CRÔNICAS E CASOS – Um grão de poeira no meio disso tudo

Um grão de poeira no meio disso tudo

 

                                                       JLBelas -2006                           

 

Há experiências vividas na nossa infância que marcam muito a gente.

Algumas delas acabam determinando muitas das nossas atitudes reveladas no nosso dia a dia de hoje. Já adultos, damo-nos conta do quanto elas contribuíram para a construção da nossa maneira peculiar de pensar, de viver, de existir.

Às vezes, digo para os meus amigos:

Felizmente os meus pais não perceberam o que acontecia comigo quando eu tinha meus nove, dez anos e, por isso mesmo, não me levaram a um médico, preocupados com o meu modo meio estranho de ser. 

Meus pais eram saudáveis o bastante, agora vejo isso, para não se assustarem tanto com alguns comportamentos meus. Sorte a minha.

Mas vamos aos fatos.

Tudo aconteceu nos primeiros anos da década de 50.

Minha casa, quando eu tinha essa idade, ficava na base de um morro no qual haviam construído um grande reservatório, destinado ao abastecimento de água de nossa cidade. Esse morro era conhecido como o Morro da Caixa d’Água. Para se chegar a ele, foi construída uma estrada de terra, ladeada por uma mureta de segurança, feita com pedras bem robustas, assentadas sobre uma massa de barro e cimento.

Podia-se também chegar a esta estrada através de um caminho tosco, que seguia paralelamente o grosso cano preto de ferro, cujo diâmetro interno era de aproximadamente 50 centímetros e que levava a água que abastecia o tal reservatório.

Esse cano passava horizontalmente em frente à minha casa e, logo a poucos metros à frente, mudava de sentido e passava para um ângulo de cerca de 45 graus rumo ao morro da Caixa d’Água. Ele corria à flor da terra, morro acima, terminando sua parte visível um pouco abaixo da mureta de segurança, sobre a qual já falei.

Essa segunda opção de acesso era a escolhida por nós, meninos da Travessa do Silva, quando nos reuníamos para ir jogar bola sobre a cobertura daquele reservatório.

Era também a minha opção, quando queria ir até aquela mureta apenas para ficar lá, sozinho, pensando.  E é aí, exatamente, onde eu quero chegar e onde está o ponto principal dessa minha lembrança da infância.

De vez em quando, eu gostava de subir o morro, ladeando o cano de ferro, e ficava sentado na mureta, apreciando a linda paisagem, que se descortina de lá. Muita gente não tem a mínima ideia do que se pode ver lá de cima. Embora não sendo muito alto, esse morro é um pouco mais elevado do que aquele que fica diante dele, em direção ao oeste.

De lá eu via: a gare das oficinas da Leopoldina, o Parque General Rondon, o Quartel do GACosFv (Grupo de Artilharia de Costa Ferroviário), o Cemitério do Maruy, a Igreja de São Sebastião, a Baía de Guanabara, etc., etc.  Além disso, via as pessoas, os bondes, os carros que transitavam na Rua General Castrioto.

O que me chamava atenção nisso tudo era a sensação estranha que sentia, quando, olhando para mim e olhando ao meu redor, percebia o “meu tamanho”.  As pessoas, vistas lá de cima, pareciam pequenas formigas. Os trens pareciam minhocas arrastando-se pelo chão, os bondes, pequenas lagartas. As casas pareciam pequenos blocos de madeira, desses com os quais a gente brincava de construção. O mundo… muito pequeno. Eu, apenas um grão de poeira.

Nesses momentos, era invadido por uma emoção feita de uma mistura ambígua de vazio e plenitude, de angústia e paz.

Tenho certeza de que esse “chamado”, que vinha de dentro de mim me marcou profundamente. Marcou o meu modo de ver as pessoas e a mim mesmo.

O que sou? O que somos? Qual o nosso papel no mundo? Eram as indagações – hoje percebo – que já se esboçavam naquele tempo dentro de mim, de uma forma infantil, mas, nem por isso, pouco intensa.

Quando temos a oportunidade de sentir o “nosso tamanho” em relação ao Universo, passamos a valorizar a vida, as pessoas, os relacionamentos de maneira muito especial. Percebemos que “somos muito pequenos” e, portanto, muitas coisas, que são profundamente valorizadas por muita gente, passam a ser dimensionadas, por nós, a partir de outros referenciais, menos racionais e mais existenciais. O sentimento de humildade deixa de ser uma virtude e se transforma na consciência de nossa, ainda que valorosa, diminuta estatura diante a enormidade do mundo no qual vivemos: um grão de poeira no meio disso tudo.

 

2 comentários sobre “CRÔNICAS E CASOS – Um grão de poeira no meio disso tudo”

  1. Artur2 de março de 2021 às 11:42

    É isso mesmo, Zé, é isso mesmo. E agora então, com essas imagens de Marte…
    mas, além da valorização dos relacionamentos, alguns, me acompanha também a visão do ridículo das vaidades, dos humanos orgulhosos de suas posses. O mundo está em crise, e penso que, desta vez, definitiva.

    1. BELAS2 de março de 2021 às 12:45

      Obrigado, amigo. Estamos em mudança, pra variar. Espero que seja pra melhorar, forçando as pessoas a pensarem mais profundamente. É difícil, mas torço para que aconteça isto. Um forte abraço.

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