CRÔNICAS – O Grande Desafio

O GRANDE DESAFIO

 

JL Belas – 2009

 

 

O que vou contar, agora, pode até ser mentira, mas essa “estória” eu a ouvi, muitas e muitas vezes, durante toda a minha infância e juventude, e mesmo quando cabelos brancos já povoavam minha cabeça.

É impressionante a força que uma criança possui, mesmo quando é muito pequena, quando ainda não comemorou sua primavera número um.

Estou falando de mim. Uma criança fisicamente pequena, manhosa, possuidora de um poder que abalava até as pessoas mais experientes no tema bebês.

Eu não comia!!! Verdade. Nada passava por aquela goela. Nada. Mamava. Sim. O suficiente para me manter vivo.

Acontece que o menino ia crescendo, precisava ficar forte para ser saudável. Não era assim que, naquele tempo – e ainda hoje – as mamães, as titias e as vovós pensavam?

– Vou tentar uma papinha deliciosa, nutritiva, etc. Dizia a mamãe do garotinho.

– Pronto! Agora, vamos “papá”! Dizia ela, orgulhosa por se ter esmerado no preparo daquele suculento e cheirosíssimo almoço.

Tudo preparado. Prato pronto. Colher mergulhada no prato. Colher tomando direção rumo à boquinha do neném… e… ELE COMEU!!!!! BRAVO!!!!!

Poderíamos dizer que, naquele momento, seria justo gastarmos uma caixa de morteiros e rojões para comemorar a brilhante conquista da dedicada mamãe, orgulhosa por ter colocado em prática suas prendas como dona de casa, mãe e cozinheira.

Mas, espere aí. Aquela foi apenas a primeira colherada. O almoço está apenas começando. É bom guardar os fogos de artifício para a hora da sobremesa. Certo?

Entretanto, a mamãe mostra-se confiante e, orgulhosamente, mergulha novamente a colher na deliciosa sopa. Ela própria já a havia provado e lhe dado nota dez.

– Olha o aviãozinhoooo!!!! E a colher segue célere rumo à pequena boquinha do menininho, que, agora, já percebeu a cilada que estavam armando para ele.

Timidamente abre a boca, enche-a de sopa e… vomita esta colherada e a anterior, que havia guardado, não se sabe onde.

Bebê sujo, mamãe suja, chão sujo, algumas pessoas da “plateia” não menos sujas. Um desasssstreeeee!!!!

Essa não era a primeira tentativa. Não. Dezenas já haviam ocorrido e, todas, um desasssssstreeeeeeee!!!!

A cada dia que essa cena se repetia, o desespero aumentava.

Rezas, orações, promessas para todos os santos… Tudo já se havia feito. Menos uma coisa: um grande desafio gastronômico.

– Como não pensamos nisso!? Disseram as vizinhas, as tias, as vovós e todos aqueles que vinham acompanhando de perto esse drama, cujo ator principal ainda usava fraldas.

– Cada dia uma delas faria a papinha a ser dada àquele precoce aprendiz de faquirismo.

– Primeiro dia: a vovó. Vômito na plateia.

– Segundo dia: a vizinha, dona de um conceituado dom para cozinhar. Vômito na plateia e sobre o gato dessa “mestra-cuca”.

– Terceiro dia: Tia Anita, esposa do Albano (personagem sobre o qual falarei mais à frente). Ela, então, mostrava-se muito confiante, pois sua filha, ainda bebê também, nunca rejeitara seus deliciosos quitutes. Parecia ter prática no assunto e experiência suficiente para apostar que seria a vencedora do “desafio”: quem consegue fazer este menino comer????

Panela no fogo. Já no começo do cozimento, até os vizinhos mais distantes sentiram o aroma que se espalhava pela casa inteira e era levado pela suave brisa da manhã para todos os cantos, aguçando o apetite de tantos quantos por ali passavam.

Sem dúvida, a vitória era certa. Impossível resistir. Todos que sentiram o cheiro daquela papinha da Tia Anita não conseguiam esconder suas bocas “aguadas”, tal como acontece quando se mostra um apetitoso bife para um cão faminto.

Finalmente, HORA DO TESTE!!!

Prato cheio. Colher aterrissando (ou ensopando) na suculenta e cheirosa sopa. Tia Anita sorridente e todos os demais prontos para o grito: É campeã!!! É campeã!!!!

Olhares fixos na colher e na pequena boca do grande desafiante.

Ah! Finalmente, uma, duas, três… VÔMITO, VÔMITO, VÔôôMITO. Um para cada colherada.

Um desaaaassstreeeee em três tempos.

Depois desse momento de intensa frustração, todos seguiram tristes, abatidos, derrotados para suas casas. Batalha perdida. Desesperança estampada em cada rosto.

Mas o menino, hoje, está beirando seus 70 anos. Sobreviveu saudável, forte. Como?

Sem outras alternativas, ninguém mais se habilitando ao desafiante, sobrou apenas a intuição materna. Ela dizia: é claro que ele precisa alimentar-se. Mas, talvez você precise ser menos tradicional. Já percebeu como ele gosta de coisas doces? Já percebeu como ele fica quando o pai saboreia um suculento bife de “carne fresca”?

Seguindo essas “instruções”, que brotavam de seu coração, ela fez o seguinte:

– Dieta: arroz feito no leite e um bom bife mal passado na manteiga, fervendo.

– Modo de dar a comida: o arroz era dado com uma colher (ele comia tudo e nunca o rejeitou) e o bife ela preparava, deixava ficar morno, furava-o com uma faca de ponta afiada, passando por aquele furo um barbante forte. Pendurava o bife no pescoço do menino e ele o tomava nas pequenas mãos, sugava-o até torná-lo tão alvo quanto um floco de algodão. Ah! O barbante? Era para que, caso engasgasse com o bife, ela pudesse puxá-lo, desentalando assim o faminto garotinho que, com o passar do tempo, foi-se adaptando à mesa, aprendendo a comer como gente grande, para alívio de todos. Afinal, como diz Millor Fernandes: “Todo homem nasce original e morre plágio”.