CRÔNICAS E CASOS – A Viagem Encantada de um Garoto

A viagem encantada de um garoto
(Lembranças da pré-adolescência 1)

                                                          J. L. Belas – 2006

 

 

 

Os livros infantis dos autores da época, que li, eram cheios de aventuras. “Viajava-se” através das narrativas, ricas em detalhes.  

A ausência da TV, tão presente nas vidas de nossas crianças de hoje, parece que nos ajudava a mergulhar num mar de fantasias, de aventuras vividas pelos heróis das estórias em quadrinhos e nas obras literárias, que chegavam às nossas mãos no início dos anos 50.

Um dia, ao chegar em casa, com o resultado das minhas provas finais do Liceu Nilo Peçanha, mais precisamente as do término do primeiro ano do Ginasial, meu pai me perguntou:

– Então? Como foi o resultado final? Passou para o segundo ano?

Meu rosto irradiava felicidade.  Respondi:

– Passei direto! 

De pronto ele acrescentou (sem me dar tempo nem para respirar):

– O que você gostaria de fazer nessas suas férias?

Pego assim, de surpresa, acredito que, de dentro do mais profundo de mim, saiu uma resposta automática, mas que, certamente, já deveria estar sendo nutrida, silenciosamente, em meu coração. E, respondi: QUERO VIAJAR. IR PARA MACAÉ!

Inicialmente ficamos todos surpresos. Inclusive eu. Por que Macaé?

Depois de alguns anos, pude ver, com mais clareza, o que me levou a fazer semelhante escolha. Explicarei isso mais abaixo.

Mas, mais surpreendente ainda foi a reação do meu pai. Sem titubear, ele aceitou minha proposta e, para meu espanto, à tarde, quando retornou do trabalho, entrou em casa com uma mala grande, feita de papelão duro, reforçada nos cantos, com umas cantoneiras de metal (como se usava naquele tempo) e disse para minha mãe:

– Alcina, prepara a mala para ele! Ele vai para Macaé amanhã, e ficará lá, se quiser, por uns 30 dias.

Era como um sonho! Mal podia acreditar no que estava ouvindo e vendo. Eu, com 12 anos, saindo de casa para viajar, sozinho, de trem, indo para uma cidade que ficava a mais de 200km da minha!… Isso era demais! Uma aventura maior ainda do que aquelas vividas pelos heróis das minhas estórias em quadrinhos, ou por qualquer outro jovem meu conhecido, meus amigos mais próximos.

Na manhã seguinte, meu pai me acordou, mandou que eu tomasse meu café, me arrumasse, para irmos para a estação de onde saíam os trens para Macaé, Campos…

Como nunca fui um garoto grande, meu pai me ajudou a carregar a minha mala, pois, se não, ela iria arrastando-se pelo chão. Por aí vocês já podem imaginar o tamanho dela e o meu.

Já dentro do trem, ele colocou a bagagem no lugar adequado, me deu um abraço e disse: quando chegar lá, Seu João estará na estação, esperando por você.  

Seu João era conhecido em Macaé como João Jacaré. Ele tinha um barco de pesca, era considerado um pescador, mas não sabia nadar. Era casado com Dona Isaura, prima de minha avó paterna. Eles costumavam vir ao Rio para comprar material para fazer redes e outras coisas mais e, quando aqui chegavam, ficavam hospedados na nossa casa. Eles gostavam muito de mim. Não tinham filhos e já não eram muito novos. Sempre me incentivaram a passar um tempo na casa deles. Acredito que isso tenha influenciado a minha decisão tão firme, quando meu pai me perguntou sobre o que eu gostaria de fazer nas minhas férias.

Mas, disso tudo, o mais emocionante e significativo foi mesmo a viagem.

Eu, um garoto, viajando sozinho, num trem, na primeira classe, poltronas de palhinha acolchoadas, confortáveis, reclináveis… As cidades – uma após outra – passavam diante dos meus olhos como um filme, mas real, vistas através das belas janelas desse trem. Elas eram de madeira com molduras envernizadas e com vidraças amplas. Para nos proteger do sol, se quiséssemos, poderíamos baixar suas venezianas de madeira, verdadeiras obras de arte de marcenaria.

Os vagões, confortáveis, eram fechados por portas, também envidraçadas, nas quais se podia ver, em seus cristais, as letras estilizadas EFL (Estrada de Ferro Leopoldina).

Esses trens, em seu conjunto, eram uma obra de arte móvel.

Paisagens, pessoas, lugares, o próprio trem e, principalmente, o estar sozinho, era tudo novo para mim.

Comigo, um farnel preparado com carinho por minha mãe. Nele havia pastéis, sanduíches e meio franguinho assado. Nessa época, era uma cena comum  esse tipo de “equipamento de viagem”. O refrigerante era comprado no próprio trem. Era vendido por um funcionário da Estrada de Ferro, que carregava uma cesta cheia de garrafas e as oferecia aos passageiros, várias vezes, durante a viagem.

Comprei meu refrigerante e o vendedor puxou conversa. Mostrou-se interessado em saber para onde eu ia, meu nome, etc..

Depois do vendedor de refrigerantes, passou um outro funcionário. Esse pedia que mostrássemos nossas passagens, pegava-as e, com um objeto parecido com um alicate, picotava uma delas. Era uma maneira de se certificar de que não eu era carona, ou seja, era um passageiro por direito. Esse também se mostrou muito amistoso e interessado na minha aventura.

Ao chegar a Macaé, havia uma “comissão de recepção” esperando por mim. Seu João havia contratado um táxi (um dos poucos da cidade) para me levar para a casa dele. Morava na Rua da Igualdade (nome novo, muito sugestivo e inteligente, dado àquela rua, que antes se chamava Rua do Cemitério).

“Meu quarto”, já preparado com todo cuidado, estava à minha espera. Fiquei por lá durante 30 dias. Como podem ver, gastei todo o tempo que me foi dado para sonhar.

Sentia-me o próprio herói de 12 nos; como alguém que, sozinho, havia atravessado o Atlântico, ou o Polo Norte ou o Deserto de Saara…

Ao voltar para casa, experimentei algo semelhante ao que acredito ser a sensação de um astronauta quando retorna à sua comunidade natal. Todos os olhares dos meus colegas, da rua onde eu morava, estavam voltados para mim. Eu era, agora, um “desbravador”. Alguém com muitas histórias para contar. Deixara de ser criança. Era um “jovem experiente”.

Aos 18 anos, contando sobre essa minha bravata a um amigo meu, que estava por viver algo semelhante ao que eu vivera aos 12, tentando mostrar para ele que seria fácil viajar sozinho, ir para um lugar distante da sua casa, etc., etc., vi o olhar do meu pai, expressivo, sempre expressivo, como se me quisesse comunicar alguma coisa, mas sem poder fazê-lo naquele momento.

Depois que esse meu amigo foi embora, quis saber o que meu pai queria me dizer com aquele olhar e um sorriso, meio amarelo, que havia deixado escapar minutos atrás. Foi então que ele, pela primeira vez, me contou a verdade sobre a minha primeira viagem a Macaé, aquela que me havia transformado em herói, que me fez sentir um cara corajoso, seguro e coisa e tal.

Na verdade, cada personagem dessa viagem, o vendedor de refrigerantes, o picotador de passagens, os que me ajudaram a descer as malas, a trocar de trem na baldeação que havia em Visconde de Itaboraí, etc., eram todos amigos do meu pai. Trabalhadores e amigos da mesma companhia, a saudosa Estada de Ferro Leopoldina.

Quando ouvi essas coisas, ditas por ele, rimos muito.

O tempo de que eu precisava para me sentir herói, já havia passado. O resultado dessa experiência já havia construído raízes profundas em mim.

Com essa aventura, aprendi que não preciso ter medo do mundo e do desconhecido. Aprendi também que me posso afastar da família sem perdê-la e muitas coisas mais.

Não é à toa que a figura do meu pai, homem de pouca cultura, mas profundamente inteligente, sensível e sábio, sempre desperta em mim uma profunda admiração, um orgulho e uma gratidão, por me ter proporcionado essa e muitas outras experiências transformadoras, libertadoras, que enriqueceram minha vida e meu modo de ver o mundo. 

Por isso, não dá para esquecer essa minha viagem encantada de garoto.