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Usos e Abusos
J.L.Belas – março de 2022
INTRODUÇÃO
Em minha vivência clínica, orientando famílias, tenho observado que muitas se sentem confusas, tensas, frustradas, tristes…, com a forma de os filhos se comportarem em relação a elas.
Os pais não conseguem entender a razão de tais comportamentos e costumam achar que erraram na educação que deram a seus filhos.
Costumo dizer que os pais se julgam muito poderosos e se mostram pretensiosos quando acreditam que sejam os únicos responsáveis pela educação e pela formação dos filhos.
Tudo indica que eles contribuem apenas na construção de valores básicos, principalmente aqueles que a criança absorve a partir do convívio direto com a família. Os pais são modelos básicos. O mundo completa o resto.
Nada do que apresento neste texto poderá ser considerado como “uma afirmação categórica, uma conclusão, uma verdade absoluta”. Entretanto, a frequência com que tais fatos surgem na clínica me leva a suspeitar que o que escrevo aqui não parece estar muito longe da nossa realidade atual.
TENTANDO COMPREENDER O QUE POSSA ESTAR ACONTECENDO
Vamos recapitular o que mudou na Educação a partir dos anos 1960.
Os profissionais que trabalhavam nesse período certamente não deixaram de ler alguns livros publicados naquela época. Eles eram, quase, uma leitura obrigatória.
Em 1970, no Brasil, foi publicada pela IBRASA, SP, a 9ª Edição de um dos livros mais discutidos, lidos e questionados naqueles tempos: Liberdade sem Medo (Summerhill), de autoria de A.S. Neill.
A primeira edição desta obra ocorreu em 1960 e foi publicada pela Hart Publishing Co.
As ideias lançadas por Neill se basearam na sua experiência de quase 40 anos numa escola moderna (Summerhill), fundada em 1921, na aldeia de Leiston, em Suffolk, Inglaterra. Seus relatos sobre o que se vivia nessa escola ficaram conhecidos no mundo inteiro como uma revolução no campo da Educação.
Muitas polêmicas e muitas desconfianças na filosofia educacional daquele autor foram deixando claro o quanto suas propostas se distanciavam do que era praticado, até então, na maioria dos estabelecimentos de ensino existentes naqueles tempos.
Também nos anos 1960, década das grandes mudanças no mundo, no que se refere à busca que o homem empreendeu na conquista da liberdade e na negação à opressão, outro pensador começou a ser conhecido no ocidente, refiro-me a Kahlil Gibran.
Creio que, não por acaso, no livro Liberdade sem Medo, Neill, logo no início, antes mesmo de sua introdução, apresenta uns versos, cujo tema é Pais e Filhos, contidos no livro O Profeta, de Kahlil Gibran, obra muito conhecida e reverenciada pelos povos árabes.
Educação, liberdade, amor, compreensão, aceitação, respeito são algumas das inúmeras palavras que norteiam as sugestões que esses autores apresentam como ingredientes fundamentais para a educação e o desenvolvimento das crianças, seu crescimento e, como desdobramento disso, uma possibilidade de mudança da qualidade de relacionamentos entre os seres humanos.
Na educação tradicional, digamos assim, onde a figura do educador era marcada por seu papel de formador, modelador, repressor e punidor, não havia lugar para a concessão de liberdade. O educador era a pessoa que possuía a “luz” e o aluno, o que vivia na “escuridão”. Caberia ao professor iluminar o caminho do seu discípulo. Mestre, portanto, seria aquele que sabe o que é melhor para o seu discípulo e que tem como meta colocar o seu educando na estrada do saber, do bem e do certo. Os modos utilizados para conseguir seus objetivos eram todos válidos, pois os meios justificavam os fins. Liberdade era algo perigoso, pois, se o aluno e/ou o filho andassem pelos próprios caminhos, poderiam perder-se dos outros e de si mesmos, e não conseguiriam a tão desejada sabedoria e se tornariam pessoas marginalizadas, fora dos padrões aceitos por seu meio social.
Numa época onde muitos tinham uma visão tão negativa em relação ao potencial que a liberdade possuía como promotora de um crescimento positivo e saudável das crianças, textos como o de Kahlil Gibran talvez viessem a se mostrar, paradoxalmente, o “sumo bem” e o “sumo mal”.
O Bem, já que, no fundo, todos os pais e educadores o estavam buscando. Era um ideal sonhado. O sonho de Liberdade que almejavam para eles próprios.
O Mal, pelo medo que experimentavam em relação à Liberdade, este sentimento que desconheciam, por não o terem vivido concretamente.
“E uma mulher, com um bebê no colo, disse:
Fala-nos de Filhos.
E ele disse:
Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da aspiração divina pela vida.
Vêm por vosso intermédio, mas não de vós;
E embora estejam convosco, não vos pertencem.
Podeis conceder-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos;
Pois têm seus próprios.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois elas abrigam-se no amanhã, que não podeis visitar nem mesmo em
sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis torná-los iguais
a vós;
Pois a vida não segue para trás nem retarda-se com o ontem.
Sois os arcos com os quais vossos filhos são lançados qual setas vivas.
O Arqueiro aponta na direção do infinito, e vos curva com Sua força para
que suas flechas sejam lançadas, rápidas e certeiras, para bem longe.
Ao deixar-se encurvar pelas mãos d´O Arqueiro, sede felizes;
Pois assim como Ele ama a seta que voa, ama também o arco que é estável.”
GIBRAN, Kahlil – O Profeta, RJ: Ediouro, 2001- pág.19
Neste belo poema de Kahlil Gibran, a ideia maior, a meu ver, reside no desapego.
Crie os filhos para o mundo, para serem livres e buscarem seus próprios caminhos.
Ame-os e deixe que eles sejam eles. Caminhantes de seus próprios caminhos.
Ajude-os a se lançarem e confie neles.
Neill, tudo indica, compartilha com Kahlil Gibran dessa mesma ideia.
O livro Liberdade sem Medo é prefaciado pelo conhecido psicanalista Erich Fromm, profissional que recebeu grande influência dos culturalistas. Uma de suas obras mais conhecidas tem como tema Liberdade.
Nesse prefácio, Fromm começa esclarecendo como a idéia de liberdade, democracia e autodeterminação já era proclamada, durante o século dezoito, nos escritos de vários pensadores considerados progressistas, e, na metade do século vinte, tais ideias foram incorporadas ao campo da Educação. Propôs-se, então, uma substituição da autoridade pela liberdade, ”ensinando-se a criança sem uso da força” (1- pág. XVII).
Os resultados nem sempre foram positivos e muitos fizeram a proposta para que essa filosofia fosse posta de lado.
Fromm, questionando esse malogro, afirma que essa ideia de liberdade não é errada, mas cabem algumas reflexões sobre o sentido que ela carrega. Ele nos fala sobre a “natureza da liberdade” e, para isso, procura estabelecer uma diferença entre “autoridade manifesta” e “autoridade anônima”.
Na primeira, ela é exercida direta e explicitamente, tudo é falado com franqueza pela autoridade. Ex.: “Você deve fazer isto. Se não fizer, receberá um castigo”.
Na segunda, a autoridade esconde a força que está usando: há um faz de conta que não há autoridade. Ex: “Tenho certeza de que você gostará de fazer isto”.
A autoridade manifesta usa a força física, a autoridade anônima, a manipulação psíquica.
Na educação progressista, usou-se do autoritarismo por meio de persuasão e coação ocultas. Daí o seu fracasso, pois a verdadeira liberdade não pode ser construída através delas, ou seja, através da manipulação e da coação.
Desde o seu primeiro livro, Liberdade sem Medo, Neill deixa claro que a autêntica liberdade e autonomia de uma criança só será construída se não nos esquecermos de deixar bem claro para ela os limites, as fronteiras da realidade na qual vive. Mas fica muito claro, também, que os educadores (pais e professores) demonstraram sempre suas dificuldades para compreender, exatamente, onde se situavam esses tais limites.
Em 1967, Neill lançou outro livro chamado Talking of Summerhill, que foi traduzido para o português como Liberdade na Escola, e editado pela IBRASA, em 1969.
Em 1968, esse mesmo autor lançou um outro livro chamado Freedom – Not Licence!, traduzido para o português com o título Liberdade sem excesso, editado também pela IBRASA, em 1969.
Esses dois parágrafos, imediatamente acima, nos fazem ver a velocidade com que essas ideias educacionais tomaram conta de escolas, professores, pais e outros profissionais, interessados em educar crianças e delas tratar.
Mas cabe também notar que os dois livros que mencionei após o Liberdade sem Medo vieram praticamente para esclarecer as ideias contidas nele. Percebe-se que houve muitos mal-entendidos, muitas distorções, principalmente de alguns conceitos, mas, principalmente, do que se referia à LIBERDADE.
Os educadores tiveram dificuldade para entender o verdadeiro significado de tal palavra e lhe emprestaram sentidos que comprometiam a principal coluna da construção de seu sistema educacional.
No livro Liberdade sem Excesso, logo no início surge o que ele denominou de “Qual o assunto deste livro?” e continua:
“COMO É POSSÍVEL DISTINGUIR ENTRE LIBERDADE E LICENÇA?
(Neill, literalmente, explica:)
Meu editor nos Estados Unidos da América do Norte implora-me que escreva todo um livro explicando esses termos. E diz: – Você deve fazê-lo, porque muitos pais americanos leram SUMMERHILL e se sentem culpados pela forma restrita com que tratam os filhos. Então passam a dizer a esses filhos que, dali por diante, eles estão livres. O resultado, habitualmente, é um garoto mimado, porque bem escassa é a noção que os pais têm do que seja liberdade. Não compreendem que a liberdade é dar e tomar – liberdade para os pais, tanto quanto liberdade para o filho. Tal como eu entendo, liberdade não significa que a criança pode fazer tudo quanto deseje, nem ter tudo quanto queira.”
LIBERDADE, SIM! LICENCIOSIDADE, NÃO!
Muitos pais, que tinham filhos pequenos, nos anos 70, usavam a expressão “não reprima”, como bandeira que sinalizava liberdade. E, com a proposta de educar os filhos de
maneira moderna, consideravam repressão qualquer atitude sua que pudesse limitar desejos e vontades de suas crianças. “Reprimir as crianças fará com que elas sejam, mais tarde, pessoas inseguras, frustradas, neuróticas, etc., etc..” E, por aí, foi-se criando uma distorção, que teve consequências sérias, que podem ser notadas até hoje…
Presenciamos, a cada momento, jovens adultos que estão na casa dos 30, mas que ainda se estão buscando, querendo encontrar sua própria identidade, perdida por eles ao longo dos anos. Não conseguiram ser verdadeiramente adultos, responsáveis pela própria vida. Há muitos jovens que se tornaram profundamente egoístas, superficiais, fúteis e que não conseguem ter o mínimo respeito pelo outro, possivelmente por nunca terem percebido, e, portanto, aprendido o que seja solidariedade, cidadania. Aprenderam a receber, a ter suas vontades satisfeitas, mas pouco sabem sobre dar de si para alguém. Costumam ter medo de se envolver em relacionamentos profundos, que lhe exijam comprometimento sério com outra pessoa. Parecem eternas crianças que dependem dos pais para existirem, ao mesmo tempo em que tentam negar este fato, mostrando uma irreal independência, inclusive financeira, gastando generosas mesadas em divertimentos de todas as naturezas.
Provavelmente, os jovens que experimentaram a licenciosidade, em vez da liberdade, ainda hoje, mesmo que aparentemente adultos, carregam dentro de si crianças assustadas, com medo da vida, do sofrimento, do trabalho, da responsabilidade diante da própria vida. Costumam ver os pais como pessoas que têm obrigação de continuar patrocinando suas vidas medíocres, fúteis. Tratam seus pais, como se seus escravos fossem.
A criança que conquistou o trono fez de sua casa seu castelo e, dos pais, seus súditos. Tornou-se um “adulto” que sente necessidade de continuar reinando, sem ter a mínima vontade de rever sua realidade, pois, para ele, mudar isso não faz sentido. Afinal qual é o rei que, espontaneamente, abdica de sua coroa, não é?
Esse parágrafo acima talvez tenha ficado, para você, leitor, parecendo meio fora do contexto, ou, pelo menos, se apresentando com uma linguagem meio solta, pouco “acadêmica”. Mas é isso mesmo! Ela corresponde a descrições que muitos pais me fazem em relação ao modo como seus filhos costumam agir.
Desesperados, angustiados, infelizes e desorientados, eles, os pais, sempre me fazem as perguntas: “Onde nós erramos?” “Será que eles são assim, tão rudes, porque não gostam de nós?”
Infelizmente, não, há como se responder à primeira pergunta. Eles tentaram fazer tudo lhes diziam que era o certo. Mas, como deu errado? Não deu errado. O resultado é coerente, ainda que indesejado. Só que o que eles entenderam que seria o certo não era bem assim. Deram licenciosidade e não liberdade. Com isso, o mundo para eles – os filhos – passou a não ter muitas fronteiras, nem limites claros. Eles aprenderam a ter todos os direitos e pouquíssimos deveres e obrigações. Afinal, foram criados como “reis”. Muitos deles, para piorar a vida dos pais, se tornaram “reis tiranos”, que só aceitam as leis que eles próprios criam e, é claro, todas a seu favor.
Em relação à segunda pergunta, acredito que a reação agressiva dos filhos – dirigida aos pais – não seja, verdadeiramente, uma prova de falta de afeto. Apenas parece representar um comportamento igualmente coerente (ainda que isso possa causar muita tristeza e dor aos pais). É coerente, já que um “rei tirano” certamente não aceita ser contrariado em seus desejos e vontades. A frustração gera nele uma reação de raiva, direcionada a quem (os pais) lhe “desobedece”.
E agora????
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