ESTUDOS – A História da Clínica -01

ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA DA CLÍNICA – 01

 Fabio J. M. Belas

  setembro de 2008

 

O presente trabalho tem como proposta relacionar algumas ideias presentes no conto O Alienista, de Machado de Assis, com as dos três primeiros capítulos do livro O Nascimento da Clínica, de Michel Foucault.

Em sua obra, Foucault identifica o nascimento da clínica na França entre os séculos XVIII e XIX. A mudança de paradigmas decorrentes da Revolução Francesa, e outros fatores, como a necessidade de estudo das epidemias, com o nascimento da Sociedade Real de Medicina, contribuiriam para o fortalecimento da medicina enquanto campo do saber, também criterioso e cada vez mais baseado na cientificidade.

Foucault identifica o médico pré-revolução francesa  como aquele que possuía o olhar privilegiado. Esse olhar seria dotado de saber, capaz de discernir o tipo de patologia  e conduzir ao possível tratamento. O respeito ao médico, até então, era como o respeito a um religioso. Alguém que exercesse a mesma função atribuída a um curandeiro, porém não lhe eram outorgados poderes místicos, mas do olhar e do conhecimento das doenças. Foucault chega a citar que, naquela época, o conhecimento da doença era como uma bússola para o médico. Sem conhecimento, não seria possível identificar o problema, que permaneceria, então, sem tratamento.

O conto de Machado de Assis, O Alienista, narra a estória de Simão Bacamarte. Médico, recém-formado no exterior, Bacamarte retorna à sua cidade natal, Itaguaí, para levar para aquele pequeno povoado a nova ciência da qual se tornara um eminente adepto. Como psiquiatra, decide que a mente do homem seria seu campo de atuação. Porém, apesar de todo o conhecimento que possuía, o personagem acaba por exercer seu olhar, dotado do saber científico, a fim de realizar pesquisas com o povo e aprimorar sua teoria, numa série de situações frustrantes e engraçadas, que culminam num final crítico e totalmente majestoso em sua singularidade.

Relacionando os dois textos, é possível perceber, logo de princípio, que o olhar médico sobre o qual Foucault escrevera, este predominantemente do século XVIII, está presente e é criticado por Machado de Assis em sua obra. Em tom cômico, o autor criou passagens em que o saber científico se sobrepõe ao popular, do senso comum, repleto de representações sociais e, mesmo sendo totalmente absurdo em suas deduções, acaba por ser considerado e não questionado.

É o médico o dotado do saber, portanto, traz consigo algo chamado “poder”. A crítica de Foucault ao poder é bem conhecida nos meios acadêmicos, mas torna-se interessante o fato de ser este mesmo poder o ponto de partida do conto de Machado. Bacamarte recebera poder ao se formar como médico, pois possuía um saber científico. O conceito de cientificidade, com base nos padrões de validação da verdade, proveniente dos métodos propostos pelos empiristas e positivistas, também com influência do racionalismo cartesiano, dificilmente é questionado atualmente, e muito menos o seria na época da modernidade.

Simão Bacamarte não só possuía o saber científico que lhe outorga poder, mas também é representado com toda a estereotipia do homem da ciência. Aquele que é frio, meticuloso, calculista, estrategista, que age conforme seus conceitos e seus cálculos. Na obra de Machado, até a escolha da esposa de Bacamarte é considerada segundo probabilidades.

Foucault identifica o hospital como um espaço onde os pobres eram alienados. O marginal deveria ser trancafiado num hospital, sem qualquer olhar sobre ele, pois não era interessante sua melhora para o governo monárquico. Seria apenas uma medida de contenção e é claro que o pobre, desabrigado, que perambulava nas ruas, deveria ser “tratado” num ambiente de reclusão. Para os ricos, o médico atendia a família por gerações. O leito da clínica era o próprio leito do lar daquele que estava enfermo. Novamente surge o poder, mas não do olhar especializado, e sim da barganha, da riqueza.

Machado de Assis não enfatiza essa diferença em O Alienista, apesar de ela estar também presente. A princípio, os loucos que viviam nas ruas foram postos na Casa Verde, para serem estudados pelo olhar clínico de Bacamarte. No entanto, o enfoque é o homem da ciência, que busca definir os conceitos de “normal” e “patológico” em sua teoria. Assim sendo, para Bacamarte, não há ricos ou pobres, mas doentes mentais “furiosos” ou “mansos”.

Em pouco tempo, Bacamarte passará a colocar na Casa Verde eminentes cidadãos de Itaguaí, sendo até mesmo o presidente da câmara dos vereadores um deles.

A riqueza e a pobreza não eram critérios para o Dr. Simão, já que este se encontrava tão obstinado em extrair de seus estudos a teoria perfeita que determinasse o são e o doente.

Michel Foucault identifica a revolução francesa como um momento em que a nação se encontrara esperançosa. Os hospitais não mais abrigariam apenas os “loucos” pobres, mas ofereceriam tratamento aos doentes, todos eles, independentemente de classe social. Os médicos, fortalecidos devido aos seus estudos e a suas pesquisas sobre epidemias, endemias e constituição, ricos no saber e dotados do poder, seriam como os clérigos. Um, responsável pela alma, e o outro, pelo corpo. O novo Estado, libertador do povo, ofereceria à população a assistência devida e merecida. Era o sonho revolucionário. Um esquema repleto de promessas políticas a ponto de se chegar ao paradoxo, o qual Foucault mencionou, da sociedade curada pelos médicos e que, portanto, não necessitaria mais de seus serviços.

Semelhantemente, no caso de O Alienista, Bacamarte exercia seu olhar especializado, baseado num critério tão obsessivo que promoveu a revolta de alguns cidadãos, atingindo seu clímax na “revolução dos canjicas”. Um movimento contra a “bastilha da razão humana”, incitado pelo barbeiro Porfírio. Interessante a escolha do personagem que incitou a revolta. Um barbeiro. Alguém que exerce uma função quase semelhante à de Bacamarte. Afinal, um barbeiro, numa cidade pequena, acaba por ser confidente da população masculina. É aquele que, antagonicamente a Simão, desconsidera todos os diagnósticos do médico, pois conhece as pessoas com quem convive em seu trabalho. Durante a revolta, fica evidente que Porfírio deseja assumir uma posição no governo que quer derrubar, apoderando-se desse novo espaço. Faz também suas promessas revolucionárias. Seria ele o novo governador, o protetor da vila. Aquele que impediria Bacamarte e fecharia a Casa Verde.

Política e poder sempre caminharam unidos. Em ambas as obras, destacam-se o poder político e o poder do saber.

Foucault, ao escrever sobre a nova medicina do séc. XIX, menciona a bipolaridade médica do normal e do patológico. Antes, o médico concentrava-se na saúde do paciente, no sentir-se bem. Porém, depois da revolução, o médico especialista deveria tratar dos pacientes com os conceitos de normalidade e patologia. Assim, o médico adquiriu status de magistrado, vigilante da moral e da saúde pública. O hospital tornara-se um local para os doentes sem família e para os enfermos contagiosos ou portadores de patologias complexas ou desconhecidas. Assim, o hospital adquiriu características de uma indispensável medida de contenção.

Nos capítulos finais de O Alienista, Bacamarte adquire ainda mais poder com a chegada do exército dos Dragões reais. Acaba por hospitalizar mais da metade da população. Num determinado momento, avaliando seus estudos com seus pacientes, refaz sua teoria. Libertou todos que se encontravam aprisionados na Casa Verde.

Bacamarte considerou que, se todos estavam cometendo atos “imorais”, então não estaria na “imoralidade” a patologia, mas sim na “moralidade”. O normal consistiria em as pessoas não serem perfeitas, nem apresentarem atos de uma conduta racional. Assim sendo, Simão passou a observar a conduta das pessoas e sentenciar à Casa Verde aquelas que fizessem o que fosse racionalmente correto e perfeito. Esses seriam os loucos. A perfeita razão não era mais normal. Essa crítica questiona de onde vem o critério do normal e do patológico. Afinal, nada mudara em Itaguaí, a não ser pelo eminente doutor que retornou.

Machado de Assis apresenta a crítica ao olhar do saber, e o fim de seu conto, em que Bacamarte se percebe como o único possuidor da razão perfeita, internando-se sozinho na Casa Verde até sua breve morte, leva-me a pensar sobre o demasiado estudo teórico e seu inconsequente reflexo no estudante, que não se conhece ou se experimenta o suficiente para poder aplicar tais conhecimentos com alteridade no mundo. O saber concedido ao homem que não percebe, citando o filósofo Sócrates (“Só sei que nada sei.”), que nada de pleno podemos saber.

Foucault identifica a clínica nascida em meio à política e ao poder, subproduto da ciência, o saber. Machado de Assis escreve sobre esse saber que acaba por ser insensível ou não humano. Ambos estão a criticar o poder, a política e as regras ou paradigmas do saber.

 

 Referências Bibliográficas 

 

 1- ASSIS, Machado. O Alienista – Col. A Obra-prima de Cada Autor – São Paulo: Editora Martin Claret, 2007.

2- FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Clínica – Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, 6ª Ed., 2004.

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