CRÔNICAS E CASOS – O Rei Das Pipas

 

O “Rei Das Pipas”

 

J.L.Belas

Novembro de 2010

 

Quando tinha nove anos, mudei-me para um lugar bem diferente. Antes morava em uma vila. O novo espaço era uma casa construída em um terreno ligeiramente elevado. Para chegar a ela, precisava subir uns 20 degraus feitos em terra batida e algumas lajes de pedra. Gostava de lá. Meus antigos amigos iam sempre visitar-me, pois essa nova residência não estava a mais de 200 metros da vila, onde continuavam morando.

Perto dali, meu pai estava construindo nossa nova casa, onde eu permaneceria até me casar, vinte anos depois.

A maior parte da infância, da adolescência e da juventude passei nesse lugar e dele guardo muitas lembranças, algumas foram temas dos “CAUSOS” que contei na primeira parte deste trabalho, em 2009.

O título que escolhi para esta crônica, O REI DAS PIPAS, refere-se a um dos meus amigos, cuja habilidade mais visível que possuía ligava-se a fazer pipas. Esta sua arte dava origem a outra, a de fazer “cerol”, uma verdadeira “arma”. Ao usá-la, tornava-se o terror dos outros meninos, empinadores de pipas, pois nenhum deles alcançava sua perfeição naquela delicada e engenhosa arte.

O cerol feito por Nelson (o verdadeiro nome dele) era realmente especial, e o segredo de sua fórmula, só comparável ao da Coca-Cola.

Por sermos amigos e nossos pais também amigos e colegas de trabalho, eu tinha algum acesso aos truques que ele utilizava ao banhar as linhas virgens num caldo ralo, feito com cola de madeira e vidros de lâmpadas, triturados a partir de uma técnica guardada a sete chaves. Essas lâmpadas eram transformadas em um fino pó, tão fino, em nada parecido com vidro.

A partir de um carretel novo, Nelson amarrava a ponta daquela linha virgem em um poste, à margem da estrada que nos levava até a Caixa D´Água, e a estendia por dezenas de metros, sem que a mesma tocasse em nada. Era um verdadeiro ritual o que se via naqueles momentos de preparação da “arma letal”, que meu amigo fabricava.

Uma vez esticada a linha, o segundo passo era untá-la, gentilmente, com aquela miraculosa mistura de cola e vidro, coisa que Nelson fazia como um verdadeiro artista. Essa linha ficava exposta ao sol por tempo suficiente, para deixá-la ligeiramente flexível e permitir ser dobrada e enrolada numa haste de madeira que traspassava um enorme carretel feito desse mesmo material.

Pipas feitas, balanceadas, impecáveis no que se refere ao equilíbrio direita/esquerda, agora era só equipá-las com o cerol e enviá-las ao espaço, à procura de suas “adversárias”.

Quando os meninos viam as pipas de Nelson no ar, alguns deles as desafiavam, outros recolhiam as suas, pois sabiam que não haveria nenhuma chance de ganhar.

Os que o desafiavam tinham quase certeza que perderiam aquele combate, mas tenho a impressão de que se sentiam também honrados, mesmo perdendo a disputa, já que seu adversário era quem era, o Rei das Pipas. Não seria, pois, vergonha perder para tão “nobre figura”.

Cada um de nós, pobres e simples mortais, guarda em si uma chama que ilumina um pedaço escuro nosso, cujo nome é vaidade. Eu, como qualquer pessoa, também o tenho, e o tinha mais forte ainda quando precisava afirmar-me perante meus amigos adolescentes. E, por vaidade e desejo se ser admirado pelo meu grupo, lancei-me numa arriscada tarefa: vencer Nelson.

Eu tinha um amigo especialista em pipas. As dele poderiam ser comparadas em qualidade com as que Nelson fazia. Eu conhecia as técnicas utilizadas pelo “Rei” para fazer seu maravilhoso e imbatível cerol. De que mais precisaria para vencê-lo? Pensei.

Como jovem, minha experiência de vida ainda era, evidentemente, muito pequena, estava por se desenvolver e não foi preciso muito tempo para que isso ficasse visível.

Para vencer é preciso força. Teorizava.

Pedi ao meu colaborador que fizesse uma pipa gigante. Assim ele a fez.

Comprei uma linha especial, quase uma cordinha, e nela usei a “mistura coca-cola”, o secretíssimo cerol.

Coloquei meu arsenal no ar e parti orgulhoso e confiante rumo ao meu célebre adversário, sob os olhos curiosos e atentos dos meus outros amigos, aqueles que desejavam, lá no fundo de seus corações, que eu os vingasse, destruindo o terrível déspota.

Inicialmente aquele “morcego”, cuja vareta central media quase um metro, não deixava dúvidas de que se tratava de um monstro voador, capaz de destruir qualquer adversário alado.

Não demorou muito para Nelson, meu amigo, dar seu ultimato lá de cima do morro de onde empinava sua frágil e colorida pipa.

– E aí!!! Você quer mesmo “torar” comigo?

Gritou ele lá do alto do Morro da Caixa D’Água, meio surpreso, meio sem jeito.

– Quero!!!

Respondi, confiante, sob os olhares atônitos da pequena plateia que assistia a meu ato heroico.

E, assim, demos início à histórica batalha, tendo de um lado uma frágil pipa (arraia, forrada com papel de seda) e do outro um fortíssimo morcego, forrado com papel resistente.

A agilidade da arraia era surpreendente. Seus movimentos rápidos e precisos demonstravam o quanto obedeciam, fielmente, às ordens do Rei. O mesmo não acontecia com o desafiante: seu morcego era forte, mas lento, e custava a lhe obedecer.

Não demorou nem um minuto para que, num mergulho somente comparável aos das hábeis gaivotas, a arraia se lançasse sobre o morcego, e sua delicada linha deslizasse suavemente sobre a grossa e poderosa corda que sustentava seu gigante adversário.

– OOOOHHHHHHH!!!!

Este foi o som que se ouviu naquele momento. Partia da plateia que, boquiaberta, constatava um fato inegável. O Rei manteve sua coroa.

Era quase inacreditável o que se viu naquele dia.

Através dessa experiência, mais um aprendizado: Não basta a força e o tamanho para se ganhar uma competição. A vitória é conseguida através da sutileza, da sabedoria, da habilidade.

Muitos anos depois, pude compreender a plenitude dessa ideia, ao acompanhar meu filho às suas aulas de judô, e ao estudar um pouco sobre as bases das artes marciais.

Nelson, O Rei das Pipas, sem perceber, “sabia” sobre essas coisas e, a seu modo, foi um dos primeiros a me ensiná-las.