colocação. Parece que não estou levando em conta as questões biológicas e coisa e tal. Mas olha, isso é difícil de se conseguir!!!! Deixar que o homem seja ele mesmo (“sadio” ou doente”) é o maior desafio que os seres humanos, responsáveis pela construção dos seus semelhantes (os educadores, no sentido pleno da palavra), enfrentam.
Uma vez eu afirmei: “Quando a Educação funcionar bem, poderemos fechar todos os hospitais psiquiátricos”. Riram! Não entenderam o que eu quis dizer.
Podemos dizer que a psicose possui um curso evolutivo? Claro. Tudo tem um curso evolutivo. Nada SURGE!!! Tudo tem uma história. A psicose não foge a essa regra. Uma das coisas básicas no diagnóstico da psicose é a percepção distorcida da realidade, uma fuga da realidade… Mas esses sintomas trazem sempre em si um quadro evolutivo, uma história. A psicose não existe sem o psicótico. Ela está contida nele e, consequentemente, na sua história pessoal. Mesmo quando o surgimento é, aparentemente, abrupto (um surto, um “broto” esquizofrênico, por exemplo), estamos diante de um quadro evolutivo, de uma sequência de fatos, de vivências, de histórias que dizem respeito à pessoa psicótica. Por isso, mesmo havendo critérios objetivos, métodos de diagnóstico sofisticados (CID-10, etc.), a compreensão do quadro psicótico só se fará a partir do histórico do cliente, da evolução clínica, única, daquele distúrbio, daquela pessoa em particular.
Outro tema que, com frequência, me é perguntado, diz respeito à duração do tratamento psicoterápico do paciente psicótico.
Muita gente raciocina da seguinte forma (equivocada): a psicose é uma doença mais grave do que, por exemplo, uma neurose. Portanto, o tempo do tratamento de uma psicose, logicamente, será, também, mais longo.
Embora essa forma de pensar possa estar aparentemente correta, ela carrega, em seu bojo, um equívoco bem grande. O atendimento de pessoas neuróticas, ou normais, ou psicóticas, será longo ou breve, dependendo da “proposta” do cliente. Ele é que, no fundo, estabelece esse tempo. O tempo nunca é prolongado. Ele é somente o “tempo necessário para cada cliente”.
Há neuróticos que ficam anos e anos em terapia. Há psicóticos que ficam alguns meses… Quem se beneficiou mais? Nunca saberemos.
Sempre que trabalho com um psicótico ou com um neurótico bem desestruturado, considero importante que o atendimento seja em equipe, formada por um clínico, um psiquiatra e eu (psicólogo).
Em alguns casos, é muitíssimo importante que o paciente seja adequadamente medicado e que seu quadro clínico não seja descuidado. Psicoterapia não entra em choque com outros atendimentos. Faz parte do suporte global que uma pessoa precisa receber, principalmente quando ela é acometida de um distúrbio mais severo, que pode, inesperadamente, levá-la a perder sua capacidade de controle sobre suas ações, colocando em risco sua integridade física e psíquica.
Concluindo, durante muitos anos acreditou-se que a terapia com psicóticos era uma prática ineficaz, ou uma perda de tempo. Acreditava-se que esses clientes eram refratários, ou muito resistentes à ajuda psicoterápica.
Atualmente, muitos profissionais da saúde reconhecem os benefícios que esse tratamento pode trazer para pacientes com distúrbios mentais severos.
Hoje, psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais e tantos outros profissionais trabalham, ombro a ombro, na tarefa de ajudar essas pessoas.
A visão, cada vez mais aceita, é que o foco do tratamento é o doente, e não a doença. Isso veio reforçar a idéia principal e norteadora desse tipo de ajuda.
Ao se colocar o doente no centro do tratamento, abriu-se uma possibilidade de resgatar sua dignidade, sua singularidade e seus direitos como pessoa humana.