“Semeia sempre, em todo terreno, em todo tempo, a boa semente, com amor, com carinho, como se estivesses semeando o próprio coração.”
HAVIA UM RIO
Jlbelas – 2018
Fui apresentado a esse rio quando tinha uns quatro anos de idade, época em que fui morar na Vila onde residia meu amigo Wladmir, aquele que, usando de toda esperteza que possuía, e de forma ilícita, ganhou todas as minhas lindas bolas de gude.
A sensação de me sentir lesado por Wladmir fez meu sangue ferver e me levou a dizer, pela primeira vez na vida, um sonoro palavrão, através do qual eu sugeria que a mãe dele era uma mulher de conduta reprovável.
Falei sobre esse acontecimento em um “causo” que escrevi e publiquei e ao qual dei o nome de “Uma surra inesquecível”. Lembra-se? Pois é! Foi ali, nessa Vila, que, pela primeira vez eu vi aquele “rio caudaloso, de águas traiçoeiras”, que apavorava a gente, principalmente no verão, quando as chuvas vinham mais fortes, dando-lhe ares de um caudaloso Iguaçu.
Aquele rio era, para mim, um mistério. Suas margens ficavam no limite do nosso mundo, onde eu e mais seis crianças de idades próximas à minha brincávamos.
Não nos era permitido entrar em suas águas. Nossos pais diziam que era perigoso. Por isso, sempre havia alguém tomando conta de nós, nos protegendo daquilo que possivelmente nossa curiosidade de criança pudesse nos levar a fazer. Nós víamos aquele rio como um monstro desafiador que, rastejando pelo chão, nos hipnotizava através do canto suave e tentador de suas traiçoeiras águas.
Esse rio era, ao mesmo tempo, assustador e cativante.
Ficar parado diante dele, vendo suas pequenas ondulações, as folhas por ele carreadas como pequenos barquinhos, fazia-nos ”viajar” por “mares bravios” e nos transformava em marujos, ou piratas. Podíamos “ver” e “participar” das grandes batalhas que em suas águas aconteciam.
Quando completei meus nove anos de idade, meus pais mudaram de casa e, por causa disso, aquele rio passou a existir somente em minhas lembranças.
Muitos anos se passaram…
Num certo dia, voltei àquela vila de minha infância.
Meu coração batia forte. Depois de mais de vinte anos, estar ali, naquela vila, diante daquele rio, era o meu reencontro com um velho e querido amigo. Havia em mim a expectativa de reviver as mesmas emoções experimentadas nas antigas e fantásticas aventuras náuticas, nos momentos no quais eu era um pirata, um marinheiro, um comandante de um grande navio, ou um simples canoeiro a navegar naquele fantástico rio.
E aí, lá estava eu, diante dele.
Minha memória guardava lembranças ricas em detalhes sobre aquele rio poderoso, capaz de nos matar, de nos afogar em suas profundas e traiçoeiras águas.
O momento do meu reencontro com ele, foi muito confuso para mim.
Ele estava ali, diante de mim.
E eu olhava, olhava, e voltava a olhar. Nada fazia sentido!!!
Eu estava atônito e confuso. Tinha a impressão de que o que estava a experimentar talvez fosse semelhante ao que ocorre com uma pessoa que deixa seu carro estacionado em um lugar e, quando retorna para pegá-lo, não o encontra lá, onde deveria estar.
E eu continuava a olhar como se procurasse algo precioso que me haviam roubado.
Depois algum tempo, percebi que não havia nada errado em relação ao meu querido e maravilhoso rio. Ele continuava ali, como décadas atrás: um córrego, com menos de 20 centímetros de profundidade e com um pouco mais de um metro de largura.
Aquelas suas “ondas gigantes”, que tinham o poder de tombar um transatlântico, sempre foram marolinhas que não conseguiriam virar nem uma caixa de fósforos.
Diante dessa inquestionável realidade, dentro de mim uma guerra foi deflagrada:
Não é possível!!! Não!!! Não pode ser!!! Para onde ele foi?? Para onde foi o rio da minha infância???
A realidade quase sempre vence e nos faz refletir para que a gente a entenda. Assim, depois de pensar um pouco, concluí que eu o perdi quando meu mundo infantil foi embora.
Pude compreender isso ao perceber que não foi apenas ele o que eu havia perdido, mas toda uma visão do mundo, da realidade como um todo.
Dei-me conta de que os medos da infância, ao estar naquele rio, navegando nele, guerreando nele, não me atingiam porque os “meus heróis de outrora” estavam sempre ao meu lado, me protegendo.
Aqueles heróis, eu mesmo os criava. Eram imaginários, mas eu acreditava no poder deles. Eles me protegiam e me davam condições de enfrentar os desafios que me eram impostos por eu estar naquele rio, a minha realidade de outrora.
A gente cresce e a nossa imaginação decresce, e passamos a não acreditar mais possibilidade de criamos nossos novos heróis.
Hoje, adulto, sinto-me às vezes mergulhado em um rio e ouvindo as pessoas falarem sobre o quanto ele é perigoso. Tal como acontecia na minha infância.
Por isso, sempre que isso acontece, percebo que é hora de acordar aquela criança que morou em mim, que me fez sonhar, que me deu as condições para criar monstros, mas, ao mesmo tempo, as de criar os heróis que os derrotariam.
Busco, hoje, viver a vida como vivi no rio de minha infância.