Psicoterapia / Teoria e Prática
J.L.BELAS-
novembro de 2014
Um fator importantíssimo, para o sucesso do atendimento de um paciente psiquiátrico em psicoterapia, é o suporte dado à sua família.
Quando um membro de uma família desenvolve um quadro psiquiátrico grave, ela, paralelamente a este fato, passa a vivenciar sentimentos profundamente complexos. Alguns familiares custam a aceitar aquela realidade, outros parecem aceitá-la, mas tentam fazer com que ele mude, volte a ser como era. Como se isso fosse uma coisa simples e alcançável através de sugestões, conselhos ou ordens. Principalmente quando se trata do primeiro surto, a família do paciente vivencia este fato como um desastre que atinge quase todos os seus membros.
Uma pessoa com problemas psiquiátricos graves, vivendo dentro de sua família, é visto como um ser estranho, como alguém que deixou de ser humano e passou a ser algo que eles não reconhecem como pertencente ao grupo familiar. É uma situação chocante, assustadora, que evidencia, para a família, sua impotência diante desse “inimigo que acaba de chegar” desorganizando a estrutura na qual estavam acostumados a viver.
O impacto é tão grande e significativo que, muitas vezes, a família procura, imediatamente, livrar-se desse paciente, afastá-lo de suas vistas, e o lugar, por tradição, encontrado para isso é o hospital psiquiátrico. Ali, dentro do imaginário da família, aquela pessoa receberá os cuidados necessários para ficar curada, livre de sua doença e voltar para casa sendo como era antes.
Alguns historiadores franceses contemporâneos nos lembram que a velocidade das mudanças tecnológicas ocorre como se obedecesse às propriedades de um progressão geométrica, mas a velocidade das mudanças de mentalidade segue às da progressão aritmética. Isso talvez nos ajude a compreender o motivo de ainda encontrarmos muita gente vendo esses transtornos do mesmo modo como eram vistos no início do século passado, embora, de lá para cá, tenhamos avançado bastante no tratamento deles.
Se compararmos o tempo real que um paciente permanece com sua família e aquele no qual fica com as pessoas que tratam dele em um ambulatório, ou consultório particular (um psicoterapeuta, um psiquiatra, um terapeuta ocupacional, ou qualquer outro profissional dedicado a esse tipo de ajuda), logo de início visualizaremos uma balança que pende muito mais para o lado da família.
Quando atendo um paciente psiquiátrico, principalmente aquele que apresenta um quadro grave de desestruturação, sempre solicito a presença da família. Sinto que ela, no início do tratamento, talvez necessite mais de ajuda do que o próprio paciente. Em outras palavras, a família precisa ser “tratada”, para poder nos ajudar a tratá-lo. Ela necessita ser esclarecida, o máximo possível, sobre aquela doença e as possíveis alterações que poderão surgir no comportamento do cliente. Precisa, também, entender os limites e diferenças que passaram a existir entre suas formas de pensar e agir. Quando a família começa a compreender melhor o que está acontecendo com o paciente, consegue interagir com ele de forma mais eficaz, aceitando melhor as diferenças entre seus modos de ver o mundo. Passa a entender que as divergência de opiniões não são formas de protesto, ou ofensa contra a família, mas um modo de afirmar sua maneira de ver o mundo no qual ele vive. Esse paciente organiza seu mundo para poder movimentar-se nele de modo mais consistente, “organizado”. Sua organização nos parece desorganização. Mas é nesse “mar caótico” que ele consegue navegar com menos turbulência.
Entender muitas dessas coisas é uma das metas do atendimento familiar ao paciente com problemas psiquiátricos graves. Através de encontros com a família, vamos ajudando seus membros a se inteirarem do processo que está sendo vivido pelo paciente em terapia. Esses contatos podem ser em grupo (a família próxima, toda ) , assim como através de sessões individuais com aqueles que lidam com ele durante mais tempo, ao longo da semana. Entrevistas com os pais, com os irmãos, ou outros elementos da família, poderão ser programadas de acordo com a necessidade que eles demonstrem ao longo do tratamento do paciente.
Além de desmistificar a doença e informar sobre ela, outro aspecto que tenho vivido nesses contatos com a família é o quanto, principalmente os pais, se sentem, frequentemente, culpados pelo estado mental do paciente. Não só questionam o quanto geneticamente eles possam ter contribuído para o surgimento da doença, como também refletem sobre os possíveis motivos de ordem psicológica. E aí, o trabalho com a família passa a se mostrar essencial, pois, como sabemos, é impossível determinarmos, com certeza absoluta, o que originou o que, quando se fala de distúrbios mentais. Mas, para a família, entender seu sentimento culpa, e perceber que senti-lo não contribuirá em nada para a ajuda que poderá vir a dar para a melhora do paciente, é uma tarefa de suma importância. Quando esse sentimento de culpa não é devidamente simbolizado (ou seja, não chega a ser percebido a nível consciente) e compreendido, a família passa a tratar o paciente como se tivesse em débito com ele. Assim se sentindo, tenta saldar essa “dívida”, quase sempre, através de atos generosos. Superprotegem e lidam com ele como se fosse alguém imaturo, ou frágil. Com isso, dificultam seu crescimento rumo à autonomia.
Imaginar que um filho, ou filha, possa permanecer por muitos anos “fora da família”, ainda que esteja participando do mesmo espaço físico, é algo torturante para muitos pais, irmãos e até para aqueles que, mesmo não sendo da família, criaram laços afetivos com o paciente. Conheci empregados domésticos que, por terem lidado com aquela pessoa, agora enferma, desde quando era bem menor, ao se depararem com ela, totalmente diferente, estranha, esquisita, confusa, falando coisas pouco compreensíveis, sofrem profundamente. A tristeza é o sentimento mais presente nessas situações, para todos que lidam com esses pacientes. Sentem como se aquele ser humano estivesse à beira de um precipício, preste a se lançar, e eles tentam, a todo custo, salvá-lo, sem saber como.
Todo esforço que fazemos, ao atender a “família”, visa criar um ambiente favorável para que o paciente não se isole e mantenha um contato humano efetivo com as pessoas que o cercam. Quanto mais ele se sentir aceito e compreendido, mais ele conseguirá manter, e até melhorar, a qualidade dos relacionamentos com o mundo familiar, social, profissional… Acredito que, para isso, a família precisará estabelecer um contato genuíno com o paciente. Se precisar zangar, zangará. Se precisar demonstrar carinho, demonstrará. Ou seja, não o tratará só como um doente, que precisa ser medicado, cuidado, mas também como uma ser humano que vê o mundo de forma diferente daquela como eles veem. Esse respeito e aceitação verdadeiros pelo outro talvez possa ser denominado de amor incondicional.
Concluindo este breve relato, diria que, embora, indiscutivelmente, seja muito importante a ajuda às famílias dos pacientes com problemas mentais graves, com tentei mostrar acima, infelizmente e lamentavelmente, muitas delas não se dispõem a participar, de forma efetiva, do tratamento deles. Essa não participação diminui consideravelmente o sucesso do trabalho psicoterápico com esses pacientes.