CRÔNICAS E CASOS – Passeando Pela Orla

 

PASSEANDO PELA ORLA

J.L. Belas

Dezembro de 2006

 

 Há momentos em que a solidão se torna a única saída para se encontrar o equilíbrio interior. Esses momentos são vividos de forma intensa, como um verdadeiro mergulho no fundo da alma, naquilo que de mais verdadeiro há dentro de nós. Essas vivências nos colocam num grau de sensibilidade que chega às raias da “insanidade” e nos mostram cantos muito escondidos, ou perdidos, de nós mesmos.

Quando vivo uma experiência assim, transporto-me para uma dimensão de mim que me é familiar, mas que parece ter ficado esquecida, por muito tempo, nos pontos mais recônditos de minha memória. É uma consciência do meu “existir”. É um reencontro com um Eu que ficou fora de foco por uma boa temporada. Estar “diante dele” me surpreende e me alegra, como se revisse um velho amigo que esteve distante, ou escondido, ou viajando, sei lá, e que, de repente, abre os braços para mim, me acolhe e me convida para um bom bate-papo.

O dia a dia nos carrega como uma maré. Sua mesmice nos leva a viver uma vida que não é, verdadeiramente, nossa, principalmente se não estivermos atentos a isso. Podemos até achar que estamos segurando o leme de nossas vidas, até o momento em que nos damos conta de que “o nosso barco” está numa rota diferente daquela que havíamos traçado, e que estamos desembarcando em “território estrangeiro”. Nesses momentos de nossas vidas, damo-nos conta de que não estamos chegando onde havíamos planejado chegar, e somos, então, tomados por um desconforto no peito, uma sensação de angústia, um sentimento de que “aquele não sou eu” e “aquele não é o meu país”. Surge a vontade de sair correndo, buscar um lugar que contenha o “vírus da paz” e com ela nos contaminarmos por inteiro e, assim, podermos aninhar-nos nos braços da “solidão”. Quando isso acontece, paz mais solidão, surgem as condições favoráveis para o retorno ao estado de equilíbrio interior, para o reencontro de o homem “renascer” em si mesmo.

A saúde mental, tudo me leva a crer, nada mais é do que o encontro de dois EUS que se completam. É o equilíbrio verdadeiro de Mim comigo. O EU, que já conheço de mim, e o eu, que vejo surgir a cada momento, a cada gesto meu, a cada palavra que pronuncio. Esse eu novo, que identifico comigo e que ratifica minha identidade, diz que me estou expandindo como pessoa, crescendo e me tornando mais pleno.

Mas, por que a necessidade de solidão e paz? Por que o outro (uma outra pessoa) pode dificultar esse encontro de Mim comigo.

Ainda que o outro seja importante para que eu possa entrar em contato com algumas partes novas de mim, com aquilo que não consigo ver em mim mesmo, pela ausência de distância entre MIM e mim, há certos momentos em que a presença do outro atrapalha, dificulta essa aproximação e esse “diálogo profundamente íntimo”, intraduzível para qualquer pessoa que esteja além dos limites do meu próprio corpo.

É somente nesse estado de solidão/paz que se torna possível o encontro EU-eu e, consequentemente a autodescoberta, a autoaceitação, a expansão do meu próprio EU e o meu crescimento mais sutil e significativo.

Hoje, andei sozinho pela orla. De carro. Lentamente. Olhava tudo que passava através dos vidros que me isolavam do mundo lá de fora. A música, minha fiel companheira, criava o fundo sonoro das cenas coloridas que se sucediam, sem parar, e que me transportavam para o meu passado, para o meu presente e para o meu futuro. Tudo isso ocorria ao mesmo tempo, como num caleidoscópio a girar, sem parar, alternando figuras lindas, outras sombrias, outras estranhas. Mas eu sentia que todas eram eu, eu, eu… Um eu que se misturava em imagens, sons e sentimentos corporais os mais diversos, mas que guardavam uma unidade: eu.

Durante quase uma hora, andei pela orla. O mar com ondas que lembravam rebanhos de ovelhas, flamejantes pelo sol, que se punha e me brindava com seu colorido ouro avermelhado e estimulava meus pensamentos. Vi pessoas passeando. Outras em pleno trabalho.  Encantou-me ver uma jovem debruçada na janela da casa colonial, na colônia de pescadores. Seu olhar distante, como se esperasse pelo futuro, admirando a bela paisagem que se estendia à frente de sua modesta casa.  O cão vira-lata que corria alegre, como se a vida fosse uma bela canção, e lhe bastasse haver uma tarde calma de verão para poder correr saltitante pela rua, já não tão escaldante, e fazer seu convite aos moradores dali para passearem e afagá-lo como um grande amigo de todos. Mais à frente, dois outros cães brincavam, mordiscavam-se como duas crianças felizes, vivendo, livremente, a descoberta do encontro e da amizade…

Velhos amigos meus, desse local, não mais estavam lá. Suas casas, com novos aspectos, insinuavam que algo havia passado. O tempo havia passado. As árvores que eu vi crianças, agora, já adultas, abrigam carinhosamente as pessoas que por elas passam, dando-lhes suas sombras frescas e aconchegantes, num gesto que talvez poucos possam compreender. Mas, nesse meu momento de solidão/paz, sinto que posso. Posso sentir, de modo extremamente sensível, cada coisa, cada pessoa, cada detalhe da paisagem em transformação, que está diante dos meus olhos.

Esse meu olhar, aparentemente voltado para fora, na realidade é o meu olhar que brota do mais fundo de mim, frutos do casamento da Paz com a Solidão. É olhar de mim para Mim.  Nesses momentos, os meus eus, até então perdidos na lida diária, batem na porta da “minha casa” e pedem para entrar.

E, então, braços se abrem, abraços cálidos e demorados se fazem presentes, como nos reencontros de dois velhos amigos: Eu e eu.

A viagem pela orla foi o caminho do nosso reencontro. E, como é bom tê-lo comigo novamente.