CRÔNICAS: AS NOITES DE SERESTAS LÁ DE CASA

AS NOITES DE SERESTAS LÁ DE CASA

Meu pai era um amante da música.
Guardo, até hoje, uma preciosidade construída por ele: um caderno com letras dos sucessos musicais, principalmente dos anos 30 e 40. Gostava de cantá-las e ouvir seu ídolo cantor: Orlando Silva.
Embora a voz de papai não fosse forte, sua afinação era muito boa (acho que herdei dele essas duas características). Ao pé do rádio, costumava ouvir suas canções preferidas. Como estava sempre ao lado dele, nesses momentos, fui-me habituando com os sons suaves, temas e harmonias. Meu pai foi o meu iniciador na música popular brasileira, ouvida nos anos quarenta e cinquenta.
Nossa casa era simples, mas nela a música não faltava. Não só as do rádio, como as dos toca-discos e as das vitrolas eram ali ouvidas. Música ao vivo também fazia parte desse cardápio, feito de mínimas, semínimas e outras tantas “iguarias”, que alimentava a amizade entre todos nós, participantes das deliciosas serestas, que adentravam as madrugadas sonoras, povoadas de bolinhos e cafés, tudo feito na hora por Dona Alcina, minha mãe. Eram manjares dos deuses que irrompiam, sala a dentro, em bandejas cobertas com alvas toalhas de algodão, bordadas e enfeitadas por delicadas rendas de crochê, feitas pela dona da casa, propiciando que olhos e bocas sorrissem, expressões que denunciavam lembrança de prazeres já experimentados em serestas passadas. Sorrisos e gritos de alegria demonstravam o quanto esses amigos se sentiam gostados, bem-vindos.
Seu “Doquinha”, admirador e fã número um de Moreira da Silva, sambista conhecido por seu estilo ímpar, sabia todas as músicas desse cantor e as interpretava, com sua voz abaritonada, tão bem e quem sabe até melhor do que o próprio Moreira. Ríamos a valer com as que cantava,  cujas letras, invariavelmente, eram carregadas de humor.
Seu Roberto, violonista, seresteiro, tirava do baú músicas antigas, pouco conhecidas, cujas letras mostravam o brilhantismo e a sensibilidade do poeta que as criou. Jovelina era uma das nossas preferidas. Nas serestas lá de casa, ele sempre tinha que cantá-la para nós.
Jorge (Grande), filho de seu Mariano e dona “Ceça”, vizinhos nossos, com sua voz cristalina e seu repertório sublime, brindava-nos, sempre, com canções sentimentais, realistas, estéticas.
Às vezes, contávamos também com um bandolim, um cavaquinho e um pandeiro.
Meu pai sempre arriscava cantar pelo menos uma. Entretanto, mais do que cantar, gostava de ouvir e aplaudir aqueles que, com grande carinho, recebia nessas memoráveis noites.
Alguns tomavam coragem e, assim como eu, também cantavam. Outros apenas deixavam-se invadir pela alegria, pela paz e pelo clima fraterno que ali reinava.
Nenhuma dessas serestas foi programada. Sempre aconteciam como belas surpresas da vida, que nos tomavam de assalto, gerando em cada um o encantamento, que só os “bons encontros” possuem.