A espingarda de chumbinho e o trenzinho elétrico

Pessoais/Crônicas

(Lembranças da infância)

Jlbelas – dezembro de 2017

1ª.PARTE

A espingarda de chumbinho

Quando eu era ainda um garoto com uns 10 anos, mais ou menos, o meu sonho era possuir uma espingarda de ar comprimido.  Desde muito pequeno, sempre brinquei com revolveres, facas, arcos e flechas, a maior parte fabricados por mim.   Naquele tempo, nos anos mil novecentos e quarenta, esses brinquedos eram os que nos encantavam.  Não tínhamos os eletrônicos, que hoje se tornaram indispensáveis a qualquer criança.
Não estou escrevendo isso por saudosismo, ou por considerar que os brinquedos de hoje são melhores, ou piores do que os de minha infância. Apenas quero contar uma história vivida por mim e que, até hoje, me faz pensar e repensar muitas coisas.
Aos 10 anos , a cada final de ano que se aproximava, sempre brotava em mim uma expectativa: neste Natal, vou ganhar a minha tão sonhada espingarda de chumbinho.
Nem aos nove, nem aos dez, nem aos onze, ganhei o tão sonhado presente.
Uma das características de minha personalidade, já presente na minha infância, é a inventividade. Desde pequeno eu criava brinquedos e me divertia muito com eles.
A frustração de sempre pedir, e nunca ganhar, uma espingarda de ar comprimido, fez-me construir uma. Embora não fosse de ar comprimido, acabou se tornando a sensação da garotada, amigos meus com os quais brincava na rua em frente à minha casa.
Um pedaço de madeira, recortada, foi a primeira peça a ser feita por mim. Depois dela, um cano de chumbo, muito usado nas instalações hidráulicas das casas daquele tempo, foi pregado sobre a tal peça de madeira, transformando-se, assim, na minha tão sonhada espingarda.
Até aí, tudo bem!
Para que aquela “arma” funcionasse, bastava colocar dentro do cano de chumbo uma daquelas bombinhas, dessas que, até hoje, são usadas nas festas juninas,. Só isso!
Mas, talvez seja importante, antes de continuar essa história, explicar, como são feitas essas bombinhas.  Para quem não as conhece  posso dizer que eram semelhantes aos palitos de fósforos comuns, mas, a parte de madeira dos palitos era envolta em papel e esses abrigavam, em suas dobras, pólvora. O seu uso normal, consistia em se acender o fósforo da extremidade e lançá-lo  para longe. Isso  porque, quando o fogo do fósforo atingisse a pólvora, aconteceria a explosão: buummm !!! E seria bom que ela acontecesse distante da gente.
Mas, como funcionava a brincadeira com a espingarda?  Simples, eu acendia uma bombinha, colocava a dita cuja no cano de chumbo virado para o alto, para que ela fosse bem para o fundo do cano, voltava à posição horizontal e esperava a explosão.
Quando a bomba explodia, o palito de madeira saía do cano em alta velocidade e ainda aceso.  À noite era uma sensação.  Pois, a trajetória do palito incandescente era visível e impressionantemente bonita.
Até aqui, só beleza e emoção.
A garotada se reunia para assistir ao espetáculo pirotécnico que minha espingarda produzia.  Acho que até me invejavam por ser o possuidor de um objeto tão único que fazia de mim o “jovem rei da pirotecnia”.
Porém, uma caixa de bombinhas, continha, pelo menos, 50 delas.  E o menino exibido e orgulhoso de seu invento, não fez por menos, logo no dia da estreia de sua espingarda. Colocou a primeira bomba, a segunda, terceira, a vigésima, a trigésima…   Aplausos!!!!!!!
A gritaria e entusiasmo dos espectadores mirins enchiam  de orgulho o novo inventor,   dono daquela maravilhosa “arma”.
O barulho foi tanto que minha mãe veio até à varanda de nossa casa para ver o que estava acontecendo.  Neste exato momento, o chefe do espetáculo, eu, acabara de colocar no cano a trigésima primeira bombinha. E… BUUUUUUMMMMMMMM !!!!!!!!!!
O cano de chumbo, com o calor provocado por tantas explosões, derreteu e abriu-se tal como uma folha de papel com as bordas recortadas.  Estilhaços de chumbo se espalharam pelo ar formando uma verdadeira chuva de pequenos projetis. Um deles atingiu o pescoço de minha pobre mãe e ela, colocando a mão sobre o machucado, esbravejou: JÁ PRA DENTRO!!!
COM a espingarda (o que sobrou dela, é claro!) nas mãos, COM, minha mãe, agora portadora de um belo machucado no pescoço, e COM a sentença proferida por meu querido e paciente pai: “Agora mesmo que você, nunca mais vai ter uma espingarda de ar comprimido!! Olha só como você não tem juízo!!! Poderia ter deixado sua mãe e seus amigos cegos!!!! Cheegaaaa!  Me dá, já, isso aqui ( a espingarda) e acabooouuuu!!!“,  PERDIA EU, definitivamente, a esperança de ganhar a minha desejada e tão sonhada ESPINGARDA DE CHUMBINHO.
Não apanhei. Não fiquei de castigo. Acho que a sentença proferida por meu juiz e pai, bastou. Ela me condenava a jamais ver aquele meu sonho de criança realizado.

2ª.PARTE

O trenzinho elétrico

Meu pai, ainda menino, começou a trabalhar na Rede Ferroviária Federal. Naquela época ela era chamada de Estrada de Ferro Leopoldina. Ele viveu sua infância, adolescência, juventude e idade adulta, mergulhado naquele mundo da Leopoldina Rayway no qual era possível concretizar sua realização como pessoa, onde encontrava muitos  motivos de alegria e entusiasmo em sua não tão longa vida.  Ele era um ferroviário de corpo e alma. Os trens eram uma de suas paixões.
Tudo indica que o sonho de meu pai era que eu, filho, um belo dia lhe pedisse de presente de Natal, um trenzinho elétrico. Eu nunca lhe pedi isso. E ele, nunca teve coragem de comprar, para ele mesmo, o tal trenzinho.  Acredito que ele ficasse constrangido em dar a si mesmo um presente de criança. Nunca soube que ele desejasse ter um trenzinho. Mas, se seu filho tivesse um trenzinho, lhe seria permitido brincar com ele e deixar que sua fantasia voasse ligeira nos trilhos daquela fantástica máquina dos seus sonhos.
Nasceu sua neta querida, em 1974. Uma menina. Nada a ver com trenzinhos elétricos. Imagino que, mais uma vez, as esperança chegou perto dele, mas logo foi embora.
O tempo passou. A frustração silenciosa, dele, adormeceu em seu cérebro e coração, o mesmo aconteceu comigo. Parecia que nós dois estávamos condenados a não ver nossos sonhos realizados. O meu, claramente anunciado, a espingarda de chumbinho.  O dele, nunca revelado, o trenzinho elétrico.
Estávamos vivendo o ano de 1979.  Nessa época comemorávamos o Natal em minha casa. Nesse dia reuníamos nossos pais, minha filha e, eventualmente, mais algumas pessoas amigas.
No mês de dezembro desse ano, resolvi comprar um trenzinho elétrico, entre outros presentes, para dar de Natal para minha filha que tinha, então, 5 anos. O interessante nisso tudo é que, ao fazer aquela compra, eu sentia que talvez ela não se interessasse pelo presente, mas, certamente, seu avô sim. Ele ficaria encantado com aquele brinquedo. E foi exatamente o que aconteceu.  Parecia que meu  pai se transformara numa criança. Ele brincou o tempo todo, no dia 24 e 25 com o SEU trenzinho. Ficamos, todos, maravilhados ao ver a alegria daquele senhor de 66 anos, sentado no chão, sorrindo como uma criança. Ele era, todo, a felicidade.
Mas, tem mais coisas nesta história…
Em outubro, desse mesmo ano de 1979, Senhor Felinto Luiz Belas, meu pai, comprou um presente para me dar em Fevereiro de 1980, no dia 5, data em que eu completaria 40 anos de idade.  Escreveu um cartão no qual se lia:
“Este presente é para você. Acho que, agora, aos 40 anos de idade, já terá      condições de usá-lo.”
Dentro de uma linda caixa de papelão, estava lá, adormecida e linda , minha tão desejada Espingarda de Chumbinho.
Meu pai faleceu no dia 23 de janeiro de 1980, acometido por um enfarto agudo do miocárdio. Não pode me entregar o presente que havia comprado, mas minha mãe o entregou a mim, juntamente com o cartão escrito por ele, com muita antecedência. Sua letra, inconfundivelmente estética, segura, firme me dizia o quanto estive sempre presente em seu coração e em sua memória.
Trinta anos depois, “nossos presentes chegaram”.
Em relação ao trenzinho, tenho a impressão que meu pai viveu 30 anos nesses dois dias nos quais brincou alegremente no chão da varanda de nossa casa.
Em relação à espingarda, que recebi no dia do meu aniversário, juntamente com uma lata contendo 500 chumbinhos, só posso dizer que gastei quase a munição toda nesse mesmo dia. Como se eu vivesse, naquelas poucas horas, os 30 anos de espera silenciosa.
Eu atirava e chorava.
Eu atirava e ria.
Eu era a alegria, a felicidade!
Éramos, naquela manhã, um menino de 10 anos e um adulto de 40, embalados por uma onda de forte emoção e de imensa saudade.
………………………………………..