PSICOTERAPIA,TEMPO,ESPAÇO

Psicoterapia: Teoria e Prática
Relato de uma vivência no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba,em 1983
J.L. Belas  – maio de 2009

Desde quando iniciei o curso de Psicologia, minha motivação maior sempre foi associada ao ato de criar, testar teorias existentes ou algumas hipóteses que se mostrassem com potencial para produzir algo novo.

Numa reunião com meus estagiários do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, no início da década de 80, conversando com os participantes daquele grupo, surgiu uma discussão sobre: “o que dispararia o processo ao qual damos o nome de psicoterapia?” As respostas a tal indagação surgiram e deram origem a diversas hipóteses. Algumas, de imediato, foram descartadas. Outras pareceram-nos interessantes, mas muito pouco concretas, para pensarmos em levá-las para o campo da experimentação. Entretanto, uma delas se mostrou viável, principalmente por não exigir um planejamento muito complexo e não esbarrar nas limitações materiais existentes, naquele momento, no Jurujuba.

O que discutimos:

Será que, se uma pessoa (um psicoterapeuta) se dispuser a ficar no pátio interno do hospital, sentado no chão, todas as terças-feiras, das 9h às 10 horas, sem apresentar nenhuma proposta a qualquer paciente que se aproxime naturalmente dele (essa aproximação é comum nos hospitais psiquiátricos), permanecendo durante todo esse tempo somente reagindo minimamente às suas próprias necessidades físicas (acomodar-se, mudar de posição, tentar deixar seu corpo à vontade…), eventualmente respondendo a uma pergunta do paciente, (então) isso gerará um mudança espontânea nos que circulam por ali, e ela poderá ser chamada de terapêutica?

A hipótese:

“Se conseguirmos controlar duas variáveis, tempo e espaço, então um processo psicoterapêutico será deslanchado naturalmente.”

Operacionalização e teste da hipótese:

O pátio interno, onde iríamos testar nossa hipótese, era o da Ala Masculina. Esse espaço possuía uma parte coberta, bastante ampla. Geralmente os internos iam ali para simplesmente descansar, deitados no chão ou sentados nos bancos de cimento.  Circulavam nesse local, assim como em outros espaços do hospital (corredores, enfermarias, campo de futebol, salas de TO, etc.).

Eu e a estagiária, que se mostrou mais interessada nesse trabalho, combinamos o seguinte: em um determinado dia da semana e sempre em uma hora fixa, estaríamos naquele pátio. Nessas ocasiões, sentaríamos no chão, não forçosamente próximos um do outro. Ficaríamos à vontade, para deixar que nossa intuição, vontade, interesses nos guiassem, quando entrássemos naquele local. Nada programado, a não ser Espaço e Tempo.

O que foi acontecendo:

– Quando começamos, ficamos ali por cerca de sessenta minutos. Praticamente os pacientes não interagiram conosco, a não ser um ou dois mais carentes, já conhecidos nossos. Era como se fôssemos mais dois entre eles, em igualdade de condições, com identidades semelhantes.

– Depois de algumas semanas, percebemos que alguns pacientes JÁ ESPERAVAM POR NÓS, NAQUELE DIA DA SEMANA E NAQUELE HORÁRIO.

– Aos poucos foram trazendo coisas de fora daquele espaço para dentro dele: papéis, objetos…

– Nós também começamos a trazer coisas que eles sempre nos pediam: papéis, hidrocores, e que eram deixadas, discretamente, no chão do pátio.

– Progressivamente, começamos a notar que – espontaneamente – um grupo fixo estava sendo formado, coisa que, nas primeiras idas nossas ao pátio, não havia. Pelo contrário, a rotação era muito grande e os internos, em sua maioria, apenas “passavam por lá”.

– Pacientes regredidos, crônicos, catatônicos, com comunicação profundamente prejudicada, mesmo calados e aparentemente alheios, começaram a sentar no círculo que se foi criando, em torno de nós dois.

– Em um desses momentos, nesse espaço, ocorreu o mais inesperado para nós: um paciente crônico, internado há vários anos nessas instituição, com dificuldades para andar, nos surpreendeu. Disse, acima, que a nossa presença era livre. Ficávamos ali e nos movimentávamos de acordo com o que sentíamos. Nesse tempo, eu participava de um grupo que praticava Tai-Chi-Chuan. Tendo estado sentado por algum tempo, meu corpo pediu movimento. Levantei-me e comecei a fazer alguns movimentos próprios do Tai-Chi. Aquele paciente que mal andava e, quando fazia isso, seu corpo parecia todo desorganizado, começou a me imitar de tal forma precisa ao Tai-Chi-Chuan, que eu e a estagiária custamos a acreditar no que estávamos vendo. No Tai-Chi, suas dificuldades motoras não se manifestavam. Outros pacientes, encorajados por aquela “dança”, começaram também a nos acompanhar.

– Os desenhos produzidos ali eram seguidos de comentários sobre eles e sobre seus “artistas”.

Comentários:

– Ficamos entusiasmados com a experiência.

– Durante os seis meses em que estivemos com aqueles pacientes, mantivemos sempre sob controle as duas variáveis: TEMPO e ESPAÇO.

– Progressivamente, fomos descobrindo que, nesse tempo e nesse espaço, havia mais um elemento que se tornou fundamental, nossa presença lá. Éramos um ponto de convergência dessas duas variáveis, como se elas passassem a existir, porque foram sinalizadas por nós e, como sinalizadores, tínhamos uma característica agregadora, um ímã, um eixo em torno do qual passou a acontecer algo novo para eles.

– Sentimos que, de fato, bastaria controlar tempo e espaço para que um grupo fosse gerado, a construção de uma comunidade nascesse e o movimento psicoterapêutico surgisse. Todavia, ficou claro que o papel do terapeuta na consolidação desse processo não fica separado daquelas variáveis, sendo ele tão importante quanto elas.

Nossas atitudes e comportamentos no grupo podem ser descritos assim:

a)     estivemos “plenamente” naquele espaço como duas pessoas a mais entre os pacientes;

b)     propusemo-nos a não interferir nos seus hábitos;

c)     respeitamos o movimento que realizaram, tanto os de aproximação, como os de afastamento: não os chamávamos para virem ao grupo, do mesmo modo que não lhes cobrávamos suas ausências;

d)     os “recursos” usados (material gráfico, Tai-chi, etc.) surgiram espontaneamente, não eram elementos de uma técnica para se alcançar algum tipo de resultado;

e)     em nenhum momento foi solicitado que os pacientes se sentassem, muito menos em círculo, menos ainda a nosso redor;

f)       sentimos que nos tornamos, simplesmente, catalisadores para que a força do grupo surgisse e os seus movimentos, tradicionalmente conhecidos, aparecessem;

g)     em cada encontro com esse “grupo”, aprendemos que, aceitando a pessoa do doente, tentando compreender sua doença, sendo espontâneos e verdadeiros na relação com eles, torna-se possível, uma vez controlados o tempo e o espaço, promover um movimento em direção às dimensões sadias que existem na pessoa portadora de qualquer tipo de transtorno mental.

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         Participantes dessa experiência:
          – Estagiária – Psicóloga Flávia M. Felipozzi Rocha
          – Supervisor – Psicólogo José Luiz Belas