CRÔNICAS – ONDE EU MORO ?

Onde eu moro?
J.L.Belas
Junho de 2013

Ter três anos mais setenta me ajuda a perceber algumas coisas que, para muitos, parecem complicadas, complexas… Mas, para mim, é apenas uma conclusão óbvia.
Filósofos e outros pensadores certamente já exploraram bastante o tema e, por isso, não pretendo estar “descobrindo a pólvora” com o que relatarei a seguir.
Durante anos trabalhei numa escola. Nela fiz muitos amigos. Alguns deles, depois que saí daquela instituição, nunca mais os vi. Outros, ainda encontro por aí nas ruas movimentadas do lugar onde moro.
Certa vez estava caminhando no calçadão da Praia de Icaraí e encontrei um daqueles amigos da escola que não via há muitos anos. Foi um reencontro gostoso, alegre, como costuma ser quando a gente retoma contato com bons e saudosos amigos.
Ele se aproximou e me disse que há poucos dias atrás havia pensado muito em mim, principalmente por se lembrar de que eu comentara, em um de nossos encontros, haver praticado tai-chi chuan. Esse meu amigo estava passando por uma fase complicada e seu  corpo “não ia lá bem das pernas”. Após sofrer um enfarto, procurou, por orientação médica, uma academia para iniciar alguns exercícios que pudessem ajudá-lo na recuperação de sua saúde.
Na academia, o professor sugeriu que, além de o exercício proposto por ele, esse meu amigo também praticasse tai-chi. Imediatamente ele se lembrou da nossa antiga conversa e, ao encontrar comigo, uma das primeiras coisas que me perguntou foi: o que é, de fato, esse tal de tai-chi? Dá pra me explicar?
Estou longe de ser um “mestre” nesse assunto, mas topei o desafio e, usando de uma metáfora, mergulhei no tema.
Perguntei ao meu amigo:
– Onde você mora?
– Moro na rua.., número… , etc.
Perguntei-lhe novamente e ele me deu a mesma resposta, rua tal, numero tal, etc.
Repeti a pergunta mais uma vez e ele ficou meio confuso, como se não entendesse o que eu queria com aquilo.
Frustrado por não me dar a resposta certa, tentou, várias vezes mais, informando o bairro onde morava, o estado, o país, o continente e começou a rir, “jogando a toalha”, desistindo por perceber que jamais me daria a resposta correta.
Eu e ele, ao longo desta conversa, continuávamos andando pelo calçadão. Resolvi então acabar com o sofrimento dele e lhe dei a tão estranha resposta:
“VOCÊ MORA DENTRO DE SEU CORPO!”
Ele olhou para mim, meio assustado e precisou de alguns segundos para compreender o que acabara de lhe dizer.
Nosso corpo é o lugar onde moramos!! Acenou com a cabeça, concordando com minha afirmativa.
Expliquei-lhe então:
Sim, o meu ser, minha pessoa, aquilo que identifico como EU, mora dentro de mim. Meu corpo se abriga no local que consta no meu cartão de visita, na minha conta de luz… E, meu  EU se abriga no meu corpo. Simples, não é?
Se compararmos o corpo como uma casa, logo perceberemos que não dá pra deixar a casa sempre desarrumada, não por termos “mania de limpeza”, mas pelo fato de isso trazer transtornos e dificultar nosso trânsito dentro dela. Uma casa razoavelmente arrumada facilita nossa vivência mais agradável dentro dela, não é mesmo?
Bem, mas o que tem a ver isso com o tai-chi? Perguntou curioso o meu amigo.
A prática do tai-chi, como eu a percebo, é basicamente uma faxina na “casa”. Ao praticá-lo mergulhamos em nosso corpo, percebendo cada pequena dimensão dele. O tai-chi é, basicamente, uma meditação em movimento. Uma forma de você se centrar em seu corpo, observando seus movimentos, sentindo o que cada músculo, cada tendão, cada víscera, está lhe dizendo naquele instante. Você, o seu EU, entra em contato profundo com a “casa” onde “ele” mora e, nesse encontro, ambos se revitalizam e se harmonizam.
Uma vez alcançado esse estado de harmonia, seu EU não só se equilibra em relação ao seu corpo, mas seu corpo também se equilibra em relação ao seu EU e, ambos, se integram e se harmonizam com a natureza em sua dimensão plena. A PAZ decorre disso. E você a vive durante e após os movimentos suaves que são realizados numa plena vivência dessa arte.
Não foi a toa que o professor da academia sugeriu a prática do tai-chi para o meu amigo.