ABORDAGEM CENTRADA NA PESSOA E A CLÍNICA PSIQUIÁTRICA
Palestra realizada no SEMINÁRIO CARL ROGERS 100 ANOS,
nas Faculdades Maria Thereza – Niterói – RJ
24 de agosto de 2002
Iniciemos por alguns dados históricos que marcaram a trajetória da Abordagem Centrada na Pessoa, em nosso município.
A informação que tenho leva-me a concluir que, até os anos 70, não havia, em nosso Estado, nenhuma instituição psiquiátrica, pública, ou privada, que abrigasse em seu quadro de profissionais da saúde um “rogeriano” (como se costuma denominar o psicólogo identificado com as idéias de Carl Rogers).
O primeiro profissional que foi admitido em nosso Estado, para atuar em uma instituição psiquiátrica pública, em 1972, por acaso, era uma pessoa que tinha uma prática, clínica e institucional, marcada por uma leitura rogeriana dessas atividades.
Durante muitos anos, ele, talvez, tenha sido o único profissional da psicologia, com tal proposta teórica, atuando na área da saúde mental, em Niterói-RJ.
Em 1971, este psicólogo fundou (com dois colegas) uma clínica com o nome de Centro de Psicologia Carl R. Rogers, na Rua da Conceição, número 67, Niterói/RJ, registrada em Cartório e com contrato social, etc., etc. Durante quase um ano, esta instituição viveu, mas, logo depois, a sociedade teve que ser extinta por motivos que escaparam à vontade dos seus sócios. Um deles foi residir em Brasília, o outro teve que reassumir um cargo público federal. O “rogeriano” foi o único que continuou no mesmo local, onde funcionava a Clínica C. R. Rogers. O entusiasmo do psicólogo remanescente, o único verdadeiramente rogeriano, levou-o a criar um Grupo de Estudos sobre as idéias daquele psicólogo americano. Esse grupo se reunia semanalmente no seu consultório. Era composto por vários profissionais: psicólogos, orientadores educacionais, filósofos e um médico clínico. Durante mais de cinco anos, este Grupo de Estudos existiu e, no final, manteve contato com o próprio Rogers, através de correspondências e trocas de materiais escritos (artigos enviados por ele para nós e artigo nosso enviado para ele).
No início dos anos 70, os Grupos de Encontro e a Terapia Centrada no Cliente, aplicados à área do Trabalho e à Escolar, passaram a ser as vivências e os aprendizados mais intensos que esse profissional experimentou. Tudo isso, somado ao seu entusiasmo e interesse pela ACP, lhe deu estímulo para divulgar esses conhecimentos para estudantes e profissionais da Psicologia e de outras áreas acadêmicas.
Assim, utilizando o espaço físico de que dispunha, no recém-criado Setor de Psicologia do Hospital Estadual Psiquiátrico (Jurujuba), em 1972/73, iniciou, ali, o Estágio em Psicologia Clínica, cujo objetivo principal era a formação de novos psicólogos clínicos institucionais e psicoterapeutas, dentro do enfoque centrado na pessoa.
É importante notar que a ACP chegou ao Hospital numa época em que o trabalho com o paciente internado seguia, ainda, a forma do manicômio tradicional, onde cada pessoa era percebida como um objeto de estudo, ou como tendo algum defeito a ser consertado. A medicação era o principal meio de tratamento.
Também é importante que se observe que a Abordagem Centrada na Pessoa chegou à Clínica Psiquiátrica, em nosso Estado, de maneira singular e muito mais ampla do que muitos podem supor. Não chegou somente como um modo de atendimento do paciente psiquiátrico, mas sim como uma maneira de se atuar na Instituição como um todo, em seus diferentes segmentos: acadêmico (o estágio supervisionado com duração mínima de dois anos), o institucional (trabalho com a direção e com os funcionários de todos os setores, através de grupos de encontro, remanejamento de pessoal, análises profissiográficas, etc.), e a atividade especificamente clínica de atendimento aos pacientes internados, aos seus familiares, aos egressos e aos pacientes da comunidade externa, que buscavam, espontaneamente, o Serviço de Psicologia (sob a forma de emergências ou não).
Foi criado, para viabilizar este último tipo de assistência, um sistema de plantão, que funcionava com estagiários recém-formados, que cumpriam um horário de uma agenda diária, nos 7 dias da semana.
Todos esses dados são importantes, pois, por sorte nossa, tivemos a oportunidade de viver a ACP em quase toda a sua plenitude de aplicabilidade, numa mesma instituição e numa época em que essas idéias começavam a ser conhecidas na Saúde, em nosso município.
Possivelmente, essa experiência trouxe, para as pessoas que trabalhavam nela, uma idéia bem mais exata, ainda que para alguns de forma subliminar, sobre o que era o trabalho de um “rogeriano” na instituição psiquiátrica.
Durante o período de 1972 até 1984, foram desenvolvidos vários trabalhos junto aos pacientes e às pessoas da comunidade, através dos atendimentos ambulatoriais, realizados pelos estagiários recém-formados.
De 1985 até 1998, não tivemos mais estagiários com formação na ACP, em decorrência da mudança do governo estadual, que, nessa época, começou a orientar os trabalhos psicoterápicos nas instituições públicas dentro de uma nova linha de trabalho, e, principalmente, dentro do marco teórico psicanalítico.
A partir de 84, a Abordagem Centrada na Pessoa, no Estado do Rio de Janeiro, ficou restrita, em sua aplicação, àqueles profissionais que, sendo contratados pela Secretaria de Saúde e nela efetivados, já possuíam uma formação teórica na ACP. Eles eram poucos.
No Hospital de Jurujuba, foram realizados vários trabalhos clínicos, principalmente com egressos e pessoas da comunidade. Essas atividades eram: Grupos de Terapia, Grupos de “Autorreconstrução do Self”, atendimentos individuais com tempo preestabelecido, grupos de triagem, entrevistas de recepção, entre muitas outras.
A prática e os estudos desenvolvidos no Hospital, baseados em metodologias construídas através do referencial da ACP, levam-nos a concluir que a abordagem se mostra significativamente eficaz na clínica psiquiátrica, principalmente por suas amplas possibilidades de aplicação. Mostra-se eficiente não só no tratamento do paciente, como também na melhoria do contexto institucional, social e familiar no qual ele vive.
A flexibilidade da metodologia da abordagem centrada na pessoa, suas concepções e a visão do homem trazida por ela mostraram-se plenamente aplicáveis à realidade atual, principalmente no que se refere à compreensão da dinâmica das relações humanas, tal como ela se nos apresenta nos dias de hoje.
O TRABALHO COM PACIENTES PSIQUIÁTRICOS – uma visão muito pessoal
Como é o atendimento psicoterápico que realizo com um paciente psicótico? De que forma é conduzido esse processo terapêutico?
O psicótico vive num mundo próprio, no qual poucos conseguem penetrar. Este isolamento faz com que ele seja percebido – por muita gente – como “meio-humano”, ou como alguém que se perdeu dos demais, que se isolou e que não consegue mais ser como os outros humanos, etc….
A terapia do psicótico é uma tentativa de resgatar aquela pessoa que se distanciou dos demais, no exato momento em que buscava manter a integridade de sua estrutura psíquica. Tais pacientes devem ser atendidos do mesmo modo como todos os outros, considerados não psicóticos, sãos.
Mas o que isso significa realmente? Significa que esse paciente, do mesmo modo que acontece com qualquer pessoa, tem suas idéias, seus desejos, seu modo típico de ser, sua subjetividade e sua singularidade.
O seu modo de perceber o mundo pode ser diferente do modo como a maioria das pessoas percebe. Sua forma de focalizar a realidade pode parecer estranha para muita gente, mas é, exatamente aí – nessa sua visão “ilógica” do que o cerca – que precisamos penetrar, para tentarmos compreendê-lo e ajudá-lo no entendimento dessa sua forma peculiar de percepção.
Essa tentativa de compreender o mundo da pessoa psicótica, essa busca que realizo com meu cliente, faz de nós dois cúmplices de uma nova lógica , que nos interliga por meio de uma fala que, para muitos, poderá parecer hermética, mas que – aos poucos – começa a fazer sentido, para mim e para ele.
Para atender um psicótico, é preciso que a gente fique “louco”, mas mantendo a consciência dessa loucura temporária, que se vivencia nesse encontro terapêutico, ao qual damos o nome de psicoterapia.
O que faço poderia ser considerado um método? Diria que sim. Uso um método, que é o mesmo que norteia a terapia centrada na pessoa.
O básico nessa terapia é a crença na capacidade da pessoa para organizar suas experiências, crescer, evoluir, etc., desde que o terapeuta, ou alguma pessoa que esteja atuando numa forma de ajuda efetiva, consiga estabelecer um tipo de relacionamento humano, no qual estejam presentes algumas condições que consideramos fundamentais e básicas, como: compreensão empática, consideração positiva incondicional pelo outro e atitude congruente por parte do terapeuta.
A qualidade da relação humana, que se estabelece numa terapia com pacientes psiquiátricos, principalmente com psicóticos, é fundamental.
Se considerarmos que o psicótico vive num mundo à parte do nosso, que fala uma linguagem diferente da que falamos, ser visitado em seu mundo, pelo terapeuta, é uma experiência profundamente emocionante e surpreendente, para ele e para o próprio terapeuta.
Um paciente me afirma:
“Hoje, (referindo-se à sessão que acontecia naquele momento) eu posso dizer tudo. Quando sair daqui, não adianta falar. Lá, ninguém entende o que eu falo”.
Quando atingimos um nível de relacionamento como o descrito acima, observamos que o paciente começa a se arriscar a falar mais de si, e mais, a expressar emoções ligadas a seu mundo atual. Fala de pessoas e situações do seu hoje. Esse discurso costuma vir carregado de emoção e sentimentos afetivos (raiva, risos…). Percebe-se que, naqueles momentos, ele sai do seu mundo isolado e se aproxima de um outro mundo, o da relação real entre duas pessoas. Torna-se “humano” outra vez: pode abraçar, zangar, sorrir, ponderar, criticar-se, aceitar-se, mostrar-se mais inteiro e em equilíbrio.
Falar, aqui, sobre essas condições e como elas operam dentro da estrutura do encontro terapêutico, é impraticável por se tratar de um tema muitíssimo longo e complexo, sendo impossível desenvolver isto nesta palestra de hoje.
Nenhum exemplo que possa dar, tenho certeza, deixará claro o que, de fato, acontece durante o processo de uma terapia com pacientes psiquiátricos graves. Talvez, alguns profissionais, que já tenham vivido essa prática, possam compreender melhor o que estou tentando expor.
Só resta dizer que: quando escuto, atentamente, meu cliente (psicótico ou não), sem me preocupar com diagnósticos, julgamentos morais, éticos ou outros de qualquer natureza; quando estou ali, com ele, o mais “presente” possível, sendo eu, do modo como sou (sem me esconder atrás de máscaras profissionais), ocorre, então, um “fenômeno” muito significativo: o outro se arrisca a mostrar-se como ele, de fato, é.
Nesse mostrar-se, há algo novo que é a possibilidade de ele ir além da percepção, que até então tinha de si.
Em outras palavras, começa “realmente” a se conhecer e a se compreender, e, possivelmente, em decorrência desses dois fatores – conhecimento e compreensão – inicie um processo de aceitação de si, de ampliação de sua imagem, de seu eu, de sua pessoa.
Essa ampliação gera mudanças no seu modo de ser, de se ver, de ver os demais e de ver a própria realidade, na qual vive, muitas vezes distorcida pela visão equivocada que possui dela.
ATENDIMENTO EM EQUIPE
Sempre que trabalho com um paciente muito desestruturado, considero importante que o atendimento seja em equipe. Esse grupo multiprofissional, idealmente, deve ser composto, no mínimo, por um clínico, um psiquiatra e o psicoterapeuta.
É sempre importante que o paciente esteja bem medicado e que seu quadro clínico não seja descuidado.
Psicoterapia não entra em choque com outros atendimentos. Faz parte do suporte global que uma pessoa precisa receber, principalmente quando é acometida por um distúrbio mais severo. Nessas situações, ela pode, inesperadamente, sofrer uma diminuição do controle sobre suas ações, colocando, por isso, em risco sua integridade física e psíquica.
CONCLUINDO
Costumo dizer que, para se trabalhar com psicóticos, ou com outros transtornos mentais graves, precisamos não ter medo de passar para o outro lado. Precisamos conhecer bem o caminho de volta e saber que a fronteira entre os dois lados não existe concretamente.
Precisamos aceitar a “loucura” do paciente para que ele possa aceitá-la também. Só assim ele poderá optar – se quiser ou puder – pela “não loucura”, ou por um universo intermediário.
As ideias que norteiam as propostas da ACP, no meu modo de ver, são essenciais para que se possa ter tranquilidade e segurança suficientes, para empreendermos essa “viagem” emocionante, humana, que é a terapia do paciente psiquiátrico.
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OBSERVAÇÕES COMPLEMENTARES AO TEXTO ACIMA
(Opiniões pessoais)
Algumas dificuldades enfrentadas por um psicólogo rogeriano, nos anos 60:
1. Nos anos 60, a Psicanálise e a Reflexologia eram os constructos teóricos, aceitos na Medicina Brasileira, como os de mais credibilidade, talvez por suas origens médicas e biológicas.
2. Na década de 60/70, durante a ditadura militar, estávamos vivendo um
momento antinorteamericano extremo.
3. As teorias vindas dos USA eram suspeitas e rejeitáveis: tudo o que era americano deveria ser banido como ruim, como ligado ao capitalismo, como “inimigo” ou coisa assim.
4. A TCC, além de americana, era uma espécie de “antipsicanálise” e “antibehaviorismo”. Ser antipsicanálise era uma heresia, e ser antibehaviorista era o mesmo que ser anticientífico e, portanto, um charlatanismo com ares de Humanismo/Cristão.
5. No contexto colocado no item anterior, muitos consideravam os rogerianos como superficiais, ingênuos e não confiáveis, por não terem o “selo” da ciência oficialmente aceita. Os críticos,entretanto, não sabiam que Rogers foi um dos psicólogos mais exigentes no que se refere à pesquisa em psicoterapia, e que os métodos utilizados por ele eram sofisticados e seguros, ainda que se mostrassem bastante diferentes daqueles que os “cientistas” utilizavam. Uma obra importante para se ler, e que nos pode dar uma ideia bem mais precisa do que estou falando, é O Homem e a Ciência do Homem. Nele, Rogers expõe suas ideias, sobre o que pensa a respeito de ciência e do pensamento científico.
6. O pior disso tudo é que, nessa época (e ainda hoje), a ACP já havia evoluído e a maioria dos profissionais da saúde, e até os da educação, ou não conheciam Rogers, ou tinham uma ideia distorcida de suas propostas. Muitos só conheceram as ideias que foram lançadas por ele nos seus primeiros escritos.
7. Hospital é lugar da Medicina, do Médico. O paciente psiquiátrico é paciente do médico. Essa forma de pensar durou muito tempo, até começar a se dissolver. Ainda hoje, 2008, existem muitos sinais de que estamos longe de vê-la totalmente dissolvida.