FERRAMENTAS

FERRAMENTAS

J.L.Belas-abril de 2021

Dedicatória: Aos meus colegas que estão iniciando na profissão de psicoterapeutas.

Esta história que lhes contarei agora aconteceu quando eu tinha uns 15 anos de idade.

Lembrei-me dela quando, conversando com um amigo, comentava sobre um colega que estudou comigo, no Liceu Nilo Peçanha, em Niterói. Ele se chamava Reiner Paap.

              Reiner era filho de um alemão que, se não me falha a memória, era engenheiro eletrônico.          Esse meu colega era um jovem muito descontraído, muito educado, inteligente e eu gostava muito dele, de suas conversas, de seu sorriso aberto e cativante. Éramos bons colegas. Eventualmente realizávamos trabalhos escolares, juntos. Eu gostava de fazer essas tarefas com ele, pois ele era muito efetivo no que realizava e nós não perdíamos tempo. Rapidamente dávamos conta do que precisávamos fazer.

Certo dia, tínhamos que realizar uma tarefa e combinamos que isso seria feito em minha casa. Mas, antes de lhes dizer o que aconteceu naquele dia, preciso contar-lhes uma outra coisa.

Meu pai era um amante da Música.  Gostava de ouvir e de cantar. Há poucos meses, antes de Reiner ir à minha casa, papai havia comprado uma “vitrola” (uma aparelhagem de som). Ela era composta por um sintonizador de rádio AM, e OC (ondas curtas), um toca-discos para captar sons de LPs (vinil-33rpm), discos quebráveis (acetato- 78rpm) e também discos de vinil de 45rpm .

O móvel que alojava todos esses equipamentos era feito de madeira clara e, na parte de baixo, e na frente dele, havia um espaço destinada aos autofalantes, coberto por um tecido verde-escuro que produzia um efeito visual bastante agradável e elegante. Uma obra de arte!!!   Aquela vitrola era o xodó de meu pai e ele cuidava dela como geralmente se cuida de um bebê recém-nascido.

Numa tarde, meu pai colocou um disco em sua querida e maravilhosa vitrola e… o toca-discos não funcionou. Meu pai, depois de verificar o que poderia ter ocorrido, não conseguiu descobrir nada, nenhum problema.  Mas por que não funcionava?  Nos olhos de meu pai, naquele momento, só se via tristeza e frustração.

Sabendo do quanto ele gostava de sua vitrola, de suas músicas, de seus discos, era fácil perceber o quanto estava sofrendo com aquela “perda”.

Voltemos agora ao que lhes estava contando no início desta nossa “conversa”.

Eu e Reiner, após almoçarmos bastante, resolvemos dar um tempo para voltar ao trabalho da escola.  Faltava pouco terminá-lo.

Reiner e eu fomos para a sala de visitas de minha casa, “residência oficial da vitrola de meu pai”, e ali nos sentamos.

De repente, ao ver aquele equipamento reluzente diante dele, meu colega sugeriu:                – – –

– Vamos ouvir uma música?

Levei um susto com aquela pergunta e de imediato, e quase de forma reflexa, respondi:

– NÃOOO! Não vai dar pois ela está com defeito, quebrada!…

               Até ali, ainda que assustado, eu estava calmo, tranquilo.

               Mas eis que aconteceu, naquele instante, o inesperado.  Meu amigo falou, com voz firme e decidida:

               -VAMOS CONSERTAR ELA!!!

Ao ouvir tamanho sacrilégio, eu congelei!!!

Aquela vitrola era um objeto “sagrado” para o meu pai, venerado por ele.  Tocar nela, para consertá-la, no mínimo, seria pior do que uma violação de um espaço aéreo em tempos de guerra.

– IMPOSSÍVEL!! Disse eu ao meu amigo que, a essas alturas, já se mostrava sorridente e com um brilho no olhar só visto no das crianças diante de uma taça de sorvete com cobertura de chocolate e confeitos coloridos.

Ele vibrava com a ideia de ocupar nosso tempo de “recreio pós almoço” mergulhado numa aventura que lhe parecia fascinante, emocionante, e, para mim, preocupante, aterrorizante!!!

Mas Reiner não se conformou com o meu NÃÃÃÃOOOO!!!  E foi logo me dizendo:

-Você tem uma chave de fenda, um alicate????

E quanto mais ele se empolgava, mais eu tremia. Pensava no que aconteceria se escangalhássemos, de vez, a vitrolinha tão amada de meu pai. Não queria nem pensar no que sobraria para mim, quando ele descobrisse o desastre que eu e meu amigo havíamos provocado destruindo sua fonte de alegria e paixão pela música.

Reiner era sedutor. Nunca soube qual profissão ele abraçou. Depois do Liceu, nunca mais soube dele.  Creio que, caso tenha seguido a área do Direito, deve ter se saído muito bem. Poderia ser também um vendedor.  Conseguiria vender qualquer coisa, por sua habilidade de persuadir.  Ele, por isso, me convenceu a pegar, ainda que hesitante, a bendita chave de fenda.

Eu olhava cada movimento que ele fazia, com meus dedos cruzados e orando baixinho para todos os santos, pedindo que o guiassem naquela aventura que poderia me custar muito caro.

Quando me dei conta, ele já havia retirado todo o toca-discos do lugar, virado o pobrezinho de cabeça para baixo e vasculhado cada canto daquele amontoado de pinos, engrenagens, polias…

De repente, um Ahhhhhhhh! , vindo de Reiner.

– Descobri !!! (disse ele)  Tem uma mola que está quebrada!!!!   E, com voz firme, falou:

Me arranje um alicate e um pedaço de arame!!! (Parecia um oficial falando para um soldado raso.)

Pensei:  Agora danou!! Minhas preces não foram ouvidas!!! Meu Deus, o que foi que eu fiz para merecer isto!!!!!  E, naquele instante, já pude ver o meu pai, um homem calmo, pacato, se transformando em um discípulo predileto do demo, espetando-me com um tridente, forçando-me a caminhar em direção à porta do inferno!!! Meu colega Rainer era o responsável por tudo aquilo!…

Mas, como falei acima, Reiner era persuasivo. Ele poderia até vender gelo para um esquimó. Assim, mais uma vez, obedeci e fui pegar o bendito alicate e caçar um pedaço de arame, lá no quintal de minha casa.

Minutos depois, retornei com o que me foi pedido, alicate e arame, e entreguei tudo para o meu colega.

Reiner parecia um “pinto no lixo”, quase babando de contentamento, exultante tal como uma criança de um ano tomando banho morno em sua banheirinha.  Eu, por outro lado, parecia um cachorro de rua que havia levado uma surra, com o rabo entre as pernas, encolhido, esperando a próxima pancada que levaria no lombo.

Bem, ele amarrou a tal mola que estava quebrada. Fez um “gatilho”.

Recolocou tudo no lugar. E disse:  Pronto!!!! Está tudo consertado!!!

Em meu olhar um cego poderia ver um ar de dúvida, de desconfiança, e de pavor. Era difícil, para mim, acreditar no que acabara de ouvir: “Pronto!!! Está tudo consertado!!!”

Mas Reiner, orgulhoso de sua obra, acrescentou:

– Pega lá um disco e vamos ouvir música!!!!

Era, realmente, difícil de acreditar! Só ouvindo para crer!!

Mas, ainda desconfiado, peguei um disco.  Coloquei na vitrola. Aumentei o volume!

PERFEITO!!!!!!  Som límpido!   Vitrola recuperada!!!!

O sangue, a partir daquele momento, voltou a inundar meu rosto.  Parecia que, diante de mim, acontecera um milagre, um inesperado.  Foi como se, finalmente, estivesse acordando de um terrível pesadelo.

Ouvimos música durante algumas horas.

Estudamos. Terminamos nosso trabalho escolar. Lanchamos.

À tardinha meu pai chegou em casa.  Nada disse a ele sobre a nossa “invasão de território”. Reiner já havia ido embora.

Ao ver que sua vitrola voltara a funcionar, ficou surpreso e alegre.

Não lhe contei tudo que havia acontecido naquela “minha tarde de horror”. Só disse a ele que um amigo meu havia mexido nos controles do toca-discos e, por acaso, descobriu que se tratava apenas de um “MAU-CONTATO”.

Podendo agora ouvir seus discos preferidos, meu pai voltou a sorrir fartamente e ouvimos juntos muitas músicas naquela tarde!!!

Cinco anos depois da visita de Reiner à minha casa, essa vitrola foi vendida. Durante todos esses anos ela nunca mais apresentou qualquer defeito.

Com essa história, vivida na minha adolescência, aprendi uma lição importante que ainda norteia muitos aspectos de minha vida.  Eu a resumiria assim:

– É fundamental conhecer bastante sobre um assunto, para se ter segurança ao agir. Teoria e prática precisam andar juntas.

(Reiner, incentivado por seu pai, lidava com eletrônica e equipamentos mecânicos desde seus 5 anos de idade. Eu não tinha essa informação sobre ele.)

– Arriscar-se não é agir, ou ser, como um “kamikaze”.

– Não basta termos as ferramentas. De nada valerão se não soubermos o que fazer com elas.

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