Psicoterapia: Teoria e Prática
Recortes e reflexões sobre o capítulo IV do livro Nietzsche e a Filosofia,escrito por
Gilles Deleuze- Editado por RÉS-Editora Lda. Porto . Portugal
Aos meus clientes, pelo muito que me ensinam a cada dia.
J.L.Belas – 1994
SUMÁRIO
Tentei, neste trabalho, fazer uma aproximação entre o que vivo na minha prática clínica, e algumas idéias que Nietzsche em relação ao ressentimento e a má consciência.
Em vez de tomar como ponto de partida o próprio Nietzsche, achei melhor ir até ele através de Deleuze, indiscutivelmente um mestre no assunto.
Penso que este tema seja muito importante para quem trabalha na clínica, pois nos ajuda a refletir sobre uma série de questões com as quais esbarramos diariamente, quando entramos em contato com nossos clientes.
Finalmente, trata-se de uma modesta contribuição para os meus colegas que trabalham em psicoterapia, independentemente da abordagem teórica que norteie o método que utilizam.
ALGUMAS QUESTÕES DA PRÁTICA CLÍNICA
Nós, que trabalhamos em consultório, vivemos constantemente com uma questão trazida pelos clientes que é sua “impotência” para se desvencilhar de seus problemas, ou seja, para mudar.
Mesmo se empenhando para viver uma vida mais leve, mais integrada e integral, as pessoas que nos procuram, quase sempre , trazem uma queixa básica: uma insatisfação com a vida que estão vivendo.
A despeito de seu nível intelectual, de suas informações sobre a dinâmica psíquica do ser humano, das “causas” do seu problema, o cliente costuma falar sobre suas dificuldades do seguinte modo: ” uma coisa que me prende e que não me deixa agir como acho que deveria”.
Um outro aspecto, que frequëntemente é mencionado nas entrevistas, diz respeito ao “tipo de prisão” que os clientes experimentam. Essa “prisão” se refere a um ancoramento nos fatos passados dos quais eles não conseguem se esquecer. Esse ancoramento, constantemente faz com que o presente seja sentido como se fosse o passado, ou vice-versa. E, com isso, eles não tem uma visão do futuro como algo que vai acontecer, que é novo. Não. Eles vêem o futuro a partir do passado, como se já soubessem como o futuro será. Isso os impede de conceber a vida como um fluir imprevisível. O que acarreta, nelas, uma falta de flexibilidade no modo de perceber fatos e situações que vivenciam.
Podemos mesmo dizer que a doença psi é uma doença cujo sintoma principal é a rigidez.
Em outras palavras, a falta de flexibilidade parece caracterizar os problemas psicológicos.
Na maioria das pessoas com transtornos psíquicos, a flexibilidade, ou é inexistente, ou muito pouco presente nelas. Como conseqüência, a criatividade para solucionar seus problemas quase não existe. Dessa forma, repetem, repetem, e repetem (aparentemente sem motivo lógico) comportamentos que são ineficazes para lhes proporcionar uma vida equilibrada, feliz…
Algumas pessoas poderão questionar o que escrevi nos parágrafos anteriores argumentando que os artistas, mesmo quando apresentam transtornos psicológicos, nem por isso deixam de ser criativos. Considero este argumento falho, pois o que quero dizer é que, mesmo as pessoas criativas, sensíveis, quando seus de problemas atingem a área afetiva, emocional, se mostram profundamente amarradas, rígidas e suas “saídas” acabam não sendo eficazes para promover uma forma de vida mais saudável.
Há exceções? Há. Tenho visto muito poucas.
Outro aspecto interessante é a questão da memória.
Há pessoas que vivem seus problemas de forma “enciclopédica”. Ou seja, elas “sabem” tudo a respeito delas mesmas. Elas não esquecem nada que aconteceu há um minuto, um dia, um mês, um ano, ou vários anos.
Sabem em que dia aconteceu um fato, as pessoas que estavam lá, o que elas disseram, suas expressões físicas, etc.
Possuem uma supermemória que parece armazenar todas as experiências vividas, principalmente aquelas que lhes servirão para argumentar sobre suas dificuldades e que possam justificar a limitação em que vivem.
Quando Nietzsche nos fala sobre o ressentimento e a má consciência, parece clarear um pouco este ultimo aspecto apresentado, principalmente quando nos deparamos com algumas pessoas que são “cegas” para os fatos que estão diante delas. Tais pessoas não conseguem “ver com nitidez” nem com precisão a realidade diante dela, no aqui e agora. Elas distorcem tudo, ou quase tudo. Não concluem nada, pois o concluir as coloca num “vazio” e provoca nelas uma enorme angústia, uma “falta de chão”.
A clínica é muito mais rica do que esbocei acima e, claro, não pretendo descrever aqui todos os tipos de pessoas que nos procuram num consultório. Mas, entre os que chegam a nós, um grande número poderia estar incluído no que Nietzsche chama de “o homem do ressentimento”.
Tentarei destacar a seguir alguns aspectos apontados por Deleuze no livro que estamos utilizando nesse trabalho.
REAÇÃO E RESSENTIMENTO
O tipo ativo exprime uma relação entre as forças ativas e as forças reativas, de modo tal que estas últimas são elas próprias agidas. O tipo ativo, pois, engloba as forças reativas, mas num estado que elas se definem por um poder de obedecer ou de ser agidas. Compreende-se então que não basta observarmos comportamentos reativos para que se possa caracterizar um ressentimento.
O RESSENTIMENTO designa um tipo em que as forças reativas imperam sobre as ativas: deixando de ser agidas. Por essa razão O HOMEM DO RESSENTIMENTO “RE-AGE”.
Nele, a reação deixa de ser agida para se tornar algo sentido. Aí as forças reativas imperam sobre as ativas porque se furtam à sua ação.
Talvez o que dissemos acima, num recorte do que se lê no trabalho de Deleuze sobre Nietzsche, possa nos ajudar a entender o que disse anteriormente, lá no início, sobre o cliente com um “transtorno psi”, aquele que nos procura no consultório. Nosso cliente não age, ele re-age. Ele sente, ressente, fica preso no que passou. A ele a ação esta negada.
COMO ACONTECE O RESSENTIMENTO
E QUAIS SÃO SEUS PRINCÍPIOS?
“Vamos supor que um sistema externo do aparelho recebe as excitações perceptíveis, mas não retém nada, não possui, pois, memória, e por trás deste sistema encontra-se um outro que transforma a excitação momentânea do primeiro em marcas duráveis”.
Estes dois sistemas, ou registros, correspondem à distinção entre CONSCIÊCIA e o INCONSCIENTE :
“As nossas RECORDAÇÕES são por natureza inconscientes” e inversamente: “A consciência nasce aí onde termina a marca mnêmica.”
Em Freud : O sistema consciente nasce como resultado de uma evolução: no limite do exterior e do interior, do mundo interior e do mundo exterior, “ter-se-ia formada uma crosta de tal modo flexível devido as excitações que teria recebido sem cessar, que teria adquirido propriedades que a tornaram apta unicamente para receber excitações novas”.
Em Nietzsche : Distingue dois sistemas do aparelho reativo:
a- o inconsciente, definido pelas marcas mnêmicas, pelas impressões duráveis;
b- consciência , um sistema digestivo, vegetativo, ruminante.
Sua função é de se fixar à impressão indelével, investir a marca.
Todavia, essas forças reativas são insuficientes para que possa haver uma adaptação. Esse aparelho reativo precisa se valer de um outro sistema de forças que não seja reação às marcas, mas sim à excitação presente ou à imagem direta do objeto.
Esta segunda espécie de forças reativas não se separa da consciência, “meio onde há lugar para coisas novas”.
A origem, a natureza e a função da consciência são apenas reativas e tem como finalidade identificar sob que forma, e sob que condições, a reação pode ser agida.
Mas, uma questão importante para apresentarmos aqui é que Nietzshe nos mostra que é “necessário que os dois sistemas, ou as duas espécies de forças reativas, sejam separadas. É necessário ainda que as marcas não invadam a consciência.” Ele continua…” É preciso que uma força ativa, distinta e delegada, apóie a consciência e lhe reconstitua a cada instante a frescura, a fluidez, o elemento químico móvel e leve.”
Esta faculdade ativa supra-consciente é a FACULDADE DO ESQUECIMENTO.
O esquecimento impede que as marcas invadam a consciência e a paralise, impedindo assim que ela exerça sua função.
Nietzsche define a faculdade do esquecimento como:
“… uma faculdade de travagem, no verdadeiro sentido da palavra, um aparelho de amortecimento, uma força plástica, regeneradora e curativa. Nenhuma felicidade, nenhuma serenidade, nenhuma esperança, nenhuma altivez, nenhum gozo do instante presente poderiam existir sem faculdade de esquecimento.”
Esta faculdade, força ativa, é delegada pela atividade junto das forças reativas. É uma guardiã, uma vigilante, que impede que os dois sistemas do aparelho reativo se confundam. Tem apenas uma atividade funcional e, portanto, sujeita a perturbações, a variações e malogros.
Por isso: “O homem em que este aparelho de amortecimento se deteriorou e já não funciona, é semelhante a um dispéptico: não consegue terminar nada “… “Nele, a cera da consciência fica como que endurecida, a excitação tende a confundir-se com a sua marca no inconsciente e, inversamente, a reação às marcas aparece na consciência e a invade.”
Dessa maneira, quando a marca toma o lugar da excitação no aparelho reativo, a própria reação toma o lugar da ação, a reação impera sobre a ação. O ressentimento, portanto, é uma reação que, simultaneamente, se torna sensível e deixa de ser agido.
Para Nietzsche, a DOENÇA, como tal, constitui uma forma do ressentimento.
Como eu assinalei, no início deste trabalho, “doença psi” é uma forma de rigidez.
Este “modo nietzcheano pensar”, me levou a re-conceituar a “doença” e me fez lembrar de alguns clientes meus. Eles tinham uma “memória pródiga”. Lembravam dos detalhes de certas situações vividas dias, meses, horas ou anos atrás, como se elas tivessem acontecido minutos antes. Estavam ancorados nesse passado e não conseguiam se livrar dele.
O item seguinte acrescentará mais algumas características desses clientes e talvez esclareça melhor o que estou tentando mostrar.
COMO É O HOMEM DO RESSENTIMENTO?
Nele há uma invasão da consciência pelas marcas mnêmicas à entrada da memória na própria consciência. Ele ( o homem do ressentimento ) é um “cão, uma espécie de cão, que só reage às marcas(cão de caça). Investe apenas nas marcas: a excitação para ele se confunde localmente com a marca. Ele não pode agir a sua reação. Ele tem uma prodigiosa memória.
Nele, qualquer que seja a força da excitação recebida, qualquer que seja a força total do próprio sujeito, servirá somente para investir a marca daquela, de modo que é incapaz de agir, e até de reagir à excitação. Todo mundo é objeto de seu ressentimento.
Ele não “reage”: a sua reação não termina nunca, é sentida em vez de ser agida.
Ele experimenta qualquer ser e qualquer objeto como uma ofensa na medida exatamente proporcional em que sofre o seu efeito. Portanto: a beleza, a bondade são para ele necessariamente ultrajes tão consideráveis como uma dor, ou uma infelicidade experimentada.
Ele não consegue desembaraçar-se de nada, não consegue rejeitar seja o que for. Tudo fere.
Todos os acontecimentos deixam marcas; a recordação é uma chaga purulenta.
O homem do ressentimento é, por si mesmo, um ser doloroso: a esclerose ou o endurecimento da sua consciência, a rapidez com a qual qualquer excitação se condensa e se congela nele, o peso das marcas que o invadem, são outros tantos sofrimentos cruéis.
Nele, a memória das marcas é odiosa em si mesma, por si mesma.
A esta memória intestinal e venenosa, Nietzsche chama a aranha, a tarântula, o espírito de VINGANCA.
CARACTERÍSTICAS DO RESSENTIMENTO
O Homem do Ressentimento experimenta:
– impotência para admirar, para respeitar, para amar;
– passividade (não age);
– imputação dos danos, distribuição das responsabilidades, a acusação perpétua.
Em alguns clientes, isso chega a um nível de defesa tão grande que lhe é difícil até ouvir o que de mais “inofensivo” se lhe diga. Há sempre uma sensação de estar sendo acusado e , imediatamente, começa a direcionar a “culpa para os outros”.
É BOM ? É MAU ?
Neste tópico, Nietzsche levanta uma questão típica, de interesse não só para o trabalho do clínico. Suas indagações nos direcionam, também, para uma reflexão sobre a formação geral do homem e de sua personalidade. Trata-se das distorções às quais somos submetidos, desde o princípio de nossa historia pessoal, relativamente aos valores e ao modo como nos definimos como seres humanos, aceitáveis ou não, amáveis ou repudiáveis dentro do nosso grupo.
Netzsche nos diz:
” É bom todo aquele que não exerce violência sobre ninguém, todo aquele que não ofende nem ataca ninguém, não usa de represálias e deixa para Deus o trabalho da vingança, todo aquele que como nós se mantém escondido, evita o encontro com o mal e, de resto, liga pouco às coisas da vida, como nós, os pacientes, os humildes, os justos”.
Através dessa afirmação, ele tenta mostrar como tais idéias nos são repassadas, e o quanto elas produzem a formação de conceitos de valor que acabam por impedir que o homem tenha uma ação positiva sobre si mesmo, levando-o a utilizar freios que limitam seu real desabrochar, não permitindo que ele seja ele mesmo.
Com afirmações desse gênero, que todos nós ouvimos durante todo o trajeto de nossa história pessoal, chegamos a formar certos juízos de valor que nos definem o bem e o mal, juízo moral , originado pela determinação ética do bom e do mau.
A culpa, geralmente presente nos clientes, é um aspecto bem caracterizado e apresentado por Nietzsche, principalmente quando discorre sobre o tema o bem e o mal, o bom e o mau e ainda sobre o desenvolvimento do ressentimento.
Para esse pensador, o sacerdote judaico (o artista do ressentimento) é o que põe em forma o ressentimento.
Diz Nietzsche:
“Esse gênio que criou um não a todos os movimentos ascendentes da vida, para tudo o que é bem nascido, poder, beleza, afirmação de si na terra, o qual inventou um outro mundo, e que fez tais movimentos para a afirmação da vida parecerem como o mal ,a coisa reprovável em si.”
“O sacerdote é aquele que põe em forma o ressentimento, aquele que conduz a acusação e vai sempre mais longe na empresa de vingança, aquele que ousa a inversão dos valores.
É ele que começa a dizer: Só os miseráveis são bons, os pobres, os impotentes, só os pequenos são bons; aqueles que sofrem, os necessitados, os doentes, os disformes são, do mesmo modo, os únicos piedosos, os únicos benditos de Deus; e só a eles que a beatitude pertencer. “Pelo contrário, vós outros, vós que sois nobres e poderosos, vós sois para toda a eternidade os maus, os cruéis, o ávidos, os insaciáveis, os ímpios e, eternamente, permanecereis também os réprobos, os malditos, os condenados”.
MÁ CONSCIÊNCIA E INTERIORIDADE
O objetivo do ressentimento pode ser visto por dois aspectos:
1- “privar a força ativa das suas condições materiais de exercício;
2- separá-la formalmente daquilo que ela pode.”
Como conseqüência disso se pergunta então em que se transforma essa força ativa?
Nietzsche nos diz:
“…qualquer que seja a razão pela qual uma força ativa é falseada, privada das suas condições de exercício e separada daquilo que pode, VIRA-SE PARA O INTERIOR, VIRA-SE CONTRA SI.”
Em outras palavras, força ativa se torna realmente reativa.
Nietzsche, nesse ponto, nos mostra com mais precisão ainda como se origina a má consciência:
” Todos os instintos que não desabrocharam, que qualquer força repressiva impeça de rebentar no exterior, viram-se para o interior: é a isso que eu chamo a interiorização do homem… É aí que reside a origem da má consciência.”
Ele nos esclarece :
“É neste sentido que a má consciência toma o caminho do ressentimento.”
Um outro momento interessante na leitura desse capítulo foi verificar que , a partir desse conceito de má consciência e de ressentimento, um outro aspecto, comum na clínica, surge. Refiro-me aqui às declarações de inúmeros clientes que dizem como é difícil para eles aceitarem seu sentimento de felicidade.
Explica Deleuze:
“O ressentimento esconde um ódio sob os auspícios de um amor tentador:
eu te acuso, faço-o para teu bem; amo-te, para que te unas a mim, até que tu te unas a mim, até tu próprio te tornares um ser doloroso, doente, reativo, um ser bom…”
Deleuze cita Nietzsche:
“Quando é que os homens do ressentimento alcançarão o triunfo sublime, definitivo, brilhante, da sua vingança? Indubitavelmente quando conseguirem lançar na consciência dos felizes a sua própria miséria e todas as misérias: de modo que estes comecem a envergonhar-se da sua felicidade e a dizer talvez uns aos outros: é uma vergonha ser feliz perante tantas misérias.”
Mais adiante diz:
“A força ativa torna-se reativa, o senhor torna-se escravo…”
“Separada daquilo que pode, a força ativa não se evapora. Ao virar-se contra si, PRODUZ DOR.”
“O sofrimento, a doença, a indignidade, o dano voluntário, a mutilação, as mortificações, o sacrifício de si são procurados do mesmo modo que um prazer.”
Essas questões trazidas por Nietzsche são tão comuns na prática clínica que , ao ler estas linhas é inevitável que “passe diante de nossos olhos” vários rostos de pessoas por nós atendidas.
A questão da má consciência levantada por Nietzsche poderia ser assim definida:
“Multiplicação da dor por interiorização da força, por sua introjeção, é esta a primeira definição da má consciência. “
A questão da dor, outro tema muito significativo para nós, é considerada o segundo aspecto da má consciência. Essa questão nos levará a um outro conceito, rico para a prática clínica, que é o de sentimento de culpa.
A PRODUÇÃO DA DOR
Uma vez interiorizada, a força ativa torna-se fabricante de DOR.
Essa dor passa a ser interiorizada, sensualizada, espiritualizada. Ou seja, a dor ganha outro significado: passa a ser a conseqüência de um PECADO, de uma CULPA.
A única saída para se livrar da culpa e do pecado é fabricar a própria dor.
” A dor transformada em sentimento de culpa, de temor, de castigo.”
Nietzsche considera que a definição do primeiro aspecto da má consciência seria TOPOLÓGICO, seu estado bruto, ou material, transformação de forças….
O segundo aspecto da má consciência é definido como TIPOLÓGICO, ou seja, sua transformação em sentimento de culpa.
Essa passagem de um aspecto para o outro necessitou da “intervenção” de agentes que possibilitaram a mudança de direção no movimento da dor:
– do SENTIDO EXTERNO( onde a dor não era um argumento contra a vida, mas, pelo contrário, um excitante da vida “um atrativo da vida”, como nas guerras),
– para o SENTIDO INTERNO( ou seja, agora o sofrimento tem um outro sentido, virado para a paixão. Assim fazemos da dor a conseqüência de uma culpa e o meio de uma salvação. Cura-se a dor fabricando mais dor.)
Nietzsche se pergunta quem inventou e desejou o sentido interno da dor ?
Ele considera que a figura do sacerdote cristão, segunda figura, pois a primeira foi a do sacerdote judeu, foi responsável pela criação do sentimento de culpa nesse nível que estamos agora discutindo.
Diz Nietzsche :
” Foi apenas nas mãos do sacerdote, esse verdadeiro artista para o sentimento de culpa, que este sentimento começou a tomar forma.”
E Deleuze completa:
” É o sacerdote cristão que faz sair a má consciência do seu estado bruto ou animal, é ele quem preside a interiorizacao da dor.
É ele, sacerdote-médico, que cura a dor ao infectar a ferida.
É ele,sacerdote artista, que conduz a má consciência à sua forma superior: a dor, conseqüência de um pecado.”
” Esse sacerdote muda a direção do ressentimento.
Num primeiro momento, como já vimos, o homem do ressentimento, sofria, mas procurava uma causa para o seu sofrimento fora de si, acusando tudo e todos:
“Vê esses homens que se dizem bons, eu te digo: são maus.” Diziam os sacerdotes nesse primeiro momento.
Num segundo momento o homem reativo precisou encontrar a causa do seu sofrimento dentro de si mesmo.
Ai surge o sacerdote dizendo agora: ” E verdade, minha ovelha, alguém dever ser a causa do teu sofrer; mas tu próprio és a causa de tudo isso, tu és a causa de ti próprio.”
Surge ai a noção de PECADO.
Comentei, no item “características do ressentimento”, sobre alguns clientes que lançavam a culpa para os outros.
Será que poderíamos dizer que a má consciência e o ressentimento ocorrem em “escalas” , em “momentos evolutivos” diferentes para cada pessoa e dentro a mesma pessoa ? Ou, de outro modo, há pessoas que ainda vivem numa fase na qual não sentem a culpa como lhes sendo devida, onde elas ainda não se colocam como culpadas? Onde a consciência ainda não se tornou capaz de dizer : ” tu próprio és causa de tudo isso ” , ainda não assumem o seu PECADO ?
Chamo atenção aqui para as “personalidades imaturas, infantilizadas”. Elas não costumam se admitirem culpadas, pecadoras…
Enquanto o ressentimento diz: é por tua culpa, a má consciência diz: e por minha culpa.
Nesse momento o sacerdote se torna o senhor daqueles que sofrem. Deleuze nos chama atenção para o paralelismo existente entre os conceitos de má consciência e de ressentimento, e sobre os dois aspectos de cada um deles.
“A definição do primeiro aspecto da má consciência era :
a multiplicação da dor por interiorização da força.
A definição do segundo aspecto é:
interiorização da dor por mudança de direção do ressentimento.”
“….é necessário insistir também no paralelismo da má consciência e do ressentimento. Não só cada uma destas variedades possui dois momentos, topológico e tipológico, mas também a passagem de um momento para outro faz intervir o personagem do sacerdote. E o sacerdote sempre age por ficção.
Nas linhas anteriores vimos a ficção na qual repousa a inversão dos valores no ressentimento. Fica, entretanto, por resolver : sobre que ficção repousa a interiorização da dor, a mudança de direção do ressentimento na má consciência ? Este problema põe em pauta um outro: o conjunto de fenômenos chamado CULTURA.
A CULTURA ENCARADA DO PONTO DE VISTA PRÉ-HISTÓRICO
Nietzsche nos diz que o movimento da cultura, que ele chama de “moralidade dos costumes”, não está separado das torturas, dos meios atrozes que servem para adestrar o homem. Entretanto ele distingue aí dois elementos:
1- Aquilo a que se obedece, num povo, numa raça ou uma classe, é sempre histórico, arbitrário, grotesco, estúpido e limitado ( as piores forças reativas );
2- Nesse obedecer cego, aparece um princípio que vai além dos povos, raças, classes, a lei de obedecer às leis, algo genérico, “pré-histórico”.
Assim, Nietzsche denomina de “pré-histórico” esse dado genérico.
Afirma que a cultura é a atividade pré-histórica do homem, que fornece a ele hábitos, que o leva a obedecer à leis, que o adestra.
Isso significa que dá ao homem condições de agir suas forças reativas, reforçar sua consciência que deixa de ser fluida, fugidia, de se apoiar na faculdade de esquecimento.
Em outras palavras, a cultura dá ao homem condições de “não esquecimento”, dota-o de uma MEMÓRIA, diferente daquela , das marcas. Essa não se liga ao passado mas sim ao futuro. ” Não é uma memória da sensibilidade, mas uma MEMÓRIA DA VONTADE”, das falas.
“É A FACULDADE DE PROMETER, COMPROMETIMENTO DO FUTURO, RECORDAÇÕES DO PRÓPRIO FUTURO.” As promessas devem ser mantidas para determinado momento futuro.
Como nos diz Deleuze:
” É esse precisamente o objetivo seletivo da cultura: formar um homem capaz de prometer, portanto de dispor do futuro, um homem livre e poderoso.”
Para atingir seu objetivo, a cultura impõe ao homem uma série de suplícios para conseguir adestrar as forças reativas, e obrigá-las a serem agidas. Ela fez da DOR um meio de troca, uma moeda, um equivalente exato ao esquecimento, de um dano causado, UMA PROMESSA NAO CUMPRIDA.
Justiça, castigo… Dano causado = dor sofrida…
A relação do homem com homem é a equação do castigo.
A relação humana , por essa equação, se estabelece seguindo o seguinte o esquema de uma relação de um credor com um devedor:
” a justiça torna o homem responsável por uma divida “.
Dai, se percebe que o homem paga , com sua dor, o dano que causa, por ser responsável pelas suas forcas reativas.
Neste tema, surge a questão:
” não se compreenderá nunca a cruel equação dano causado = dor sofrida, se não se introduzir um terceiro termo, o prazer que se sente ao infligir uma dor ou ao contemplá-la.”
Tal prazer não está vinculado à vingança, ou a uma reação, mas às forças ativas adestradas pela justiça. Ela adestra as forças reativas para torná-las aptas a serem agidas. Assim: ” o homem ativo, agressivo, mesmo violentamente agressivo, está cem vezes mais perto da justiça do que o homem reativo”.
A CULTURA ENCARADA SOB O PONTO DE VISTA HISTÓRICO
“Toda a violência da cultura nos é apresentada pela história como a propriedade legítima dos povos, dos Estados e das Igrejas, como manifestação da SUA força”.
“A cultura não se separa na história do movimento que a desnatura e a coloca ao serviço das forças reativas; mas a cultura não se separa também da própria historia.”
“A história aparece, portanto, como o ato pelo qual as forças reativas se apoderam da cultura ou a desviam em seu proveito. O triunfo das forças reativas não é um acidente na história, mas o princípio e o sentido da “historia universal”.
“Em vez do indivíduo soberano como produto da cultura, a história apresenta-nos o seu próprio produto, o homem domesticado, no qual encontra o famoso sentido da historia: ‘ o aborto sublime’, ‘o animal gregário, ser dócil, doentio, medíocre, “O Europeu de hoje”.
O que se viu anteriormente sobre o ressentimento e a má consciência do ponto de vista individual, agora e repassado para o nível coletivo através de associações de forcas reativas. Elas se apoderam e se misturam na atividade genérica e a desviam do seu sentido. Em outras palavras : a dor e a dívida que antes eram pessoais, agora passam para o plano geral.
” Do ponto de vista da atividade genérica, o homem era tido como responsável pelas suas forças reativas; as suas próprias forças reativas eram consideradas como responsáveis perante um tribunal ativo( intrapessoal).
Agora, as forças reativas aproveitam, com o seu adestramento, para formar uma associação complexa com outras forças reativas: sentem-se responsáveis perante essas outras forças, essas outras forças sentem-se juizes e senhores das primeiras.
A dívida, que até então era individual, torna-se para com a “divindade”, para com ” a sociedade”, para com “o Estado”, para com as instâncias reativas.
Tudo se passa entre forças reativas: sob a sua nova forma, é inesgotável, impagável.
” Agora a dor apenas paga os juros da dívida; a dor é interiorizada, a responsabilidade-dívida torna-se responsabilidade-culpabilidade. De maneira que o próprio credor tome a dívida a sua conta, que tome sobre si o corpo da divida. O próprio Deus oferece-se em sacrifício para pagar as dividas do homem, Deus paga-se a si próprio, Deus torna-se o único a libertar o homem daquilo que, para o próprio homem, se tornou irremissível.”
Embora a influencia do sacerdote seja visível na nossa cultura, parece que há pessoas que se tornaram , por alguma razão, não muito clara para muitos de nós, “imunes” a tais influências ( se isso é possível acontecer).
“Pessoas refratárias à cultura ?” “Personalidades patológicas ?” “Distúrbios do Caráter ?” “Personalidades psicopáticas?” Pessoas que embora ressentidas não conseguem experimentar a culpa e continuam apenas ignorando a si mesmo e atribuindo suas limitações a tudo que esta fora de si. Não há débito com ninguém, há , sim, um credito impagável.
Nada a satisfaz, pois ela considera que tem direito a muito mais do que alguém poderia lhe pagar. São infelizes, insatisfeitas. Todos devem se sacrificar por elas. São “deuses”, que não se sacrificam, que não querem libertar ninguém, que só querem dominar tudo e todos. Essas pessoas se fazem dominantes, criam suas próprias leis e querem que todos a obedeçam. São “reis”, “senhores”…
É claro que Nietzsche não se propõe nesse seu trabalho, sobre o ressentimento e a má consciência, explorar todos os tipos de personalidades que chegam aos consultórios dos terapeutas. Ele, realmente, nem está preocupado com isso. Todavia, essas idéias que ele aponta em relação essas questões, são interessantíssimas para nós que trabalhamos nessa área.
Há uma série de questões apontadas por Nietzsche que poderiam ser discutidas pelos profissionais da psicoterapia em geral e isso levaria certamente a uma reflexão e até, quem sabe, uma reformulação, no que diz respeito ao papel do terapeuta e sua relação com o seu cliente, principalmente se levarmos em consideração que ele atribui, de uma certa maneira, ao profissional uma função semelhante aquela que outrora coube ao “sacerdote”, o “confessor”, de alguns tempos atrás ( quem sabe até dos dias de hoje ).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura desse texto, pode ser muito útil para os profissionais Psi.
Ele nos leva a pensar muitas coisas sobre a prática clínica, sobre alguns clientes, suas características e dificuldades.
Ele nos leva a sentir um aspecto da dinâmica da “construção, de uma pessoa”.
Leva-nos a perceber a inter-relação do Ativo/Reativo, o quanto um não existe sem o outro, o quanto um não vale mais do que o outro, o quanto , naturalmente sem as distorções que são impostas ao homem, seria possível vivermos essa complementaridade saudável dentro de nós.
Leva-nos também a pensar como poderíamos contribuir para que o cliente pudesse inverter essa distorção, ou percebê-la melhor e, a partir disso, ter mais elementos para arriscar sair da paralisação, do niilismo, da má consciência e do ressentimento e reencontrar, dentro de si, sua força e o seu poder para tornar-se um humano mais pleno.
.
OBRAS CONSULTADAS:
1- Deleuze, G. – Nietzsche e a Filosofia – RÉS-Editora Lda.Porto. Portugal
2- Deleuze, G. – Nietzsche – Edições 70, Lda. Lisboa . Portugal-1990
3- F. Nietzsche-Obras Incompletas-AbrilCultural-Os Pensadores/VolXXXII/1974