UMA QUESTÃO INCRIVELMENTE SUTIL Formação de Terapeutas na ACP

Psicoterapia/ Teoria e Prática
J.l..Belas
Janeiro de 2016

Todos que me conhecem, como psicólogo e psicoterapeuta, sabem da minha identificação
metodológica e filosófica com a Abordagem Centrada na Pessoa.
Meu primeiro contato com as ideias de Carl R. Rogers ocorreu em 1969. A partir
desse ano, li muitos livros e textos escritos por esse psicólogo. Criei em 1971
um grupo de estudos sobre a Psicoterapia Centrada no Cliente e dele
participavam psicólogos, psicanalistas, orientadores educacionais, médicos e
filósofos.  Durante quase cinco anos nos
dedicamos semanalme nte ao estudo e discussão do material que dispúnhamos, inclusive textos inéditos que nos foram enviados pelo próprio Rogers, sabedor da existência de nosso grupo e do nosso interesse por suas propostas no campo
clínico e educacional.
Uma das coisas que mais me marcaram nesse período, de 1971 a 1976, um ano antes da
primeira vinda de Rogers ao Brasil, foi uma postura desse psicólogo que se
afinava imensamente com algo em que eu acredito e que sempre me pareceu o que o
diferenciava de um grande número de outros profissionais e teóricos da
psicoterapia. Refiro-me à sua clareza em relação ao fato de que somos
“indivíduos” e, por tal óbvio fato, não podemos “fabricar” terapeutas em
série.  Em outras palavras, ainda que tenhamos uma boa teoria e metodologia que possam nos dar um ponto de partida
para uma atuação à qual damos o nome de psicoterapia, cada profissional atuará
de forma bem pessoal, com sua assinatura bem visível e, portanto, diferenciada
dos seus colegas também psicoterapeutas.
Essa questão sempre foi um ponto significativo no processo de formação de terapeutas
dentro da Abordagem Centrada na Pessoa.
Um ponto sem maiores implicações para alguns, e, para outros, uma
questão altamente valorizada e controversa.
Compreender o significado disso tem gerado, dentro do próprio grupo identificado com as
ideias rogerianas, discussões muito interessantes e importantes, pois, ao nos
defrontarmos com essa questão, damos de cara
com outras , igualmente interessantes e sérias, tais com o que vem a
ser   um psicoterapeuta da abordagem
centrada na pessoa? Como é formado? Quais são suas características
fundamentais. O que o diferencia, realmente, de outros identificados com
fundamentos diferentes dos seus?
Assim que lancei meu site na Internet, em 1997, tentei deixar claro para os que
entrassem nele que meu trabalho e, portanto, meus textos que estavam expostos
ali, eram de um psicólogo que se identificava com as ideias de Rogers, mas que
as ideias lançadas naqueles  documentos
escritos eram somente minhas e não representavam a Abordagem, nem Rogers.
Algumas pessoas que me conheciam, e que acompanharam minha trajetória profissional,
estranharam essa minha posição, pois não entenderam por que eu não me
autodenominava Rogeriano, nem me propunha a construir um site que levasse o
rótulo da Abordagem, ou vinculado a ela.
Embora já tenha me proposto a esclarecer esse tema em textos passados, resolvi
retomá-lo justificando essa minha postura.
Na década de 1970, como mencionei no início deste texto, mantive contato com
Rogers na condição de representante do grupo de estudos que tinha como local de
reunião o meu consultório particular. Em um desses contatos por cartas, enviei
para ele um texto no qual pretendia mostrar ao ilustre mestre da California, em
La Jolla, o quanto eu havia entendido suas ideias e, mais que isso, como eu as
aplicava corretamente.  Só um tempo
depois pude perceber o tamanho de minha pretensão e, mais que isso, como estava
equivocado em relação a tudo aquilo que Rogers nos dizia através dos seus
livros.  Esperar uma aprovação dele foi
uma das minhas interpretações erradas sobre seus pensamentos e propostas. Mas,
deixe que explique isso melhor.
Para surpresa e frustração minha, ele me respondeu e fez um pequenino comentário em
relação ao texto que havia lhe enviado.
A surpresa foi sobre o curto prazo de tempo entre o envio da correspondência para
ele e o de sua resposta.
A frustração foi gerada pelo que ele me escreveu como comentário ao meu texto.
Ele simplesmente disse: “Gostei do texto sobre seus métodos terapêuticos.” Este
breve comentário, feito por ele, foi a primeira grande lição que recebi sobre a
Abordagem.
Depois de me refazer do choque, e da frustração, por ele não comentar que eu estaria
fazendo exatamente o que ele fazia, pude entender que a compreensão da teoria
que ele nos apresentava, estar em sintonia com sua ideias e filosofia sobre a
natureza humana, não significava que eu fosse uma cópia xerox de Rogers.  Eu apresentava a ele MEUS métodos e ele pode
ver, nesse meu jeito de ser, algo que ele apreciava ou que, em outras palavras,
pareciam estar em consonância com uma proposta que também poderia ser válida e
terapêutica. A partir daquele momento eu “deixei de ser rogeriano”. (Rss)
Entretanto, descobri, para minha alegria, que algo nos ligava profundamente: a
visão do homem . Descobri-me “centrado na pessoa”.
Mais tarde ainda, ouvindo outros profissionais, participando de encontros, atuando
como clínico, pude ir percebendo que ser “Rogeriano” é uma descoberta que
alguns de nós faz, com o passar do tempo, e que se caracteriza por um encontro
nosso, verdadeiro, com algumas formas de ser, pessoais, que provavelmente estão
guardadas dentro da gente, há muito tempo e fruto de uma formação humana muito
específica.
Muitas pessoas fazem cursos sobre a ACP e isso não significa que consigam vivenciar na
clinica as propostas dessa abordagem. Enquanto elas estiverem lendo sobre as
ideias que norteiam esse enfoque, e quiserem aplicá-las na sua relação com seus
clientes, provavelmente estarão muito distantes de serem, verdadeiramente, um
terapeuta da Abordagem.
A questão sutil que decorre do que falei acima se refere a um tema bastante
antigo que é como se prepara, ou se forma, um terapeuta nesse enfoque. É
possível tal formação?  Se é, como
operacionalizá-la?
O Rogeriano já nasce feito? Ouso dizer que sim.
Não me surpreenderei se, a partir dessa minha resposta, se todas as pedras me sejam
atiradas e que alguns queiram até caçar meu diploma, ou me expulsar de grupos
ou associações às quais pertenço. Vão me chamar de incompetente, de profundo
desconhecedor das obras do mestre Rogers e das de seus distintos e brilhantes
continuadores.
Cabe, assim, depois dessa afirmação, contestável por muitos, tenho certeza, uma
tentativa de explicação do que quero dizer com “nasce feito”.
Quando uma pessoa se propõe a ser psicólogo, clínico, psicoterapeuta costuma não ser
mais uma criancinha. Isso não significa que ela seja madura, pronta, ou quase
pronta, ou bastante preparada para se lançar no mundo dos relacionamentos
humanos com segurança e se conhecendo relativamente bem como pessoa. Há um
caminho longo a ser percorrido na direção da descoberta de si mesma.
É raro alguém entrar numa faculdade de Psicologia já com a intenção de ser um
psicoterapeuta “rogeriano” ( usarei sempre esta expressão , por achar que meus
leitores entenderão o que ela significa). Ao entrar em contato com várias
teorias que fundamentam as diversas práticas clínicas e psicoterápicas, os
jovens alunos começam a se identificar com algumas delas. Conhecerão teorias
que considerarão interessantes, outras que lhes parecerão mais práticas e
objetivas, mais outras que se mostram simples, ou complicadas…  Na verdade o contato com essas ideias
despertará no aluno algo que inicialmente ele não identifica com clareza. Aos
poucos, ao ler os livros sobre aquelas teorias, cada vez mais vai encontrando
uma ressonância das propostas ali contidas com sua própria experiência de vida,
com sua história pessoal, com os valores que mais fortemente fundamentam seus
atos e sua visão de mundo.
Uma das características que tenho presenciado nos estudantes que se descobrem
rogerianos é sua sensibilidade ao humano, seu interesse genuíno por gente, seu
respeito em relação ao outro, sua aceitação da singularidade da pessoa com a
qual entra em contato.
Esse fato, apontado acima, nos leva a pensar no seguinte: essa característica da
personalidade do “futuro rogeriano” tem a ver com sua inteligência, cultura,
formação religiosa?…. Certamente , não.
Uma outra questão ligada a esse mesmo fato diz respeito a se uma pessoa com tais
características as percebe e as vive desde sempre, ou elas são descobertas ao
longo de um processo de crescimento pessoal.
Em cursos de formação de terapeutas, que pretendam desenvolver suas atividades
dentro de um enfoque centrado na pessoa, o objetivo maior deveria ser criar
condições para que os seus participantes possam descobrir, dentro deles,
genuinamente, a existência , ou não, dos valores básicos que viabilizam um
trabalho terapêutico dentro dessa abordagem.
Conheço, e já conheci, muitas pessoas que frequentaram cursos de formação, mas que, concretamente,
estão longe das ideias que fundamentam esse tipo de prática terapêutica, a
começar pela confiança plena na capacidade de uma pessoa gerir sua própria vida.
Respeitar as escolhas feitas pelo outro, não apressar seu processo de crescimento e
autodescoberta, parece teoricamente fácil de se praticar, mas no contato real
com uma pessoa, entender que ela possa ir para frente, retornar, dar voltas ou
não conseguir avançar na solução de suas dificuldades, mexe com uma
característica comum aquelas pessoas que, mesmo querendo respeitar o outro, se
sentem angustiadas e atropelam o caminhar autêntico  de seu cliente.
A gentileza, a educação sob a forma de cortesia, a empatia sob a forma de compreensão
profunda do universo do outro, a vontade de dar a mão ao outro sem anular suas
escolhas por caminhos nem sempre para nós os mais adequados e promissores,
esperar o momento em que o outro tenha condições para ver sua realidade
exatamente como ela é , e poder fazer movimentos mais seguros dentro dela… ,
tudo isso e muito mais, é algo que se redescobre dentro da gente em relação ao
outro que está diante de nós.  Não é algo
teórico. Não se aprende com os livros, mas num processo através do qual o
futuro terapeuta tenha oportunidade de se ver, se achar, e perceber o
verdadeiro valor que dá ao outro como
pessoa humana.
Às vezes, conhecemos pessoas que, a despeito de sua formação teórica, acadêmica,
carregam consigo valores que são fundamentais para os que trabalham numa
abordagem centrados na pessoa.
Por exemplo, no trabalho que realizo com famílias, muitas vezes o elemento mais
terapêutico daquele grupo é a empregada doméstica daquela casa. Em entrevistas
individuais com essas pessoas, de fala errada e vocabulário pobre, a
sensibilidade delas me impressiona. Conseguem ver com clareza as questões que
determinam os problemas daquelas famílias. O contato dessas empregadas com as
crianças da casa, muitas vezes adolescentes rebeldes, ocorre de um modo que
poderia deixar com inveja os mais experientes profissionais da psicologia.
Eram pessoas simples, autênticas, espontâneas, generosas, gentis, que podiam
compreender profundamente o universo das pessoas às quais servia. Elas me
encantavam pela bondade, seriedade, gentileza, educação, humildade, respeito ao
outro e a si mesmas.
Não eram santas, mas verdadeiramente pessoas humanas, no sentido mais pleno das
palavras.
Nenhuma Academia lhes ensinou isso. Traziam, dentro de si, todos esses valores, considerados
básicos nos trabalhos do enfoque abordagem centrada na pessoa. Faltava a elas,
apenas, o poder que a Academia, perigosamente, fornece aos que se formam nos
Cursos Superiores. Esses, sabemos muito bem isso, não formam pessoas “superiores”.
Muitas vezes, nem PESSOAS.
Finalizando esse meu questionamento, altamente discutível pelos senhores teóricos, quero
deixar claro que não sou contra a formação acadêmica, não sou a favor de uma formação
de terapeutas da abordagem que seja superficial do ponto de vista da teoria,
mas quero lembrar que, na prática clínica a gente aprende que os livros não
falam sobre aquela pessoa que está diante de nós. Os livros nos levam a ter
elementos mais amplos para se poder compreender aquele universo particular,
único, que se mostra diante dos nossos órgãos dos sentidos. Os livros nos fazem
pensar sobre nós e nossos próprios valores
através dos contrastes que outros seres humanos nos oferecem ao falarem
sobre suas experiências.
A formação de um futuro terapeuta identificado com a Abordagem Centrada na
Pessoa, antes de ser técnica precisa ser humana e, para isso, todas as
experiências teóricas e práticas vividas pelos seres humanos, suas ideias,
filosofias, crenças, religiões, uma vez conhecidas, poderão nos colocar mais
plenamente no interior do mundo daquele cliente que nos procura.
Não faz sentido nenhuma conduta ortodoxa quando se fala de ACP.
A vida plena à qual se referia Carl Rogers tem a ver com não rigidez, com
abertura à experiência. Isso não é algo para ser atingido apenas pelo cliente,
mas e principalmente pelo próprio terapeuta.
Se na formação do terapeuta da abordagem não se levar em conta isso, estaremos
diante de uma enorme e lamentável contradição.

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