OBJETIVO: A PESSOA HUMANA

Psicoterapia: Teoria e Prática

Texto para discussão, apresentado aos alunos do Primeiro Curso sobre  “UMA PSICOTERAPIA CENTRADA NA PESSOA”,  realizado no  Serviço de Psicologia do Hospital Estadual Psiquiátrico-outubro/novembro de 1980

Dedicatória

Aos meus amigos estagiários do Hospital Estadual Psiquiátrico – Jurujuba
J.L.Belas – 1978

INTRODUÇÃO

Desde o momento em que o ser humano se deu conta de que ocupava um lugar no espaço e vivia numa dimensão temporal,  passou a ver a si mesmo como objeto de observação a ser compreendido e explicado.

Desde o momento em que um homem questionou a própria existência e propôs que éramos compostos por duas dimensões bem definidas, uma corpórea e uma outra anímica, os seres humanos passaram a ter dificuldade para se verem como um todo, e, a partir daí,  mais do que nunca corpo e alma se tornaram objetos de percepção bastante diferenciados.

O somático, o psíquico. O corpo e o espírito… Dois modos de se enfocar, estudar e compreender o homem.

Tentativas foram feitas para se conceber um estudo convergente de modo a se ter, na síntese dessas duas dimensões, o verdadeiro conhecimento sobre a dinâmica dos seres humanos, sua vida, sua natureza…

Ao longo da história da humanidade, um número muito grande de pessoas buscou a compreensão e a explicação do “ser” humano, na tentativa de compreender como, e por que, o homem é como é, sente como sente, vive como vive.

Surgiram, e ainda surgem em nossos dias, inúmeras teorias que tentam explicar o humano.

Algumas delas conservam a dualidade questionada no século XVII, outras tentam ser mais “atuais”.   Ambas esbarram num problema que vai além dessa diferença do ponto de vista filosófico.

É interessante notar que, nós, enquanto pessoas interessadas em conhecer as diversas concepções sobre o homem e que lidamos com pessoas no nosso dia a dia profissional, muitas vezes, sem nos darmos conta, somos profundamente pretensiosos e até mesmo onipotentes.

Afirmamos que sabemos sobre as pessoas, sobre os seres humanos. Dizemos isso como se acreditássemos que algumas ideias lançadas sobre o homem, há séculos atrás, ou até mesmo há uma década atrás,  pudessem ter validade para se compreender este outro que está diante de nós. Esta pretensão é que foi questionada no texto que escrevi em 78 e que transcrevo a seguir. Nele, fiz apenas algumas pequenas mudanças. As ideias principais foram  mantidas.

José Luiz Belas –  nov./96.

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A questão a ser discutida:

Qual o melhor método de terapia? Qual deles apresenta o melhor resultado? Nesse texto, discute-se como, a partir do conceito de objetivo das psicoterapias, tais perguntas encerram um grande equívoco e um nível considerável de desconhecimento do que de fato é um processo terapêutico.

 “Nós, enquanto pessoas interessadas em conhecer as diversas concepções sobre o dinamismo psíquico, esbarramos, a cada instante, com uma nova palavra, uma nova expressão, um novo conceito nos “dicionários Psi”.  De tempos em tempos, surge mais uma teoria sobre o comportamento humano, sobre a dinâmica do seu psiquismo.

 Embora não possamos, nem devamos deixar essas  “novidades” de lado, sou de opinião que, em muitos momentos,  este conhecimento, em lugar de nos levar para mais junto do nosso objetivo, atrapalha, estorva, dificulta  o surgimento de um raciocínio mais límpido, mais real sobre ele.

Em clínica, e cada um que já viveu essa experiência o sabe bem, quando estamos próximos do cliente, sentimo-nos meio “burros”. Nesses momentos, as teorias, as definições”psis”,  parecem coisas distantes de nós e até nos esquecemos delas.

A não ser que se esteja querendo enquadrar o cliente em alguma categoria diagnóstica,  quando a gente está atento ao cliente, mergulhado no seu mundo,  a teoria fica posta de lado.  Só desse modo conseguimos atingir, bem de perto, um dos nossos objetivos como psicoterapeutas: conhecer aquele que está diante de você.

O cliente é o objetivo da Psicoterapia.  Ele está ali, diante de nós, real, desafiando as teorias que, quase sempre, o reificam.

Creio que, às vezes, esquecemos que a ciência psicológica se faz a cada momento, com cada cliente.

Nós, como pessoas preocupadas em entender e compreender o ser humano, muitas vezes, perdemos uma grande oportunidade de conhecê-lo mais amplamente quando tentamos, a priori, justificar seus comportamentos individuais através de modelos tirados de outros indivíduos.

Cada pessoa que está à nossa frente,  “pedindo ajuda” , ou não,  se mostra como uma grande e nova teoria.  Cabe a nós entrar naquele novo universo –  único – e nos “arriscarmos” a viver uma experiência absolutamente nova também para nós.

Escrevo “arriscarmos”, entre aspas, para chamar atenção para o fato seguinte: esta nova realidade (a do cliente) é ameaçadora para o terapeuta, pois, se ele estiver aberto para penetrar no universo do outro,  ela poderá produzir uma revolução no nosso modo de perceber a nós mesmos e até anular todas as outras experiências, que  já vivenciamos com outros clientes, ou seja,  nesse contato profundo com o outro, tudo pode acontecer comigo, com meus valores e com  minha maneira de ver a realidade até então.

Esse medo, que os terapeutas carregam consigo, parece justificar a necessidade de muitos deles terem uma teoria racional, que os proteja contra a força das novas  teorias que emergem nos contatos com seus clientes.

Disso decorre a necessidade da formação do terapeuta. Essa preparação, mais do que ensinar teorias a ele, implica no treinamento para que possa se libertar das teorias e viver o encontro terapêutico de modo flexível, solto.   As teorias são para “depois do momento vivido na sessão”.  Elas ajudam a organizar o que foi sentido na troca entre cliente e terapeuta. Não servem para muita coisa mais.

Dizendo tudo isso de outra forma,  creio que o psicoterapeuta costuma ver o seu cliente como um objeto de observação, de diagnóstico, de avaliação.

Quando age assim,  deixa  de vê-lo como uma pessoa única e, por isso, terá muita dificuldade para simplesmente contemplá-lo.  Perde a oportunidade de sentir sua unicidade, de encontrar realmente o outro EU diante de si e se relacionar com ele.

Quando age assim, acaba por dificultar o cliente a chegar a si-mesmo, pois passa a lhe impingir uma forma de pensar equivocada  sobre si próprio, distante do seu verdadeiro eu.  O cliente passa a abandonar sua linguagem pessoal e a não reconhecer a sua própria experiência.

Quando age dessa forma, o terapeuta passa a ensinar o cliente a pensar sobre si mesmo, através de uma “linguagem estrangeira”, cuja semântica é, às vezes, truncada e de difícil compreensão.  Em lugar de o terapeuta dar ao cliente uma nova linguagem, por que não procurar compreender o código e a linguagem do cliente?  Por que levá-lo a perceber o mundo através dos olhos do terapeuta?  Será que a linguagem dos “psis” é mais plena de sentido, mais rica, mais terapêutica?

 Será que a linguagem do terapeuta é verdadeira para ele mesmo? Ou será tão somente uma linguagem aprendida nos livros técnicos?

Será que o terapeuta repete, como um gravador, o que lhe disseram sobre o sentido de tal ou qual forma de comportamento, e despeja isso, como um papagaio, sobre o cliente?

 Penso que, se o profissional estiver agindo assim, estará bastante distante de conseguir alcançar o outro ser humano que esta diante de si.

 Uma outra questão poderá ser pensada aqui: uma pessoa poderá ser um grande  conhecedor de uma teoria psicoterápica, mas isso não lhe bastará para que possa se “aproximar de uma outra pessoa”, senti-la, compreendê-la.

Com conhecimentos teóricos, uma pessoa poderá estar apenas em melhores condições, em comparação com aquela sem conhecimentos, quando estiver se propondo a realizar uma observação bem objetiva dos sintomas apresentados por alguém. Costumo achar que o terapeuta que tem somente o conhecimento, tem, também, apenas a chance de atingir a “carcaça do cliente”, não o que está no “lado de dentro dele”.

Quando se quer  “entrar”  no âmago das vivências  do outro, as teorias, todas,  qualquer que seja ela, poderão  dificultar o encontro, pois a dimensão real do relacionamento humano implica num não comprometimento teórico, num abandono  de hipóteses sobre o comportamento. Exige “quietude” para sentir e ouvir as palavras que vêm, lá de dentro, da pessoa que está diante de nós.

Por outro lado,  quando o encontro se dá , podemos sentir que não há UMA única teoria para se poder, intelectualmente, entender o que ocorreu no momento terapêutico.  Todas elas estão ali, pois o que originou cada uma delas esteve bem diante de nós: um ser humano.

Ao longo da história do homem, muitos deles, por muitos motivos, se preocuparam com seus semelhantes e se propuseram a entendê-lo, explicá-lo.

Os que buscavam tais explicações e entendimentos partiam de pontos diferentes, de posições diferentes: posições teóricas, filosóficas, geográficas, em épocas bem distintas. Chegaram, portanto, a ter uma visão bem diferente, uns  dos outros. Não é, por isso,  difícil se concluir  que cada um deles formulou uma teoria diferente sobre o ser humano.  Todavia o que deu origem a todas as teorias conhecidas sobre o homem foi o próprio homem, pois TODAS VEEM O MESMO HOMEM.  Esse “mesmo homem” significa que o que varia é algo da ordem do situacional, ambiental, cultural, social…  É aprendido, vivido diferentemente, mutável….

Parece que o homem intui, ou percebe claramente, que ele é infinitamente grande (já que o Universo cabe dentro dele).  Por outro lado, ele é infinitamente pequeno quanto à sua capacidade perceptiva:  tem um campo visual limitado, seus ouvidos não captam todas as frequências, não pode ver, ao mesmo tempo, um objeto pela frente e por trás, não pode sentir todos os sabores de uma só vez,  não tem informações suficientes para entender todos os campos do conhecimento humano.  Enfim, ele é muito limitado.

Por outro lado, várias pessoas, olhando, sentindo, ouvindo, tendo conhecimentos diferentes,  podem, mais completamente, chegar a uma dimensão mais plena do que estiver sendo  observado.   Isso nos parece bastante óbvio!

Assim, na ciência psicológica, muita gente pensa, vê, sente o ser humano através de sentidos e informações diferentes.  Concluem coisas também bastante diferentes em relação ao comportamento humano.  Entretanto, isso  não deveria acarretar uma anulação, um empobrecimento, mas, pelo contrário, uma  complementação de informações, um enriquecimento da compreensão do Humano.

Ninguém consegue ver e sentir o que estiver observando na sua totalidade.

Ninguém conseguirá, jamais, construir uma teoria completa sobre o humano.

Ninguém tem uma verdade única e insofismável. Se um cientista  pensar dessa forma, colocar-se-á, fatalmente,  numa posição onipotente e anticientífica.

Nenhuma teoria que estuda o homem é completa.  Todavia, acredito que as que mais se aproximam dessa completude são as que se caracterizam por uma postura de “não dogmatismo”. São as teorias que estão conscientes de suas limitações, que se abrem para novas informações oriundas de outros enfoques epistêmicos. São aquelas que questionam as demais, sem negá-las. São aquelas que se autoquestionam e que, por tudo isso, contribuem para o surgimento de terapeutas mais científicos, mais sensíveis aos aspectos característicos da natureza humana. Em decorrência dessa postura de reconhecimento das reais dimensões do seu objeto de estudo, possivelmente os terapeutas passariam a perceber o outro como uma Pessoa, com tudo o que isso significa. Esses “novos terapeutas”, com certeza, estariam em melhores condições para compreender, ajudar e aprender mais com seu cliente, por estarem, assim, mais próximos do seu objetivo: a “pessoa humana.”

 

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