Dia 07 de agosto de 1974

Psicoterapia: Teoria e Prática
Vivência no Hospital Estadual Psiquiátrico
Jurujuba  -  Niterói  – RJ
José LuizBelas
1980

INTRODUÇÃO

O texto que vem a seguir foi escrito em 1980. O original , que vocês poderão ver no final deste documento, foi escrito em 1974.

Em 1974, já havia, no HEP, o Serviço de Psicologia e, nele, o Setor de Psicologia Clínica.

Naquela época, eu e meus estagiários acreditávamos que poderíamos evitar a internação de alguns pacientes que lá chegavam.

Nossa experiência era suficiente para crermos que muitas pessoas, que iam para lá, não precisariam ficar internadas, mas simplesmente receber um tratamento ambulatorial no qual fossem incluídos, pelos menos, dois tipos de ajuda: psiquiátrica e psicoterápica.

Em 1974, o atendimento psicológico num hospital psiquiátrico era ainda visto como secundário, e a opinião dos psicólogos bastante questionável e pouco “forte”. Afinal de contas, tratava-se de um Hospital Psiquiátrico e, logicamente,  o “dono da casa” era o médico.

Esta situação hierárquica, que predominava na década de 70, não concedia  aos profissionais da psicologia do Jurujuba um poder que lhes permitisse efetivar suas propostas “antimanicomiais”.

Essa realidade era tão gritante que mal conseguíamos participar de uma “entrevista de admissão”. Quando isso ocorria, os psicólogos eram basicamente espectadores, auxiliares do psiquiatra, com exceção de alguns médicos de lá que, até hoje, mantêm uma conduta bastante lúcida em relação aos papéis desses dois grupos profissionais.

O médico de plantão era quem decidia sobre a internação, ou não, de quem chegasse ao HP, trazido pela família, pelo Corpo de Bombeiros ou pela polícia.

Para completar o que disse acima, e se ter uma ideia mais clara de como as coisas aconteciam, basta lembrar que o Serviço de Psicologia do Jurujuba existiu, de fato, de 1973 até 1984, mas, de direito, nunca chegou a nascer, a despeito de inúmeras reivindicações feitas pelos profissionais que compunham sua equipe, às autoridades estaduais, que tinham tudo para reconhecer a existência, a eficácia e  a utilidade daquele serviço.

Tal situação, de não reconhecimento e valorização daqueles profissionais no nosso hospital, ainda que o responsável pela Psicologia em nossa instituição fosse um psicólogo contratado pelo Estado, com todos os direitos legais para exercer suas atividades, etc., deixa bastante evidente a presença de um preconceito e de uma insegurança dos profissionais médicos, naquela época, quando foi lançada no mercado de trabalho, competindo com eles, essa nova categoria  de trabalhadores em saúde mental, os psicólogos clínicos.

O que conto aqui, nesse pequeno escrito intitulado “Dia 07 de agosto de 1974”, aconteceu nesse dia e nesse mês, nesse ano.

Nessa data, foi lançada uma semente, que começou a germinar somente seis anos depois. Quando ela brotou, fez-me pensar no quanto precisaríamos “brigar” mais para alcançar nossos objetivos como profissionais da Psicologia no nosso Hospital.

Nossa crença sobre a necessidade de reter algumas pessoas fora da instituição, evitando que elas fossem estigmatizadas com isso, marcadas pelo “rótulo” de doente mental,  exigiu de todos nós um empenho intenso , mais potente e mais político.

A política de saúde sofreu mudanças nos anos 80. Com tais mudanças, surgiram projetos. Com eles, chegamos mais perto do sonho que nós, psicólogos, sonhávamos em 74.

Desde novembro de 1998, não estou mais trabalhando no HEPQ. Já se passaram, desde o momento em que escrevi esse documento, três décadas.

Com alegria, constato a grande mudança que houve na atuação dos profissionais da saúde mental em nosso Estado e nosso município.

Possivelmente, não ocorreria, hoje, no contexto daquele hospital, a repetição de um  07 de agosto de 1974.

Uma breve contextualização do “caso”

A jovem de 17 anos, sobre a qual me referirei no documento a seguir, era órfã e vivia na casa de uma senhora que se propôs a “ajudá-la”. Em troca dessa ajuda, aquela jovem deveria realizar, para tal senhora, alguns serviços domésticos.

Essa senhora vivia com um filho de cerca de 20 anos de idade.

A jovem, depois de algum tempo vivendo com essa família, começou a apresentar alguns “comportamentos estranhos”, segundo a sua “tutora”.

Além disso, a tal senhora começou a ficar preocupada com o relacionamento de seu filho com a moça sob sua “guarda”. “Não sei sobre seus hábitos sexuais, se ela ainda era virgem…”

Temendo que ocorresse um envolvimento do filho com aquela jovem, encontrou uma solução: livrar-se dela. Mas como?

Usando qual pretexto? A confusão de seus pensamentos?

Sua irritabilidade? Sua rebeldia de jovem?

Num dia, essa senhora trouxe a jovem ao nosso Hospital.

Ao chegarem aqui, encontraram a equipe da Psicologia que, naquela época, estava atenta e se propondo a “impedir internações desnecessárias”.

Chamava-nos atenção o fato de a paciente ser muito jovem e, pelo menos aparentemente, “saudável”. Estivemos presentes na hora da entrevista feita pelo médico de plantão: único profissional responsável, até então, pela internação dos novos pacientes.

O plantonista era de opinião – baseado nas informações dadas pela “tutora” - de que se deveria internar a jovem paciente.

Nós, do serviço de psicologia, achávamos que, pelo contrário, isso seria a última coisa a se fazer naquele caso.

Fizemos pressão e conseguimos, naquele momento, impedir a internação da moça e agendamos seu retorno para o dia seguinte.

Ela nos deveria procurar para uma entrevista com o nosso psicólogo de plantão.

Com o retorno, mais plenamente concluiu-se pela opção de fazer o atendimento ambulatorial e psicoterápico.

Essa solução não agradou à família e nossa inexperiência nos cegou para esse fato.

Pensávamos ter vencido com nossos argumentos e que a família concordara com a nossa proposta.

Num fim de semana, mais exatamente num sábado, quando o Setor de Psicologia nem sempre funcionava, novamente a trouxeram.

O psiquiatra plantonista era outro. Convenceram-no. Ele a internou.

Somente na segunda-feira, tomamos conhecimento do que havia ocorrido.

Agora ela estava “lá dentro”, “atrás das grades”. Já não tínhamos mais condições de reverter a situação.

Ela estava medicada, dopada.

Agora, era uma doente, com toda a carga que isso representava naquele momento histórico de nossas instituições psiquiátricas.

Depois disso, daí para frente, foram várias internações e “altas sem amparo”.

Ela ia para a rua, mendigar.

A “família” não a queria mais.

Ela era louca? Estava louca?… Ficou louca?

No dia em que escrevi o texto que lhes apresento abaixo, estava na minha sala de trabalho no hospital e vi passar, no corredor, várias pacientes vestidas com o uniforme azul, usado por elas em 1974.

Todas, umas 10, ou menos um pouco, iam passear na calçada da praia que fica em frente ao nosso hospital.

Elas cantavam, desafinadas, roucas… um cântico monótono, sem colorido, abafado, cansado.


O TEXTO ORIGINAL

“DIA  07  DE  AGOSTO  DE  1974”

Hospital Estadual Psiquiátrico –    Jurujuba – Niterói – RJ
José Luiz Belas – 19/11/80

Nesse dia eu a conheci.

Tinha, então,  17 anos.

Chegou para ser internada.

Seu rosto jovem, limpo, moreno rosado, sadio.

Seu olhar, desconfiado como o de um cãozinho que levou umas boas varadas no lombo.

Seu corpo, de carnes hígidas, mostrando a plenitude de sua adolescência.

Seus cabelos, ainda com o brilho que só o das crianças possui.

Falamo-nos pouco.

Tentei retê-la “fora das grades”.

Era tão nova! Tão sadia!

Mas as pessoas queriam ficar livres dela. Insistiram.

Sugeriram a necessidade de um exame ginecológico: talvez ela não fosse mais virgem!…

Esse fato, ou essa dúvida, era suficiente para que as pessoas que “tomavam conta dela” não mais pudessem ter confiança naquela jovem. Seu olhar mostrava, às vezes, ódio. Um ódio do mundo. Um desprezo pelas pessoas. Uma superioridade. Uma desconfiança no amor que vinha, de fora, até ela.

Num sábado, trouxeram-na e internaram a “menina”.

Quando cheguei, na segunda-feira seguinte, ela já estava lá, de azul, atrás das grades, como um pássaro cansado de voar.

Seu rosto – ainda me lembro bem – parecia dizer: acabou tudo, fui vencida.

Agora ela percebia a intenção dos seus ”tutores”.

Já não havia dúvidas. E me pedia: quero ir embora, tire-me daqui!

Mas eu já não tinha mais força para arrancá-la das garras da ”loucura instituída”.

Há duas semanas atrás – seis anos depois do nosso primeiro encontro – eu a vi perambulando pelo centro da cidade, maltrapilha, suja, com o rosto envelhecido, cabelos secos, duros, sem vida.

Ela me olhou nos olhos e fez um gesto como se quisesse falar alguma coisa.

Não consegui encará-la. Foi difícil para mim.

Fiquei muito triste.

Gostaria de ter conseguido parar, falar com ela, olhar nos seus olhos, sei lá, fazer alguma coisa!

Mas algo, dentro de mim, me brecava: não vai adiantar nada!

Hoje, vi uma jovem de 23 anos, de roupa azul, junto com outras moças também de azul, como um bando de azulões.

Ela cantava e as outras também.

Seu canto era monótono,  rouco. Sua voz parecia cansada, surda, abafada. Seu olhar, distante. Seu modo de ser, como um monumento carcomido pela erosão.

Senti uma coisa muito ruim dentro de mim.

ELA ESTÁ DE VOLTA!  (ao hospital)

Cada vez que volta, parece mais velha.

Ela, que, pela idade, poderia ser minha filha, está com a fisionomia de alguém que já viveu séculos de sofrimentos.

Não posso deixar de pensar:

O que estamos fazendo por essa vida?

O que estou fazendo por essa vida?

O que estou fazendo com a minha vida?

Não tenho respostas ou não as quero ter?

Só sei que não é bom o que estou sentindo agora.

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